Gelado

Piu supera tropeços em Paris, mostra que estava, sim, em forma e conquista seu segundo bronze olímpico

Demétrio Vecchioli do UOL, em Paris (FRA) Michael Kappeler/picture alliance via Getty Images

Alison gostou quando alguém deu a ele o apelido de 'Gelado'. Não só pela semelhança com o super-herói d'Os Incríveis, mas pela personalidade. Piu é gelado porque não se abala por nada que acontece em volta. Como se os olhos só estivessem abertos para ele não tropeçar. O mundo está dentro da própria cabeça e isso basta.

Só que em Paris não foi assim.

Ele correu mal nas eliminatórias e admitiu que olhou no telão e errou: não viu outros rivais mais rápidos. Nas semifinais, a apreensão era clara em seu rosto após terminar em terceiro lugar. Mostrava que até ele sabia que o risco de eliminação era real. Até os rivais perceberam. "Não está na melhor forma", disse o francês Clement Ducos.

Quando Piu chegou à zona de imprensa assustado, quem estava ali era um ser humano de coração quente que, pela primeira vez, deixava à mostra um lado que só os mais próximos conheciam. No maior palco do esporte, o enorme coração do velocista precisou ser esfriado. "A sua prova está na sua cabeça e na sua perna", ouviu do treinador, Felipe Siqueira.

Piu ouviu. Terminou a final dos 400m com barreiras em terceiro lugar, repetindo Tóquio, e se colocando ao lado das lendas do atletismo brasileiro. Mais uma medalha para o principal nome das pistas brasileiras atualmente.

Eu tive uma conversa com o Felipe depois da semi, uma conversa bem leve, sem pressão, como um pai e filho mesmo. E precisava apenas ser eu, reconectar comigo mesmo, chegar na pista e ter aquele sorriso, ser aquela pessoa que sempre fui, não deixar a pressão de fora influenciar quem eu sou.
Alison dos Santos

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No meu relógio está marcando que é sexta-feira. Hoje é dia de baile, não é, não? O que eu sei é que tem promessas aí... Me prometeram que vai ter um rolê da hora. Meu WhatsApp é 11 987... Alison dos Santos

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Humano

Alison largou, passou por uma barreira, por duas e já era possível ver, na frente, que o norte-americano Rai Benjamin era imbatível. O mesmo rival que tinha conquistado a medalha de prata há três anos, no Japão, não deu chances na pista francesa.

Diferentemente da prova de Tóquio-2020, em que os três primeiros correram abaixo do recorde olímpico (os dois primeiros, abaixo do recorde mundial), a final no Stade de France foi mais lenta. Provavelmente resultado da chuva que molhou a pista roxa —cor preferida do brasileiro e que aparecia, também, em seu cabelo.

Benjamin fechou os 400m com barreiras em 46s46 —ele mesmo já completou a distância em menos tempo outras três vezes. Mas foi o suficiente. Karsten Warholm, o recordita mundial com 45s94, foi prata com 47s06. Piu chegou em terceiro, acelerando. Mais 10 ou 20 metros, poderia ter pegado o norueuguês. Mas a prova termina com 400m e o brasileiro fechou em 47s26.

Ainda assim, um tempo que seria ouro em 23 das 28 vezes que esta prova foi disputada em Olimpíadas.

Wagner Carmo/CBAt

Prova boa, que tive resposta. Não desliguei, nem nada. Consegui 'agressivar' onde queria, consegui correr. Obviamente que o tempo importa, mas, nessa situação, o que importa são os três que passam da linha, a medalha. O tempo é muito importante, mas a medalha também é muito importante. O bronze foi foda para caramba. Alison dos Santos

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Alison faz parte da evolução da modalidade

Protagonista da evolução

A evolução dos 400m com barreiras nas Olimpíadas nos últimos anos é marcada por tempos cada vez mais rápidos e disputas intensas, e Piu é um dos protagonistas dessa transformação. Os três medalhistas olímpicos são, também, os três mais rápidos da história e donos dos 18 melhores tempos da história.

A prova viveu 30 anos com um recorde que parecia imbatível, estabelecido em Barcelona-1992 pelo norte-americano Kevin Young. Quando Karsten Warholm o bateu pela primeira vez, em 2021, abriu a porteira. O norueguês, o norte-americano Rai Benjamin e Piu passaram a correr regularmente abaixo do antigo recorde, 46s78 (que hoje renderia uma medalha de prata).

Os três estabeleceram um novo padrão para a distância e, de patinho feio, os 400m com barreiras virou a queridinha do atletismo. Tanto que, nesta sexta (9), foi ela quem fechou o programa do dia no Stade de France. A senha para dizer que era ela que valia o ingresso.

Já havia sido assim ontem, quando Sydney McLaughlin-Levrone venceu a versão feminina com um recorde absurdo, 50s37s, maior performance da história do atletismo feminino em qualquer prova.

McLaughlin, a holandesa Femke Bol, Piu, Warholm e Benjamin são o quinteto que estabeleceram um novo padrão técnico para as provas com barreiras, com divisão dela em setores e aprimoramento da técnica de "ataque" à barreira.

Wander Roberto/COB Wander Roberto/COB
Reprodução/Instagram
Alison dos Santos durante treino na Flórida

Fora da zona de conforto

Ainda que tenham dominado o ciclo olímpico, foram poucas as vezes em que Warholm, Benjamin e o brasileiro se encontraram. O primeiro a se machucar foi Warholm, que voltou longe da melhor forma para o Mundial de 2022, vencido pelo brasileiro na casa do norte-americano.

O segundo foi Piu, no início da temporada 2023. Ele já estava com tudo pronto para se mudar para os EUA, onde passaria a morar e treinar, quando sofreu uma lesão durante um treino em São Paulo. Uma bobagem, um movimento errado, que exigiu uma cirurgia e quase o tirou da temporada inteira. Até voltou para o Mundial, mas dessa vez o baleado era ele. Foi só o quinto em Budapeste.

A mudança de mala e cuia ficou para o início de 2024. Se até então Piu ia todo começo de temporada passar um tempo na Flórida, agora a transferência foi definitiva. Alugou casa e se estabeleceu em busca de melhores condições de treinamento entre os melhores do mundo. Quem o acompanhou nessa mudança foi Wesley Victor, amigo de longa data de Piu.

Eles são inseparáveis desde 2017, quando Biscoito, como é conhecido, começou a treinar atletismo. Como o próprio Alison já mencionou, Biscoito é uma daquelas pessoas únicas em quem ele confia de olhos fechados, sendo fundamental para mantê-lo com os pés no chão, especialmente diante da rápida ascensão que teve nas pistas.

Miriam Jeske/COB Miriam Jeske/COB

De Teco a Piu

Alison Brendom Alves dos Santos, conhecido como Piu nas pistas de atletismo, nasceu em São Joaquim da Barra, a 380 km de São Paulo. O apelido "Piu" surgiu quando ele começou a treinar atletismo aos 14 anos. "O atletismo gosta de inventar coisas novas. E assim surgiu o Piu. Como eu não gostei do apelido, pegou mais rápido", relembra.

Antes de ser Piu, ele era chamado de Teco pela família e amigos, um apelido dado pelos avós com quem viveu até os 8 anos. Alison é o caçula de quatro irmãos, e a mais nova, Nina, tem hidrocefalia. "Seria muito difícil para minha mãe cuidar dela, de mim, ainda pequeno, e ainda trabalhar. Por isso, fiquei com meus avós."

Foi na casa dos avós que Alison sofreu um acidente doméstico que deixou marcas permanentes em seu corpo. Aos 10 meses de idade, ele engatinhou até uma panela de óleo quente, que caiu sobre ele, causando queimaduras de terceiro grau.

Alison comemorou seu primeiro aniversário ainda internado no Hospital do Câncer de Barretos. Por muito tempo, usou boné para esconder as cicatrizes, especialmente na parte superior da cabeça e na testa, onde perdeu os cabelos.

Atletismo é um meio que eu uso para conhecer pessoas, viajar, conhecer o mundo, aproveitar, ter várias experiências. Isso aqui é minha vida. Eu vivo o atletismo da hora que eu acordo até a hora de dormir, tudo é treino, é assim 24 horas, mas uso para aprender mais, conseguir buscar coisas novas. É muito bom poder usar isso aqui como um meio para conquistar coisas boas, dar orgulho para a família e amigos, ser eu.

Piu

REUTERS/Henry Romero
Piu brilhou no Pan-Americano de Lima

A ascensão

Piu começou a se destacar no atletismo brasileiro com medalhas em 2014, 2015 e 2016. Em 2017, participou do Mundial Sub-18 em Nairóbi, Quênia, onde integrou a equipe vencedora do revezamento 4x400m misto.

Alison e sua técnica, Ana Fidélis, sabiam que ele precisaria deixar São Joaquim da Barra para evoluir. A pista de carvão da cidade não era adequada para treinos de barreiras. No final de 2017, ele optou por treinar no Pinheiros com Felipe Siqueira, onde também conseguiu uma bolsa para estudar fisioterapia.

A adaptação foi rápida e, em 2018, Alison correu os 400m com barreiras pela primeira vez abaixo dos 50 segundos, conquistando a medalha de bronze no Mundial Sub-20 em Tampere, Finlândia.

Em 2019, ele quebrou sete vezes o recorde brasileiro e sul-americano sub-20, foi campeão dos Jogos Pan-Americanos de Lima e finalista no Mundial adulto em Doha, garantindo índice para a Olimpíada de Tóquio - onde faria história pela primeira vez com uma medalha de bronze.

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