"Não quero mais jogar"

Alisson conta como um jogador de futebol descobre que está com depressão. E como superar tudo e virar campeão

Alisson, volante do São Paulo Em relato ao repórter Eder Traskini, do UOL, em São Paulo (SP) Maurício Rummens/www.fotoarena.com.br

Eu estava na Disney quando assinei com o São Paulo. Sabe, quando você tem uma proposta do São Paulo, não tem como você recusar, não é? Estava sentado na plateia do espetáculo do Mickey no lago quando chegou o contrato no meu celular. Assinei digitalmente ao lado da minha esposa e do meu filho. Eu tinha outras ofertas, mas já tinha decidido que queria o Tricolor.

Jamais imaginaria que, em cerca de um ano, eu estaria com medo do futebol, fugindo até mesmo do meu filho dentro de casa porque ele estava com uma bola...

Aconteceu logo depois do primeiro amistoso de preparação para esta temporada, de 2023: eu senti um aperto muito forte no peito e não sabia explicar o porquê. Fui pra casa e, quando cheguei, liguei para o Rui Costa (executivo do São Paulo) e falei: "Não quero mais jogar futebol". Não tinha outro clube envolvido, nada. Lembro até hoje que o Rui me respondeu com uma palavra: "Calma".

No dia seguinte, a psicóloga do clube me ligou. Eu fui diagnosticado com crise de ansiedade e depressão.

Maurício Rummens/www.fotoarena.com.br

Acho que tudo aconteceu por causa da lesão no final do ano passado. Quando a gente perdeu o título da Sul-Americana, eu estava com dores na coxa e não queria ficar fora. Não podia ficar fora. O São Paulo precisava de mim depois de passar por aquele momento tão difícil.

Eu joguei contra o América-MG, pelo Brasileirão e até marquei um gol. Só que, na preparação para o clássico contra o Palmeiras, senti uma dor muito forte no tendão. Não consegui continuar a treinar. E não foi por falta de tentativa. Até hoje, tenho vários vídeos meus no meu celular tomando infiltração, tentando seguir. Não deu.

Então chegaram as férias e o São Paulo me deu um voto de confiança: eu devia me recuperar em casa e voltar 100% para a próxima temporada. Eu fiquei com isso em mente. Ter de voltar com 100%. E acabei me privando muito durante as férias, sabe? Depois de uma temporada desgastante, não desliguei a cabeça, não relaxando. Fiquei totalmente focado na recuperação. Acontece que, durante uma temporada, o jogador de futebol é muito cobrado, por todos os lados.

Nós tivemos um ano muito intenso, com finais perdidas e uma eliminação na semifinal. Eu não descansei como deveria depois de tudo isso. Não desliguei do mundo da bola por causa da lesão. E foi assim que tudo explodiu...

Ettore Chiereguini/AGIF

Eu vivi alguns episódios difíceis no período mais alto da crise de ansiedade. O principal eu já contei. Foi quando eu vi meu filho jogando bola, coisa que ele adora, e eu fugi para um canto. Fiquei escondido dele até me acalmar. Eu até pensei que aquilo poderia ser momentâneo. Tentei assistir a uma partida de futebol e aconteceu de novo. Aquele desespero, aquela arritmia. Tudo atacou novamente.

Foi então que eu comecei a ter o acompanhamento das psicólogas aqui do São Paulo. Não tenho palavras para descrever o quanto elas me ajudaram. A doutora me ligava todos os dias e viu que tinha necessidade de me consultar com um psiquiatra.

A partir daí, parei de consumir futebol. Se eu não conseguia ver meu filho com uma bola na mão, imagine assistir a uma partida? A psicóloga do São Paulo identificou meu problema. Disse que eu tinha de me afastar, mesmo. Em algum momento eu sentiria falta de algo na minha vida. E quando isso acontecesse, eu saberia que poderia voltar.

Eu não era o mesmo nem com os meus amigos. Eu conheço o Luciano há muito tempo e ele foi em casa me visitar com a esposa. Eu não notava na época, mas ele me contou, depois, que, no meio da conversa, eu desligava, ficava flutuando... O Mayke, do Palmeiras, também foi na minha casa pois somos muito amigos.

Eu recebi muitas mensagens de companheiros e só não recebi mais visitas porque o São Paulo pediu para que não fosse muita gente me visitar. Eles queriam que as pessoas respeitassem esse meu momento. Mas todos me falaram como eu fazia falta no dia a dia, que torciam para que eu pudesse estar de volta logo.

Ettore Chiereguini/AGIF Ettore Chiereguini/AGIF

A minha primeira tentativa de me reconectar nem foi com o futebol, mas com o futebol americano. E só depois de três semanas tomando remédios. Só depois desse período eu comecei a sentir falta de alguma coisa, como a psicóloga tinha dito que aconteceria. Nesse dia em que eu assisti ao futebol americano, ainda senti o coração acelerar, mas tudo se normalizou logo depois. A partir daí, tomei coragem para tentar voltar a consumir futebol.

Fiquei um mês e pouco afastado. Depois de 20 dias tomando remédios, eu já estava mais calmo e conseguia controlar melhor aquele medo, sabe? Depois de um mês, já conseguia olhar para uma bola.

Esse foi o momento em que comecei a voltar para o futebol. Primeiro, trabalhei separado. Eu ainda não me sentia confiante. Não queria passar por isso de novo e optei por ir devagar. Queria ter a certeza que não haveria uma regressão ou uma recaída. E o São Paulo e o Rogério respeitaram muito meu tempo.

Quando retornei, todos disseram que jamais apostariam que eu teria um quadro assim. Eu chegava ao clube todos os dias sorrindo."

Alisson

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

Sabe, pelo menos da minha boca o Dorival nunca soube de nada. Quando ele chegou ao clube, eu já tinha retornado e não contei a ele. Só fui conversar sobre o assunto pouco antes da segunda final da Copa do Brasil. Eu queria pedir a ele uma palavra com o grupo para agradecer a todos por terem me ajudado neste momento difícil.

Por tudo que eu passei, esse título seria muito importante. Ele abriu a possibilidade de falar na quinta ou na sexta-feira antes da final, mas decidi falar só após o título. Eu tinha muita confiança que sairíamos do Morumbi com a taça. E estava certo.

Nos reapresentamos na terça-feira e o Dorival me chamou para falar. Eu só agradeci por tudo, tudo mesmo. Aos companheiros por todo o apoio e ao Dorival pela nova posição, né? Eu confesso que nunca imaginei jogar como segundo volante.

Isso tudo nasceu em uma conversa que tive com o Lucas Silvestre (filho e auxiliar de Dorival). Falei pra ele que não estava me sentindo confortável jogando como atacante. Expliquei que eu não tenho a característica do drible, do um pra um. E que sabia que o elenco tinha jogadores mais qualificados para isso.

No dia seguinte, o Dorival monta duas equipes e me coloca de volante no time alternativo. Cara, se fosse para jogar com três e eu no topo do tripé, tudo bem. Você vai chegar, atacar espaço e tudo certo. Agora, segundo volante? Mas eu fui evoluindo na posição.

A comissão conversava comigo a todo momento, me orientava, me ensinava. Até que, contra o Palmeiras, no jogo de ida das quartas de final da Copa do Brasil, ele me coloca como segundo volante no intervalo. Os dois viram em mim algo que nem eu vi. Nem eu sabia que poderia contribuir tanto assim.

Nelson Almeida/AFP Nelson Almeida/AFP

A ficha do título da Copa do Brasil só foi cair lá pra quarta-feira. É engraçado porque, quando você conquista, parece que é tudo muito rápido. Mas para chegar na final, parece que demorou tanto... A gente fica muito ansioso pra que aconteça logo. Às vezes, paro para pensar no que a gente conquistou para o clube e fico até sem acreditar.

O ano passado foi proveitoso, sabe, mas faltou um título. E aquilo ali te faz... você acaba remoendo e ficando mal por não ter conquistado aquele objetivo. Mas neste ano veio algo muito maior para coroar esse grupo e essa comissão espetacular.

Ricardo Moreira/Getty Images Ricardo Moreira/Getty Images

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