Reaprendendo a viver

Alisson fala pela 1ª vez sobre perder o pai, que morreu em 2021. Ele ainda chora de saudade todos os dias

Alisson Becker, em relato a Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Robbie Jay Barratt - Getty Images

Foi muito difícil passar por isso. Ainda é. Parece que o sentimento de perder alguém tão próximo quanto o meu pai dura a vida inteira. É algo que a gente não supera por completo.

Meus pais tiveram um papel muito importante na minha carreira, proporcionaram tudo pra mim e pro meu irmão. Todos os sacrifícios, aquela história comum na vida de jogadores de futebol. Conosco não foi diferente, não. Se somos o que somos, é por causa por eles.

Olha, desde que eu o perdi, eu recebi muito amor, carinho e cuidado do mundo do futebol. Mensagens de pessoas que eu nunca conheci pessoalmente, cartas de clubes e treinadores. Me senti abraçado, bem cuidado.

Nós vivemos coisas pessoais com meu pai, o batismo dele nas águas, entregando a vida dele para Deus. A gente tem uma visão de eternidade e aquilo já foi um consolo para o que estava por vir.

Eu vou dizer uma coisa que pode parecer dura, mas é verdade: depois que a pessoa morre, não tem o que fazer. Eu tenho esse alívio dentro de mim porque fiz tudo com meu pai em vida. Disse a ele tudo que tinha que dizer. Disse 'eu te amo', pedi perdão por muitas coisas e ele também fez isso comigo.

Tínhamos uma relação muito pura, muito mais que pai e filho. Éramos amigos. Eu sinto muito a falta dele. Ainda sinto. Não tem um dia que não penso no meu pai, vejo a imagem dele, as lembranças tomam minha mente e eu choro de saudade.

A gente não supera a perda de alguém tão precioso, mas tem que ter a sabedoria de seguir em frente como eu venho fazendo.

Lembro que a época em que ele faleceu era o auge da pandemia e eu não consegui estar presente no funeral. Participei online, foi uma decisão minha. O Liverpool me ofereceu tudo para viajar até lá, meus companheiros se ofereceram para fretar um voo para que pudesse ir direto até Porto Alegre. Fariam isso por mim se eu quisesse, mas eu não podia ir naquele momento.

Minha esposa estava grávida, era grupo de risco, e eu não podia colocá-la em perigo. Não podia deixá-la sozinha. Ela sofreu tanto quanto eu. Minha preocupação era minha mãe, mas meu irmão conseguiu estar com ela. Foi uma decisão racional ter ficado longe naquele momento.

O Liverpool também passava por um momento difícil, lutando por vaga na Champions, e se eu tivesse ido ao Brasil teria que ficar um tempo isolado e não sei se daria tempo para voltar a tempo de terminar a temporada. Meus companheiros também precisavam de mim.

Fiquei três dias em casa, sem treinar, e pareceu uma eternidade. No dia que eu voltei, percebi que tinha que seguir em frente por gratidão ao meu pai e também à força que recebi das pessoas do mundo do futebol e do meu clube.

Perdi só um jogo porque eu realmente não tinha forças naquele momento, mas depois voltei a jogar. Vivi muitas alegrias imediatamente. Foi a temporada em que fiz o gol (de cabeça, nos minutos finais). Meu filho nasceu no meio disso tudo, dois meses depois do meu pai falecer. Essas coisas trouxeram um alento para seguir em frente.

Tenho três filhos, minha esposa, minha mãe... todos que me amam e torcem por mim são motivação suficiente para continuar. A união da família nesse momento me deu forças. É por eles que eu sigo.

Falando em família, a minha é toda de goleiros. Eu nunca tinha me dado conta disso, acabou surgindo depois que eu ganhei projeção no futebol. Meu pai era goleiro no futebol da firma, minha mãe era goleira de handebol, meu bisavô jogou no gol do amador do Novo Hamburgo. Mas nunca nada foi imposto pra mim, é um privilégio vir dessa linhagem.

Quando eu comecei no futebol, as coisas quase foram diferentes. Meu irmão já era goleiro e me influenciou a fazer meu primeiro teste na linha, como volante. Eu tinha 8 anos e o Muriel tinha 13, já jogava na base do Inter.

Eu falei para o Muriel que queria jogar no gol, mas ele já sentia na pele o que era ser goleiro e tentou me tirar dessa. Goleiro sofre bastante. Ele me dizia que jogador importante era aquele que fazia gol. A gente não fazia ideia de como seria nossa história...

Então, eu fiz meu primeiro treino como volante na escolinha rubra, mas era uma confusão só. Tinha muita criança dentro de campo, todo mundo correndo atrás da bola... e não tinha goleiro. Eu já gostava, jogava no gol com meus amigos. Pedi ao treinador para ir pro gol.

No treino seguinte, já assumi a posição de goleiro desde o início. Só que ficou inviável para meus pais me levarem na escolinha. Eu morava em Novo Hamburgo e os treinos eram em Porto Alegre, a cerca de 50km de distância. Na época, a locomoção era difícil.

Mas quando é pra ser, acontece. E dois anos depois eu voltei a Porto Alegre para fazer um teste na escolinha do Inter. Eu fui a convite do próprio clube porque já começava a demonstrar aptidão técnica e qualidade para minha idade. Eu passei, mas só consegui continuar por causa do Léo e do Nilson. O Léo era um menino de Novo Hamburgo que jogava na linha e o Nilson era o pai dele, que o levava para o treino e me levava junto enquanto meus pais trabalhavam.

Foi por eles que consegui continuar, foram pessoas que me ajudaram. Ele não seguiu no futebol, ainda temos algum contato em redes sociais. Foram dois anos assim, até eu completar 12 e começar a pegar um transporte do Inter que passava de casa em casa pegando os meninos.

Eu já falei que tinha aptidão técnica e qualidade, mas me faltava uma coisa: altura. Não é que eu era baixo para minha idade, só que no futebol a gente encontra muito jogador já mais desenvolvido fisicamente. Eu fui ficando para trás. Isso me incomodava um pouco, não dá pra negar. Eu era bom tecnicamente, mas não era tão forte e acabava preterido. Meu tiro de meta não passava da intermediária defensiva...

A gente treinava em um campo de terrão no Beira-Rio, que era usado com estacionamento, e lá tinha uns matinhos espaçados, sabe? Eu colocava a bola bem em cima de um desses matinhos pra conseguir bater mais longe o tiro de meta.

Eu sofria porque não jogava. Até que aos 16 anos eu dei um estirão e cresci 17cm em coisa de um ano. Comecei a jogar e, de repente, fui convocado para a seleção de base.

Eu lembro muito bem desse dia. Estava na praia e recebi uma ligação e nem vi. Quando olhei, tinha várias ligações do meu avô. Liguei de volta, mas ele não atendeu. Estava voltando quando um tio ligou e me deu parabéns. Só que eu não sabia por quê. Quando ele me contou, saí correndo eufórico. Eu ainda não sabia naquela época, mas a emoção foi tão grande quanto seria na primeira convocação para a seleção principal.

Com toda certeza, nada disso teria acontecido na minha vida se não fosse meu irmão. Em termos de impacto profissional, ele foi a principal pessoa da minha vida. Antes mesmo de começar a treinar no Inter, eu ia com meus pais aos finais de semana para ver os treinamentos dele. Eu ficava atrás do gol para observá-lo e aprender. Eu tive a benção de ter alguém trilhando o caminho na minha frente e eu fui só seguindo os passos.

É assim que eu vejo meu relacionamento com ele: meu irmão abriu caminho e eu apenas segui. A gente tem por essência gostar muito de trabalhar, de se dedicar. Aprendemos dentro de casa, com nossos pais.

Quando começamos a treinar juntos, cada um levava o outro ao seu máximo. Quando eu parecia cansado, o outro puxava e incentivava a continuar. Crescemos muito nesse período juntos. Nos momentos de derrota, ele também sempre esteve ao meu lado, me ajudou na formação como goleiro e como ser humano. É uma grande referência pra mim de homem, pai de família, amigo e irmão.

Mesmo quando eu entrei no Inter e já era goleiro do time de base, eu adorava ficar no clube assistindo os treinos do meu irmão e dos companheiros dele. Sempre que não batia os horários de treino, eu estava lá.

Algumas vezes, os treinadores me chamavam para treinar junto. Eu com 12 pra 13 anos treinando com goleiros de 17, 18, 19 anos. Na época era meu irmão, Marcelo Boeck, Renan, Luís Carlos, nomes com projeção no Inter.

Quando eu entrava pra treinar com eles, eu morria. Sério, quase vomitava no treino. Era muito intenso, muito forte. Às vezes eu fazia o mesmo número de repetições deles e só o aquecimento já era pesado pra mim. Em algum momento pegavam um pouco mais leve comigo, mas já tinha intensidade.

Isso me preparou demais. Imagina poder ter esse tipo de treinamento e observar goleiros mais maduros assim de perto? A gente aprende muito observando.

As coisas foram acontecendo no Inter e começaram a aparecer sondagens de outros clubes. Isso é algo que mexe com a gente na perspectiva positiva, nos dá uma alegria, um respaldo de que algo de bom está sendo feito.

Ter a oportunidade de jogar na Europa era um sonho, mas deixar o Inter passou longe de ser algo simples ou fácil. Eu tenho muito carinho, muita gratidão e muito amor pelo Inter. Mas foi um momento que eu tive que decidir pela minha carreira, dar um passo à frente e alçar voos mais altos.

O mais difícil foi deixar aquela vida para trás, sabe? A vida no Inter, perto da família e dos amigos... Mas eu tinha muito claro dentro de mim que profissionalmente era a escolha certa.

Quando eu cheguei na Roma, tive um ano para matar o ego. Eu sabia o quanto eu era bom, tinha total certeza e convicção que poderia ser titular, mas ao mesmo tempo tive a humildade de respeitar os companheiros e a decisão do treinador.

Ali, os treinamentos eram a minha vitrine. As pessoas internamente sabiam o que eu estava fazendo e eu já era titular da seleção brasileira, então, tinha que me manter em alto nível, por isso treinava como se fosse jogo.

Eu tive a benção de ter um ótimo treinador de goleiros, o Marco Savorani, um cara que não me deixou abaixar a guarda nos treinos, me incentivava muito e me treinava como se eu estivesse jogando, até mais forte.

Eu até tive bastantes partidas se contar a seleção brasileira, foram quase 30 jogos. Mas é um processo difícil porque no Brasil a gente está acostumado a jogar todas as partidas. Chegar lá e ter que disputar a posição mesmo sendo o titular da seleção brasileira foi um momento de aprendizado. Eu sabia que meu momento ia chegar. E chegou.

Pela Roma eu vivi algo espetacular, histórico. Chegamos a uma semifinal de Champions, e ainda com um gostinho de que dava pra chegar na final, muito por causa daquele jogo contra o Barcelona. Perdemos por 4 a 1 no Camp Nou, fora as ameaças. O que vivemos no segundo jogo foi incrível. Fizemos um jogo praticamente perfeito em Roma, não precisei fazer nenhuma defesa de tão bem que jogamos.

Vou lembrar pra sempre com muito carinho de todos os companheiros responsáveis por aquela virada. O gol do De Rossi, o do Dzeko e do Manolas, que é uma figuraça. Foi emblemático.

Não chegamos na final por pouco, faltou um gol contra o Liverpool. Lembro que eles já cogitavam meu nome como reforço. Acho que aquele jogo serviu como experiência de viver um dia em Anfield, ver a torcida de perto. Aquilo contribuiu para minha escolha pelo Liverpool.

Se você me perguntar como foi jogar em Anfield como adversário eu consigo resumir pra você em uma palavra: horrível. Anfield é um estádio espetacular, quando a torcida joga junto é muito barulhento — e naquele jogo eles estavam 'on fire'.

Tive proposta do Chelsea também, mas viver aquilo me animou muito para jogar pelo Liverpool. E o Klopp também. Ele é uma pessoa sensacional, um dos grandes treinadores da história do futebol mundial. É um cara que faz tudo para nos deixar à vontade para jogar e trazer seu estilo para o time.

Enquanto eu estava na Roma, eu sabia que havia alguma desconfiança do Brasil comigo. Sabe, eu não sou de acompanhar notícias de futebol, principalmente relacionadas a mim. Não vejo elogio e não vejo crítica, faz mais a diferença o feedback dos profissionais que trabalham comigo no dia a dia.

Só que acaba chegando uma coisa ou outra. Quando questionavam a titularidade na seleção de um reserva na Roma, eu respeitava. Até porque era verdade, os argumentos eram válidos. Mas não pela minha performance. Eu sempre fui bem pela seleção. Mesmo depois da eliminação na primeira fase da Copa América de 2016, o Tite me manteve no gol porque eu dava resposta dentro de campo.

Quando me falam do chute do Kevin de Bruyne, eu só penso que foi um momento triste, que marcou muito porque nosso grupo tinha chances de fazer algo grande com a seleção.

Nosso sonho acabou naquela partida, mas temos que saber vencer e saber perder. Eu enfrento o de Bruyne várias vezes e ele já foi considerado o melhor jogador da Premier League, sempre faz a diferença pelo City e pela seleção dele. É um craque, temos que reconhecer.

Hoje, eu me vejo em um grande momento na carreira, comento com amigos que eu desfruto muito mais do futebol do que antes. Talvez seja a experiência de viver grandes momentos que traz uma sensação de que estou pronto para qualquer ocasião, para qualquer jogo.

Se você me perguntar se estou mais preparado do que em 2018, te respondo que estou tão preparado quanto, em um momento maduro, tendo conquistado títulos que me deram bagagem. Tenho muita fé na qualidade do nosso time e no potencial que temos para fazer grandes coisas no Qatar.

Por falar em Copa do Mundo, a minha primeira lembrança de Mundiais é uma história engraçada com meu pai. Em 98, nós estávamos em família em casa e o Brasil jogava contra a Holanda pela semifinal. A partida acabou indo para os pênaltis.

O goleiro da seleção era o Taffarel, que hoje se tornou um grande amigo e me deu o privilégio de poder trabalhar com ele na seleção e no Liverpool. Ele tem um impacto muito grande e existe um respeito e admiração enorme por ele aqui. Um cara que jogou 20 anos atrás e ainda é lembrado e reconhecido como uma lenda.

Naquele dia, minha tia tinha acabado de fazer um bolo de laranja e assim que o Taffarel defendeu o pênalti que deu a classificação para o Brasil, meu pai levantou comemorando muito empolgado, pegou o bolo e enfiou na cara.

Não sei por que ele fez isso, mas foi muito engraçado. Acho que é um pouco do que a Copa do Mundo faz com as pessoas, provoca esse tipo de reação de alegria genuína e intensa a ponto de fazer coisas como essa. Tomara que em algum canto do Brasil ou do mundo, algum pai possa enfiar um bolo na cara para comemorar uma defesa do Alisson, uma classificação do Brasil e, tomara, o título da Copa do Mundo.

Minha História

  • Marquinhos

    O tempo passou e, quando eu tinha 19 anos, o maior time da França pagou 35 milhões de euros por mim. Se isso não é ironia do destino, vai ser o quê?

    Imagem: David Ramos/FIFA via Getty Images
    Leia mais
  • Weverton

    Todo fim de ano eu volto àquele campo e treino nele. É naquele campo duro, onde eu me ralava inteiro e jogava com três shorts, que eu começo meu ano.

    Imagem: Cesar Greco/SE Palmeiras
    Leia mais
  • Raphinha

    Perdi muitos amigos para o mundo do crime. Amigos que jogavam até dez vezes mais que eu, que poderiam estar em um grande clube do mundo.

    Imagem: Craig Mercer/Getty Images
    Leia mais
  • Bruno Guimarães

    Imagina a cena: eu, que já tive um puta cagaço de jogar bola, vomitava antes dos jogos, franzino de tudo, ouvindo o Diniz dizer: 'você vai ser um jogador espetacular'.

    Imagem: James Gill - Danehouse/Getty Images
    Leia mais
  • Rodrygo

    Eu sempre falei que é sacanagem. Tanta gente pra comparar e vai comparar com o Neymar, pô (risos)? Fazer tudo que o Neymar fez seria muito difícil.

    Imagem: UOL
    Leia mais
  • Fabinho

    Eu não estive na Copa do Mundo de 2018 e sei que a mudança de posição me fez perder espaço. Eu estava voando como volante no Monaco.

    Imagem: UOL
    Leia mais
  • Alisson

    Não tem um dia que não penso no meu pai. As lembranças tomam minha mente e eu choro de saudade. A gente não supera a perda de alguém tão precioso.

    Imagem: UOL
    Leia mais

+ especiais

Reprodução/TV Globo

FBI estava em volta de Galvão Bueno e Pelé durante a Copa do Mundo de 1994 --incluindo no grito 'É tetra, é tetra'.

Ler mais
Reprodução

Brasileiras no Qatar: 'Para tirar a carteira de motorista, eu preciso de uma carta de autorização do meu marido'.

Ler mais
Zô Guimarães/UOL

'Daniel Alves esqueceu de onde veio. Ele veio daqui, desse fim de mundo. Salitre é lugar pobre, mas rico de coração'.

Ler mais
Cesar Sbrighi/Divulgação

Marca Neymar supera R$ 1 bilhão e o Qatar pagou caro para que ele se tornasse a cara da Copa do Mundo de 2022.

Ler mais
Topo