Ele desafiou um presidente

Amilcar Barbuy, o homem que fez a seleção de SP deixar o campo ao peitar um presidente do Brasil. E meu bisavô

Marcello de Vico Colaboração para o UOL, em Santos (SP) Arquivo pessoal

Hoje, dia 29 de abril de 2020, meu bisavô, Amilcar Barbuy, completaria 127 anos. Tenho o maior orgulho dos meus dois sobrenomes, Duganiero e De Vico, mas seria uma honra ter o Barbuy ao lado deles. Não o conheci pessoalmente, mas desde pequeno fui envolvido pelas histórias que minha avó e minha mãe contavam.

Meu bisavô foi jogador de futebol nas décadas de 1910 e 20, quando não se jogava por dinheiro, mas por amor. E pelo que dizem, foi dos grandes: campeão por Corinthians, Palmeiras e seleções brasileira e de São Paulo, também atuou pela Lazio, da Itália, ajudando inclusive na profissionalização do esporte no Brasil. Tem quem fale até que, tecnicamente, só foi inferior a um tal de Pelé...

Bem diferente de hoje, ele não recebia nada para jogar. Pelo contrário. Tinha de estar em dia com a mensalidade do clube para poder entrar em campo. E ainda era o responsável por lavar os uniformes dos times — missão essa que geralmente acabava ficando com a minha bisavó. Ele passou a ser remunerado pelo futebol só quando seguiu para a Itália, em 1931, para trabalhar como técnico da Lazio. Foi o primeiro treinador brasileiro no exterior. Comandou ainda, além de Corinthians e Palmeiras, times como São Paulo, Portuguesa e América-MG.

Muitas histórias que sei do meu bisavô vieram através dos familiares, mas outras tantas eu fiquei sabendo ao ler a biografia que o Maurício Sabará escreveu. Não sabia, por exemplo, que ele foi o grande destaque do primeiro título da história do Corinthians, o Campeonato Paulista de 1914. Ele ainda foi um dos capitães do Brasil na primeira conquista relevante da seleção, o Sul-Americano de 1919, com Friedenreich marcando o gol do título sobre o Uruguai.

"O futebol chegou ao Brasil em 1894, mas somente em 1919, com a primeira conquista da seleção brasileira do Campeonato Sul-Americano, sendo Amilcar o capitão, que o esporte nasceu pra valer no país", diz trecho da biografia.

Meu bisavô - que começou a carreira como centroavante e depois passou a jogar como centro-médio (atual volante) - também liderou o time nas duas maiores goleadas da história do Corinthians: um 11 a 0 sobre o Santos em plena Vila Belmiro, pelo Campeonato Paulista de 1920, e um 12 a 2 contra o SC Internacional, pelo Paulistão de 1921. Neste último, balançou as redes cinco vezes. Foi o jogo em que marcou o maior número de gols da carreira.

Mas nenhuma das histórias me fascinava tanto quanto a de uma final de um campeonato de seleções estaduais em 1927.

Arquivo pessoal
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O jogo em que ele peitou o presidente da República

Mais do que o simples fato de ele ter jogado por todos esses times, tinha outra coisa que me deixava ainda mais orgulhoso de ser seu bisneto: as histórias que mostravam o ser humano especial que ele era. E essa que vou contar agora representa bem isso.

Ele era o capitão da seleção paulista no Campeonato Brasileiro de seleções estaduais de 1927. Era a final contra o time do Rio de Janeiro, em jogo em São Januário, então o maior estádio do país. O presidente do Brasil na época, Washington Luiz, estava presente. A rivalidade entre paulistas e cariocas no futebol já era enorme e os anfitriões venciam por 1 a 0. Veio o empate e, não fosse um pênalti claro não marcado para os paulistas, seria a virada.

No lance seguinte, o juiz marcou um pênalti inexistente para o time do Rio de Janeiro, que, diga-se de passagem, era a capital do país na época. Enquanto a torcida explodia em comemoração, meu bisavô se dirigiu ao árbitro para cobrar a penalidade e ouviu a seguinte frase: "Se eu não fizer isso, me matam".

Amilcar decidiu então tirar o time de campo. Em meio à confusão, recebeu um recado do presidente — através de um assistente — para não abandonar a partida. Eis que a resposta vem:

Avise ao governante que ele manda no Brasil, mas no campo quem manda sou eu".

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Segue o fim da história com as palavras do meu próprio bisavô, em uma entrevista ao jornalista Flávio Iazzeti para o jornal O Esporte: "Eu, que não o conhecia [presidente], disse para ser informado ao governante que ele manda no Brasil, mas no campo quem mandava era eu, e o jogo não prosseguiria com a marcação da penalidade. E não cedemos. Por fim, Ary Aramante [árbitro] mandou bater a pena máxima e Nilo [do time carioca], sem guardião no arco, chutou-a para fora. Culminou então o erro do árbitro mandando repetir o tiro, para que Nilo fizesse o tento que assim deu a vitória dos cariocas por 2 a 1, quando em regra o resultado foi 1 a 1 e os paulistas perderam por não continuar na luta. Foi esse, aliás, o único ato de indisciplina da minha carreira".

Os cariocas ficaram com o título (manchado) e meu bisavô recebeu alguns jogos de punição, mas não se rendeu ao jogo sujo e muito menos deixou de fazer o que achava certo por ordens de uma pessoa que se via no direito de dar palpite onde não devia. E isso, pra mim, vale mais do que qualquer título que ele conquistou.

Acho que é a história mais famosa do meu bisavô na família. Curioso é que nem a minha avó acreditava nela nas primeiras vezes que ouviu. "Quando ele contava, achava: 'imagina, né, não é verdade'. Mas depois foi confirmado e publicado, era a pura verdade. Ele enfrentou o presidente, sim".

Existem fontes que costumam dizer que quem fez o desafio a Washington Luiz foi Luiz Matoso, o centroavante Feitiço, que era bem mais temperamental que Amilcar Barbuy. Mas quando Amilcar foi sepultado, em 1965, um repórter entrevistou Feitiço, que estava presente. Ao ser perguntado quem tinha desafiado o presidente, o próprio confirma que não foi ele. A informação está na Folha de S. Paulo de 26/08/1965.

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O 1º corintiano na seleção trocou o clube pelo Palestra Itália

Meu bisavô nasceu em 1893, em Rio das Pedras, cidade do interior paulista. Começou a se interessar por futebol depois que se mudou para São Paulo, ainda pequeno. Segundo minha avó, o esporte era coisa da família. Quase todos seus irmãos também jogavam. Os campos de várzea no Bom Retiro faziam parte do dia a dia e, depois de passar por alguns clubes, ele chegou ao Botafogo do Bom Retiro, time do bairro.

"Quando as portas do Botafogo do Bom Retiro foram fechadas, boa parte dos seus jogadores ingressou no Corinthians entre 1910 e 1916. E no final de 1912, Amilcar Barbuy, o primeiro grande jogador da história corintiana, chegava ao clube do qual se tornaria torcedor", descreve a biografia.

Ao lado de Neco, meu bisavô foi o primeiro grande ídolo do Corinthians. Comandou o time no primeiro título da história do clube, o Paulista de 1914, e a partir de 1915 tornou-se capitão da equipe. As grandes atuações com a camisa alvinegra lhe renderam uma convocação para a seleção nacional, o que fez dele o primeiro corintiano a ser chamado para defender o Brasil.

Mas como toda relação de amor, Amilcar Barbuy e Corinthians também não viveram só de alegria. Um desentendimento com a diretoria resultou em uma mágoa que jamais foi superada: a saída do clube em 1923 e a ida ao Palmeiras um ano depois, após cogitar até pendurar as chuteiras.

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"Quem me contou isso foi o filho dele, o Amilcar Barbuy Filho. Foi uma questão de mágoa política: os direitos de venda de bebida na sede do clube pertenciam ao pai dele [Giovane Barbuy] e, quando o Corinthians muda de campo, esse direito é repassado a outra pessoa. O Amilcar, magoado, num primeiro momento abandona o futebol, mas acaba chamado para jogar no Palestra Itália, justo o maior rival do Corinthians. Tem um longo depoimento em que ele fala que estava magoado, que esperou até o último minuto para o chamarem de volta. E aí ele chega ao Palestra Itália, também um jogador importante no clube, e fica até o início dos anos 30", conta o jornalista Celso Unzelte, responsável pelo prefácio da biografia de Amilcar.

"E acho que, principalmente na história do Corinthians, ele perdeu muito espaço para o Neco justamente por isso. O Neco ganhou uma estátua, passou a ser muito valorizado... Não que o Neco não mereça, mas como o Amilcar trocou o clube pelo maior rival, a memória dele foi um pouco menos privilegiada na história do Corinthians", acrescenta.

As pazes foram feitas mais pra frente. Amilcar até voltou ao clube para ser o treinador - hoje, é o quinto técnico que mais comandou o Alvinegro, com 240 jogos, atrás apenas de Oswaldo Brandão, Tite, Rato e Mano Menezes. Mas a mágoa persistiu até o fim da vida do meu bisavô, enterrado em 1965 com a bandeira do maior rival, o Palmeiras. O Corinthians não mandou representantes ao enterro. O clube de Palestra Itália, sim.

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O Amilcar Barbuy é uma memória muito importante no futebol brasileiro. Dizia o Antônio Pereira, um dos fundadores do Corinthians, que técnica igual à do Amilcar ele só viu do Pelé. É um depoimento importante duma época em que o Amilcar marcou. Ele é um nome a ser resgatado como ídolo corintiano e como grande jogador brasileiro que foi

Celso Unzelte, jornalista e historiador, autor do Almanaque do Timão

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Pioneiro dos brasileiros no futebol da Itália

Meu bisavô não ganhava nada como jogador. Nem mesmo no começo da carreira de técnico. Ele tinha de trabalhar em outra área para sustentar a família; no caso dele, foi impressor gráfico até se aposentar, e ainda teve uma loja de materiais elétricos. O dinheiro com o futebol só começou a pingar mesmo em 1931, quando foi chamado para comandar a Lazio. Era a primeira vez que um brasileiro passava a comandar um time do exterior.

Um depoimento da época representa bem o sentimento dele em relação ao amadorismo no futebol brasileiro: "Vou para a Itália. Cansei de ser amador no futebol, onde essa condição há muito deixou de existir, maculada pelo regime hipócrita da gorjeta que os clubes dão aos seus jogadores, reservando-se para si o grosso das rendas. Durante 20 anos prestei desinteressadamente ao futebol nacional os meus modestos serviços. Que aconteceu? Os clubes enriqueceram e eu não tenho nada. Sou pobre. Sou um pária do futebol. Não tenho nada. Vou para o país onde sabem remunerar a capacidade do jogador".

De navio, ele foi para a Itália acompanhado da minha bisavó e dos filhos — minha avó e meu tio-avô. Por lá, como não podia deixar de ser, vieram mais algumas riquíssimas histórias. Uma das minhas preferidas é essa: em um jogo contra o Bari, a Lazio estava bem desfalcada por conta de uma série de lesões no elenco. Meu bisavô, que era o técnico, teve que entrar em campo para cobrir as ausências, e acabou sendo fundamental para a vitória.

No dia seguinte, os jornais noticiaram o feito, dizendo que o triunfo dependeu inteiramente dele, 'comandando o jogo como um general comanda as suas tropas'. Fazia jus a um título do jornal A Gazeta, de 1929, em que ele era chamado de Generalíssimo da Vitória, após mais um triunfo da seleção paulista em que ele foi peça fundamental. O Generalíssimo, aliás, foi um de seus apelidos e o nome dado à biografia escrita por Maurício Sabará.

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A história é uma entre milhares da quase infinita memória do apresentador e jornalista Milton Neves: "Claro que, como nasci em 1951, a lembrança que tenho de Amílcar Barbuy é de ouvir os comentários de muitos veteranos de Muzambinho-MG sobre um dos grandes parceiros do lendário Neco no Corinthians. E também sobre a surpresa de todos quando o mesmo deixou o Timão em 1923 para defender o já rival Palestra Itália, em 1924. Mas o que me chama a atenção mesmo na riquíssima e vitoriosa trajetória de Amílcar é que, muito antes de o Brasil ser o 'país do futebol', quando era simplesmente mais um país que jogava futebol, ele já tinha conquistado tanto respeito no cenário futebolístico mundial que foi chamado para treinar a Lazio, da capital italiana. E era tão bom de bola que teve que 'despendurar as chuteiras' para ajudar seu time, que sofria com lesões de alguns atletas, tornando-se assim o primeiro futebolista brasileiro a jogar por um clube na Itália".

Para mim, essa é das maiores vitórias de Amílcar, o homem que abriu as porteiras do futebol italiano para tantos brasileiros bons de bola que viriam mais tarde".
Milton Neves

A passagem pela Itália se encerrou em 1932, por motivos particulares. De volta ao país natal com toda família, meu bisavô retomou o cargo de impressor gráfico. Manteve o futebol como 'atividade extra'. A partir do ano seguinte, um de seus sonhos se tornou realidade: o começo do futebol profissional no Brasil. Em 34, com o Corinthians em crise, aceitou o convite para ser o técnico alvinegro. Depois, passou por América-MG, Portuguesa e São Paulo, até se aposentar em 1943, com a missão mais do que cumprida.

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O homem que eu não conheci

Nasci em 1985, 20 anos depois do falecimento do meu bisavô. Não pude conhecê-lo pessoalmente, mas ele sempre esteve presente, seja nas histórias contadas ou em textos espalhados por aí, como essa descrição que consta no livro "Os melhores jogadores de futebol do Brasil", de Luciano Ubirajara Nassar.

"Amilcar Barbuy abriu as portas do profissionalismo italiano ao Brasil, fortalecendo os laços diplomáticos e de cordialidade entre os dois países irmãos. Até nisso Amilcar foi pioneiro. Símbolo dos Bravos, Deus, Mito e Entidade. Ao longo da carreira recebeu um apelido: 'O Pai da Bola'", diz um deles. Ou então essa: "Homem exemplar, modesto de caráter, dignidade e pureza. Amilcar Barbuy deixou uma herança de amor, respeito, talento, fibra e lealdade para o povo brasileiro e para toda a humanidade".

Isso sem contar nas recentes homenagens feitas pelo Sport Club Corinthians, fato que emocionou demais minha família, em especial, claro, minha avó e meu tio-avô. A primeira foi em 2014, comemorando os 100 anos do primeiro título da história corintiana. Dois anos depois veio outra, para recordar o centenário da taça do Campeonato Paulista de 1916, segunda conquista do clube, com direito a 100% de aproveitamento na campanha (9 jogos e 9 vitórias).

"A primeira foi a mais emocionante. Dá mais impacto, né? É uma coisa que você não espera", recorda minha avó, que teve a oportunidade de entrar no campo da Arena Corinthians e desfilar com a taça (ao lado do meu tio-avô) de 1914 no intervalo do clássico contra o Santos, pelo Campeonato Brasileiro.

Imaginem então o meu orgulho quando alguém da família diz que guardo alguma semelhança física com ele? Não preciso mostrar minha foto pra vocês, mas não há dúvidas de que ele era muito mais bonito. O que mais gosto em sua personalidade é o lado discreto e reservado que ele tinha, tal como o bisneto que aqui vos escreve.

"Uma vez eu estava com ele no Viaduto do Chá [centro de São Paulo], e uma pessoa do outro lado da rua acenou. Eu perguntei quem era, e ele falou que era o prefeito. 'E você só acena para o prefeito'?, perguntei. Ele disse: 'É. Depois eu cumprimento melhor e vão falar 'olha o puxa saco do prefeito'", conta minha avó.

Mesmo podendo se gabar (e até se beneficiar em certas ocasiões) de conhecer pessoas mais famosas, isso era algo que ele, sempre que possível, costumava evitar. Eram as coisas mais simples que de fato o atraíam, sendo a mais valiosa delas a proximidade à sua família — algo que busco seguir desde sempre.

E por falar em família, nossa alegria e orgulho ficaram ainda maiores em 2015, quando o jornalista Maurício Sabará — a quem agradeço imensamente — lançou a biografia do meu bisavô: "O Generalíssimo Amilcar Barbuy", livro que conta com o prefácio de Celso Unzelte. Ambos se tornaram amigos da família, inclusive comparecendo ao velório de Amilcar Barbuy Filho, irmão da minha avó.

Como costumam dizer por aí, hoje tem festa no céu, e espero que essa data especial sirva para resgatar ainda mais a história do meu bisavô. Viva, Amilcar!

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