O habitat de Animal

Ex-moradora de rua, Ana Garcez largou drogas pelo esporte, mas está na mira do despejo pelo governo de SP

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo Fernanda Paradizo

A caixa de sapato foi o primeiro "lar" de Ana Luiza dos Anjos Garcez, abandonada pela mãe assim que nasceu. Consequentemente, ela cresceu pelas ruas da cidade de São Paulo e, para sobreviver, além de sustentar o vício em drogas, passou a roubar. Virou a "Tia Punk", líder de uma gangue de jovens assaltantes que usava o chafariz da Nove de Julho para tomar banho.

A cena do banho virou notícia e ligou um sinal de alerta em Fausto Camunha, então secretário de Esporte da cidade de São Paulo em 1998. Ele decidiu acolher o grupo e ofereceu aulas de atletismo e moradia no Centro Olímpico, na Zona Sul da capital. Ana pegou gosto pelo esporte e, dois anos depois, foi transferida para os alojamentos do Complexo Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, no ginásio do Ibirapuera, onde passou a treinar com Wanderlei Oliveira.

Com quase 40 anos, Ana Luiza largou as drogas, abraçou o esporte e se tornou uma atleta de alto rendimento. A "Tia Punk" que corria pelas ruas para fugir da polícia não existia mais. A partir de então, ela ficou conhecida apenas como "Animal", apelido que ganhou pelo comportamento arrojado e determinado.

Anos depois e inúmeros títulos conquistados pelo mundo, Ana agora luta pelo lar que transformou sua vida. A atleta de 60 anos recebeu um aviso do governo: terá de deixar o alojamento do ginásio e, consequentemente, toda a sua rede de apoio que construiu no bairro.

Fernanda Paradizo
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A vida após a caixa de sapato

A única informação que Ana Luiza tem de sua mãe é que ela a abandonou numa caixinha de sapato assim que deu à luz. Ela foi levada ainda bebê a uma das unidades da antiga Febem (Fundação do Bem Estar do Menor) - hoje Fundação Casa - próxima ao aeroporto de Congonhas, cresceu por lá até conseguir o primeiro emprego em uma casa de família.

Ana Luiza passou a morar nessa residência e trabalhou incansavelmente, porém nunca viu a cor do dinheiro até que se revoltou com a patroa. Ela pegou três malas de viagem, roubou tudo o que conseguiu enfiar na bagagem e foi morar nas ruas do Centro. Foi na região da Praça da República que Ana foi engolida pela realidade da situação que vivia: passou a usar todo o tipo de droga que se possa imaginar e praticou assaltos até se tornar a Tia Punk, a líder de uma gangue que vivia fugindo da polícia.

"A gente estava em frente ao Mappin e o filme que era transmitido nas televisões da vitrine da loja me chamou atenção: era "Carruagens de Fogo". Nunca me esqueci daquela música. Decidi que ia correr. Mandei os meninos roubarem shorts, camiseta, tênis e meia. Na minha primeira prova que me inscrevi, corri cheirando cola e passei um dia inteiro estragada", relembrou Ana.

Fernanda Paradizo Ana Luiza após competir em corrida de Nova Iorque (EUA)

Ana Luiza após competir em corrida de Nova Iorque (EUA)

O banho que mudou tudo

Se falassem para o grupo de moradores de rua que convivia com Ana Luiza que ela se tornaria uma atleta de alto rendimento, todos iriam dar risada. Ninguém acreditava que uma viciada em drogas poderia virar a chave assim. E foi aí que - acreditem ou não - o destino agiu.

"Eu estava em casa e vi uma reportagem em que mostrava que Ana Luiza e o grupo dela tinham problemas. Eles estavam tomando banho no chafariz da Nove de Julho. Pedi para localizá-los. Ela foi conversar comigo, falou sobre essa ideia de correr e eu percebi que ela tinha potencial grande para maratonas. Ofereci um alojamento no Centro Olímpico", contou Fausto Camunha, então secretário de esportes de São Paulo em 1998.

"Quando eu saí da secretaria, a Magic Paula entrou como diretora do Centro Olímpico e tirou a Ana Luiza de lá. Eu falei com o secretário estadual da época e pedi para que acomodasse a Ana no Ginásio do Ibirapuera, onde tinham alojamentos para o Projeto Futuro, que incentivava a prática de esportes. Ele imediatamente autorizou e ela foi morar lá em 2000", acrescentou.

O Projeto Futuro foi criado pelo governo do estado de São Paulo e revelou atletas como Fabiana Murer, Vanderlei Cordeiro de Lima e Maurren Maggi. Foi, então, neste mesmo complexo que Ana Luiza iniciou sua caminhada como atleta ao lado do treinador Wanderlei Oliveira.

Fernanda Paradizo Ana Luiza dos Anjos Garcez posa na Times Square, em Nova Iorque (EUA)

Ana Luiza dos Anjos Garcez posa na Times Square, em Nova Iorque (EUA)

Ana se torna atleta aos 40 anos

Os primeiros três anos de treinamento foram uma espécie de "detox" para Ana Luiza. Com apoio de Fausto Camunha, Wanderlei Oliveira comandou uma equipe multidisciplinar com médicos, assistente social e psicólogos.

"Ela tinha problemas de saúde, barriga de verme e nesse período nós cuidamos de tudo isso", contou o treinador.

Quando Ana Luiza completou 40 anos, os resultados expressivos começaram a aparecer em competições menores e, pouco depois, em corridas nacionais e estaduais. Rapidamente, a Animal se destacou em provas internacionais que conseguia ir graças ao apoio de amigos que ela fez desde que se mudou para o Ibirapuera.

"Aos 43, ela foi vice-campeã de meia maratona em Buenos Aires e embalou. Ganhou provas nos Estados Unidos e, com o passar dos anos, ela se tornou uma participante de honra e vai todo o ano - como convidada - para os 5 km de Nova Iorque, a prova que antecede a famosa maratona", comentou Wanderlei Oliveira.

A prova mais recente que participou foi no último domingo (16), quando chegou em quarto lugar na classificação geral entre os 3 mil atletas que competiram na "Corrida e Caminhada Eu Mulher com a Hello Kitty".

Nos períodos livres, Ana Luiza ainda viajava pelo estado de São Paulo para dar palestras sobre a própria história ao lado de Lu Alckmin, esposa de Geraldo Alckmin, atualmente vice-presidente e que foi governador entre 2001 e 2006 e 2011 e 2018.

"Eu falava para as crianças que, em primeiro lugar, era o respeito pelos professores e treinadores. É preciso estudar para também praticar esporte. Eu falava sobre a mudança da minha vida após ter largado as drogas para virar atleta", contou a Animal.

A Ana sempre foi uma pessoa conhecida pelas autoridades, até porque se tornou exemplo de projetos do próprio governo. Tudo mudou quando Tarcísio assumiu e nomeou os novos secretários. Eles desconhecem a Ana e dizem que ela mora lá de forma irregular

Wanderlei Oliveira, treinador de Ana Luiza há 23 anos

Fernanda Paradizo

Por que o ginásio é tão importante

No dia 22 de junho, Ana Luiza foi orientada por duas psicólogas do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) a deixar o alojamento até o dia 31 de julho. Segundo pessoas próximas à atleta, o governo afirma que ela ocupa o espaço de forma irregular e vive em situação precária. A ideia das autoridades do estado de São Paulo é fazer uma reforma no local e, para isso, há a necessidade de transferir a atleta para um abrigo.

"Para o atual governo, a Ana é um ser estranho. Eles dizem que querem tirá-la de lá para reformar. Como ela tem 60 anos, deram a opção de levá-la a um asilo público. Isso é etarismo. A Ana é uma atleta de nível nacional. Outra sugestão que fizeram é uma casa de acolhimento em São Bernardo do Campo. Não tem nada a ver, ela treina comigo diariamente no Centro Olímpico, que é próximo ao ginásio do Ibirapuera", disse Wanderlei Oliveira.

"Eu expliquei que não vivo de forma irregular. Quem me colocou lá foi o governo da época. Eu não quero ir para um asilo, eu quero ficar na minha casa. Eu sou uma atleta, treino todos os dias e faço provas aos fins de semana", comentou Ana ao UOL.

Ana Luiza vive há 23 anos no ginásio do Ibirapuera e tem uma rotina confortável: vai a pé (ou correndo) aos treinos no Centro Olímpico, na Vila Clementino, e faz as refeições em restaurantes dos amigos que fez ao longo dos anos, que são próximos do complexo esportivo. Dona Heloisa, sua madrinha que a conhece desde os tempos que Ana vivia na rua, mora na mesma região, e a academia onde a atleta faz o fortalecimento muscular e fisioterapia é por lá também.

"Ela tem uma rede de apoio que a ajuda com alimentação, carona aos aeroportos - quando ela precisa viajar para competições - ou para outros lugares, entre outras coisas. A Ana está acostumada e conseguiu se livrar do vício nesta nova vida que construiu", ressaltou o treinador da Animal.

A Ana saiu da rua e largou todas as drogas para fazer o que ela amava. E agora querem tirar do local de onde ela conquistou tudo isso. É a casa dela, a vida dela é aqui. Ela faz a academia, as refeições, tem a minha casa onde ela vem quando quer. Todo mundo aqui no bairro gosta muito dela está preocupado com essa situação

Heloisa Galvão, madrinha de coração de Ana Luiza há mais de 20 anos

Fernanda Paradizo Fernanda Paradizo

O que o governo diz

Em comunicado enviado à reportagem do UOL, a Secretaria de Esportes de São Paulo afirma que há uma "ocupação irregular do espaço público" e que está procurando alternativas para abrigar as pessoas que vivem nas imediações do ginásio do Ibirapuera.

A Secretaria de Esportes do Estado de São Paulo tem buscado alternativas para abrigar e acolher duas pessoas que ocupam irregularmente o alojamento do Complexo Desportivo Constâncio Vaz Guimarães (Ibirapuera). Nos últimos dias 22 e 27 de junho, com o apoio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), foram realizadas duas tentativas de abordagem social para a apresentação de propostas de conciliação e realocação. No último dia 16, o Ministério Público de São Paulo solicitou à Pasta informações sobre a ocupação irregular de espaço público no complexo desportivo. Tendo em vista a situação de precariedade da instalação, a Secretaria informou ambos sobre a necessidade de serem direcionados e acolhidos em locais com condições adequadas para moradia

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