Da periferia à telinha

Primeira mulher comentarista da Globo, Ana Thais Matos enfrentou pobreza e machismo até virar referência na TV

Beatriz Cesarini Do UOL, em São Paulo JOAO COTTA/TV Globo/Divulgação

Minha família tem uma origem humilde, bem pobre mesmo. Minha mãe Francisca era empregada doméstica, vendia bandeiras de times no estádio do Pacaembu e cuidava de mim e dos meus cinco irmãos. Em 2008, ela ainda não tinha celular. Eu tinha que telefonar para um orelhão que ficava perto da casa em que ela morava, na cidade de Itanhaém, para ela ir me atender.

- Mãe, consegui entrar na faculdade. É de jornalismo.
- Jornalismo é o que a Fátima Bernardes faz?
- É, sim.
- Ai, filha! Que bom!

Minha mãe, então, começou a chorar e relembrou de todas as nossas batalhas. Foram tantas coisas. E, nesse momento, tudo fez sentido: as privações, as escolhas que tive que tomar, abdiquei da minha juventude. Mas o jornalismo me escolheu.

Depois de quase tentar uma carreira como jogadora de futebol, entreguei currículo em lojas de shopping, fui recepcionista, office girl e assistente em um escritório de arquitetura até que me tornei comentarista na maior emissora de televisão do país. E tenho um quadro no programa da Fátima Bernardes. Eu, uma menina de periferia.

JOAO COTTA/TV Globo/Divulgação

Quem é ela

Nascida em São Paulo em 1985, Ana Thais Matos é um dos rostos da nova geração de opinião da imprensa esportiva brasileira, numa leva de profissionais que soube chegar ao público usando plataformas sociais na internet.

Com passagens por Lance!, BandSports, Rádio Globo de São Paulo e Sportv, a jornalista se tornou a primeira mulher a comentar um jogo masculino de futebol na Globo, em rede aberta, em 2018.

Em paralelo, segue usando a web para espalhar suas ideias, com mais de 130 mil seguidores no Twitter, por exemplo. Nesta rede, em que frequentemente esbarra com a truculência de haters, se apresenta dizendo que "Não existe competição de opinião. Sou porta-voz das minhas convicções e não das suas."

Abaixo, a história de Ana Thais.

Reprodução/TV Globo

"Nunca quis ser comentarista"

Após o sucesso na apresentação do Troca de Passes do Sportv na Copa do Mundo de 2018, Ana Thais foi convidada para comentar os jogos de futebol e, no ano seguinte, se tornou a primeira mulher a analisar as partidas em transmissões ao vivo da TV Globo.

Apesar de marcar a história do jornalismo esportivo na televisão brasileira, Ana afirma que nunca esteve em seus planos se tornar um símbolo, mas que agora espera que sua figura ajude a abrir espaço para outras mulheres.

Nunca quis ser uma bandeira, isso pra mim é muito importante também porque isso foi uma coisa que colocaram em mim. Nunca quis, só que aconteceu, e aconteceu pelo que eu sou, pelo que eu batalhei para ser e pelo que as pessoas acreditam que tenho em mim. Nunca quis ser comentarista, nunca me vi nessa posição."

"Eu me imaginei sendo a [repórter americana da NBA] Doris Burke o resto da vida, ser repórter na frente da TV, no palco do jogo... Eu falava sempre: 'Quero ser igual o Mauro Naves, quero cobrir a seleção, que é a coisa que eu mais gosto no futebol'. Só que viram esse potencial em mim, eu estou comentarista hoje. Não acho que é para sempre, mas enquanto estiver aqui vou batalhar para ser a minha melhor versão, chegando em casa, dormindo tranquila, dando orgulho para minha mãe", concluiu.

Reprodução/Sportv

Morte do pai em meio a ataques no 'caso Robinho'

A casca que Ana Thais criou ao longo de sua trajetória não a blindou do efeito colateral de virar uma pessoa pública: ser julgada pelo "tribunal da internet". A jornalista foi alvo de ataques de pessoas que a rebaixam pelo fato de ser mulher.

Um dos episódios mais graves aconteceu quando Ana Thais teve o número de celular vazado após criticar o anúncio do retorno de Robinho ao Santos, em outubro de 2020. Naquele momento o jogador era acusado na Justiça da Itália de estupro coletivo, cometido em 2013 - ele acabou sendo condenado meses depois e, diante da pressão da opinião pública, teve o acordo com o Santos desfeito.

O ataque contra a jornalista prejudicou sua comunicação com o próprio pai, que estava internado na época. "Há um ano, meu pai ficou dois meses internado. Foi bem na semana que o Santos anunciou a contratação de um ex-jogador. Eu me posicionei como eu me posicionaria sobre qualquer outro fato que eu considere relevante em um ambiente esportivo ao qual pertenço. Foi uma avalanche de dimensões que eu não sei nem explicar. Lembro que muitas pessoas foram em canais de televisão para se posicionar contra mim, para me atacar diretamente, para citar o meu nome", disse.

"Vazaram vários telefones de vários jornalistas que se manifestaram contra a contratação desse ex-jogador, e foi bem na semana que meu pai estava internado. Eu estava indo para São Paulo, foi bem no meio da pandemia e eu tinha deixado meu número de telefone no hospital, um hospital público de difícil comunicação também. Só que vazou meu telefone. Eu não tive outra alternativa e liguei na operadora para trocar meu número."

"Só que, nessa de trocar, eu não consegui passar para o hospital meu número novo. Passei para o meu irmão, passei para minha mãe e dias depois o meu pai faleceu e eu não sabia o que estava acontecendo. Eu não tive comunicação com o hospital. Eu entrei em contato com eles e eles falaram: 'Olha, a gente tentou ligar no seu número'. Eles estavam ligando no número antigo", relatou a jornalista.

Esse fato foi muito pesado para mim. Me distanciou muito do debate ali nas redes sociais, e eu me distanciei muito das pessoas. Eu vi o que é 'fogo amigo'. Eu falo isso diretamente para alguns colegas, como foi cruel comigo assim. Vejo muitos colegas que usam desse expediente para se promover ou para gerar engajamento na internet. E é só reflexo do que a gente vive como sociedade, como profissionais do nosso ramo.

Ana Thais Matos, sobre os ataques que sofreu após criticar a volta de Robinho ao Santos

Reprodução/SporTV

Única mulher em jornal

A primeira oportunidade de Ana no jornalismo aconteceu no "Lance!", em 2009. E foi inevitável enfrentar o mundo machista das redações esportivas. "Quando comecei, nós éramos quatro meninas. Terminou o ano e eu era a única. Já vi ali de cara: coisas como apagar matéria, de não publicar matéria, de inventar fofoca, de chegar na hora da rodada, e os meninos ficarem com as coisas mais legais", relembrou. "Nunca me deixavam fazer uma crônica do jogo, nunca me deixavam apurar uma notícia. E é curioso isso porque muitos que estavam nessa redação naquele ano, hoje são colegas de trabalho, e eu vejo assim e falo: 'Cara, tu era muito escroto comigo e hoje você é um cara super legal'."

Reprodução/Twitter

Machismo em campo

"Eu sempre fui muito combativa, desde pequena. Eu vi todos os tipos de violência que você puder imaginar na minha adolescência, morando em comunidade, principalmente contra mulheres." Em 2016, Ana Thais já havia descrito em entrevista ao UOL o lado cruel do trabalho como repórter de campo em estádios brasileiros, então como integrante da Rádio Globo de São Paulo. "Teve uma vez que eu fiquei muito nervosa. O sujeito gritou meu nome e disse que ia me encontrar na rua e me estuprar. Não acreditei que ele faria isso, mas fiquei uns 30 minutos pensando que eu estava no meio de alguns animais. Minha pressão subiu, meu coração disparou, mas fiz a transmissão normalmente."

Arquivo pessoal
Comentarista Ana Thais Matos jogando bola na infância, no litoral de São Paulo

Esporte para não ficar à toa pela rua

Ana Thais Matos cresceu na baixada do Glicério, bairro humilde do centro de São Paulo, às margens do rio Tamanduateí. Quando completou oito anos, ela e a família se mudaram para Itanhaém, no litoral do estado, em busca de uma vida melhor.

"Meus pais já eram separados e, quando eu tinha por volta de uns 7, 8 anos, a gente estava passando por muitos problemas em casa. Por isso, a minha mãe resolveu ir para Itanhaém, em uma casa que era do meu pai. Foi por onde fiquei durante dez anos, de 92 a 2002", contou Ana em entrevista ao UOL Esporte.

Única entre os seis filhos de dona Francisca a ter ensino superior, Ana Thais relata que precisou ser resiliente para viver na periferia da cidade litorânea. A mãe trabalhava como faxineira em São Paulo e voltava para Itanhaém aos fins de semana.

A jovem entrou no jazz, no teatro e na capoeira, mas o que fazia os olhos dela brilharem era o futebol. A Copa de 94 acendeu a chama do esporte em Ana Thais, e ela decidiu praticar a modalidade em um campinho de terra perto de casa.

Itanhaém não é uma cidade de muitos recursos, né, então ou você vai praticar esporte ou fica pela rua e salve-se quem puder. O meu irmão, dez anos mais velho, sempre foi muito disciplinador e, na época, ele falava: 'Mãe, a Thais tem que tomar um jeito: ou ela vai praticar esporte ou vai praticar esporte, porque esse negócio de chegar da escola e ficar o dia inteiro pela rua não é boa coisa, tem que arrumar alguma coisa para ela fazer'.

Ana Thais Matos, sobre sua infância

Reprodução/Instagram
Ana Thais com a mãe, Dona Francisca

O primeiro microfone foi para cantar

Ana Thais poderia ter virado cantora profissional, pelo menos se dependesse do desejo da mãe, que foi sempre ligada ao mundo do teatro e da música. Francisca era encantada por uma jovem, filha de amigos, que cantava em bares e se apresentou na rádio.

"Minha mãe me projetava nessa moça, então tentou investir. Me colocava em aula de canto de projetos sociais e tudo. Ela via um potencial que eu não enxergava. A gente andava pelos bares da rua em que a gente morava, e ela: 'Minha filha pode dar uma canja?' O pessoal achava que era uma das minhas irmãs mais velhas, mas era eu, com oito anos."

Francisca levava a filha em casa de amigos que tinham teclado, e Ana tinha até um repertório com Roberto Carlos, Raça Negra e Jorge Ben Jor. Mas a canja nos bares mesmo nunca aconteceu. "Falavam: 'Olha, dona Francisca, não pode, né, ela é uma criança'", relembra a jornalista.

"Ela nunca forçou a barra com nada e até quando surgiu o filme 'Dois Filhos de Francisco' eu brincava que eu sou a filha da Francisca porque a minha mãe quase me fez cantora", comentou, em menção à famosa história de Zezé Di Camargo e Luciano.

JOAO COTTA/TV Globo/Divulgação JOAO COTTA/TV Globo/Divulgação

Empréstimo para tentar ser jogadora

Mas era o futebol que fazia a cabeça de Ana Thais. Do campinho de terra, ela passou a treinar na escola e disputar campeonatos entre colégios. Tentar uma carreira era praticamente impossível. Uma das únicas escolinhas disponível para meninas era a de Kleiton Lima, ex-técnico da seleção brasileira feminina.

"Mas era muito caro. Na minha casa, era algo impossível, seria meio que tirar o botijão de gás que a minha mãe comprava. Fiquei jogando na rua até 12 anos e depois treinei com a escola. Quando completei 16 anos, conheci um projeto de futebol feminino do Santos que o Kleiton levou para Itanhaém", contou.

Foi assim que Ana Thais conheceu Ester, volante que já defendeu o Brasil nas Olimpíadas e na Copa do Mundo. Na época, a amiga a incentivou a tentar entrar na escolinha do Kleyton. A jovem, então, foi pedir dinheiro emprestado a um vizinho. "Só que eu percebia que já estava velha para o que estava acontecendo ali, porque as meninas já estavam muito desenvolvidas."

Mesmo assim, Ana Thais tentou fazer uma peneira em São Paulo, no Juventus. Ela partiu para a capital sem contar pra mãe, mas acabou desistindo mais adiante.

Arquivo pessoal
Ana Thais Matos (à esquerda) na adolescência, com a irmã em Itanhaém

Versão comentarista apareceu cedo no Bar do Edinho

Quem vê Ana Thais comentando hoje nos canais no Grupo Globo não imagina quem foi seu primeiro espectador: Edinho, dono de bar em Itanháem.

"Voltava da escola para discutir futebol com o Edinho, que infelizmente já faleceu. Ele assinava alguns jornais, como "A Tribuna" e o "Notícias Populares". Eu estudava de manhã e, então, nosso combinado era: ele lia os jornais de manhã e à tarde, quando eu voltava da escola, passava no bar para pegar os jornais e conversar com ele de futebol. Era quase todo dia isso. Meu irmão ficava bravo, falava que eu vivia viciada em bar, mas não era, era uma vendinha que vendia ovos, e também vendia bebida, mas o meu papo era passar lá para pegar jornal e conversar de futebol com o Edinho. Futebol e carnaval", relembrou.

Pouco dinheiro e vários empregos

Logo após a Copa de 2002, Ana Thais já era adolescente e vivia com a pressão para trabalhar e ajudar a família. A futura jornalista teve a ideia de retornar a São Paulo, junto com a mãe e a irmã caçula. "A gente estava passando muita dificuldade nessa época. Aquilo para mim começou a me dar uma angústia porque eu via as necessidades que a gente tava passando", relembra.

Mas Francisca não aguentou e voltou para Itanhaém com a filha mais nova. Ana Thais preferiu ficar na capital paulista, morando com uma amiga. Ainda antes do jornalismo, ela trabalhou em escritório de motoboys e foi recepcionista. Apesar do sonho de fazer uma faculdade de letras, os estudos foram ficando distantes.

"Eu fiquei muito frustrada. Foi um período muito difícil para mim, de aceitação e tudo. Falei: 'Cara, eu não vou conseguir, é isso aqui a minha vida e acabou'", recorda.

Mas Ana Thais não desistiu e conseguiu um emprego em um escritório de arquitetura. Finalmente passou a ganhar bem e decidiu focar nos estudos. "Abdiquei de morar bem e fiquei três anos tentando passar em uma faculdade."

Reprodução/Instagram

Enfim o jornalismo, aos 47 do segundo tempo

Com 22 anos, Ana Thais tentou novamente prestar vestibular: letras na primeira opção e jornalismo como segunda. A ideia era passar na Universidade de São Paulo e não precisar pagar pelos estudos. Não deu certo, mas, "aos 47 do segundo tempo", como ela gosta de dizer, recebeu uma notícia inesperada.

"Também tinha feito inscrição no Prouni, porque estudei a minha vida toda em colégio público. Eu estava na praia, em Itanhaém, triste, porque todas as minhas amigas já tinham passado na faculdade. Eu fiquei para trás... Até entrei numa lan house para mandar um e-mail para o meu irmão, perguntando se eu poderia morar com ele em Florianópolis para recomeçar minha vida. Quando abri, tinha uma mensagem da PUC (Pontifícia Universidade Católica) me avisando que eu tinha sido aprovada para uma bolsa através do Prouni para jornalismo. Eu quase caí da cadeira", lembrou comentarista, com emoção.

Instagram/Reprodução

E agora ela trabalha ao lado da Fátima Bernardes

No começo do texto, Ana Thais relembrou a conversa que teve com sua mãe assim que conseguiu a aprovação para cursar a faculdade de jornalismo. A paulistana, hoje, não só faz o mesmo que Fátima Bernardes, como trabalha ao lado da estrela.

Semanalmente, Ana vai ao "Encontro com Fátima Bernardes" para apresentar o "Encontro com a bola", um quadro esportivo do programa.

"As coisas vão acontecendo e, quando você percebe, assim, aconteceu. Tem quem ache que foi tudo muito rápido. Eu acho que não. São anos e anos de batalha até chegar aqui. Eu tenho muito orgulho da minha história e não tiraria e nem colocaria nada para justificar o que eu sou hoje. Vejo a minha mãe extremamente feliz e hoje eu consigo proporcionar um envelhecimento digno para ela. Ela mora numa casa boa, talvez a melhor casa que a gente viveu nos meus 36 anos", celebra a comentarista.

A menina que começou a comentar futebol no bar do bairro hoje é referência para muitas mulheres que adoram o esporte.

Logo nos primeiros 'Encontros com Fátima' de que eu participei, ela fez um ao vivo com a minha mãe, de surpresa, para mim. Foi muito emocionante. Tudo armado com a minha irmã. De repente, a gente está ali, falando sobre a minha trajetória, sobre a minha vida, com a Fátima Bernardes. Eu espero que isso daqui alguns anos siga abrindo mais caminhos para outras mulheres."

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