Uma feminista no conselho

Analu Tomé, uma das dez mulheres entre 200 conselheiros do Corinthians: "Preciso gritar para me ouvirem"

Maria Victoria Poli e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Talyta Vespa/UOL

Dez mulheres entre 200 homens marcam um recorde feminino no conselho trienal do Corinthians. O número, que atinge a marca de 5%, é grandioso: diz que os tempos mudaram, e que o futebol, em todas as suas vertentes, tem sido e será cada vez mais ocupado por mulheres. O caminho é sem volta, e quem arremessa essa informação sem titubear é uma delas, Ana Lúcia Tomé, eleita para o conselho do clube em 2021.

Analu, como prefere ser chamada, chegou com o pé na porta e fincou sua bandeira no Corinthians. Ela é uma das diretoras do movimento Toda Poderosa Corinthiana, que surgiu para contar a história feminina dentro do clube e, hoje, reúne mais de 300 mulheres. Devido ao novo trabalho, a conselheira se mudou da zona sul para a zona leste de São Paulo, lugar conhecido, desbravado por ela desde que era uma adolescente anarquista de cabelo espetado.

No novo apartamento, os incontáveis acessórios com a marca do time dividem espaço com as outras paixões de Analu: a banda KISS, o feminismo e seu pai. Corintiana no contrassenso da família —toda fanática pela Lusa—, a trajetória da conselheira no futebol começou diretamente na torcida organizada, quando ela era, ainda, adolescente.

Da Gaviões, Analu tirou tudo: "Tive aquela lição de torcedor raiz, de arquibancada, do cimento, da chuva e de apanhar da polícia. Aprendi, ali, o que realmente é ser Corinthians, o que é o amor da torcida. Comecei bem, pela porta da frente", conta.

Nesta entrevista, a conselheira detalha o machismo que já vive no dia a dia da cúpula, relembra como as mulheres se protegiam do assédio e da violência dentro do futebol no passado; diz que quer ser lembrada por corintianas daqui a 200 anos pelos feitos no conselho e que não tem medo de cara feia —medo, mesmo, só da Polícia Militar nas arquibancadas dos estádios.

Talyta Vespa/UOL
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Criança corintiana afrontosa

Analu era a única corintiana de uma família lusitana. O pai, com quem a conselheira é grudada até hoje, foi quem a levou para o estádio pela primeira vez. Para o Canindé, é claro. "Toda a minha família torcia para a Portuguesa e ninguém sabe explicar o porquê de eu ser corintiana. Eu não tinha contato com nada que me levasse ao Corinthians, só assistia aos jogos pela televisão", conta.

Frequentar o estádio para assistir a jogos do time do coração se tornou realidade quando Analu já era adulta. "Foi quando conheci os Gaviões da Fiel e me associei a eles. O estádio se tornou parte do meu dia a dia, e a minha trajetória política no Corinthians começou aí: dentro da torcida organizada", relembra.

Da Gaviões, Analu partiu para a Rádio Coringão, a única web rádio do Corinthians. Assumiu, também, as redes sociais da rádio e, em seguida, se tornou Fiel Torcedora, sócia do clube. "Eu estava de boa assim, tocando um programa sobre futebol na rádio, indo aos jogos, até que foi criado um núcleo de estudos dentro do Corinthians. Pouco depois, houve a ideia de criar um núcleo voltado a estudos de gênero, do qual fui convidada a participar", relembra.

"Além de mim, outras 12 meninas estavam no grupo. Quando começamos a pesquisar a história da mulher corintiana, descobrimos que, por mais presente que estávamos, não havia registros sobre a presença de mulheres na torcida. A nossa história nunca foi contada. Então, decidimos começar do zero e contar a nossa história. Assim surgiu o movimento 'Toda Poderosa Corinthiana".

"Sempre fui feminista, mas não ia atrás. Eu sabia que era, mas não havia me encontrado como feminista, não sabia qual seria um papel de feminista no dia a dia. Via coisas erradas dentro do Corinthians, das torcidas, mas não sabia como atuar"

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Cada vez mais poderosa

O movimento começou, então, a ganhar espaço no combate a situações machistas do cotidiano do futebol. Primeiro, lançou uma nota de repúdio após a publicação de uma reportagem de cunho misógino publicada no jornal Lance em 2016. "O São Bernardo ganhou do Corinthians em um jogo do Paulistão e, na foto de capa da reportagem publicada pelo jornal, havia a foto de uma líder de torcida com o título 'deu show'. Objetificação da mulher na caruda", relembra.

Após a nota de repúdio, o grupo --já com 300 membros no Facebook-- foi atacado por torcedores, inclusive, do Corinthians. "Um monte de homem entrou na nossa página e xingou a gente. Eles diziam: 'O que vocês estão fazendo? Deixem nosso Corinthians em paz, vão lavar a louça'. Daí, caiu a ficha: havíamos assumido um papel de responsabilidade contra o machismo no futebol. Não dava para voltar atrás".
"Foi aí que eu me identifiquei pela primeira vez como feminista. Olhei para mim mesma e disse: 'É isso que sou'. Assim surgiu a Analu, que hoje é conselheira do clube. Gente do céu! Analu conselheira!".

Em 2017, o Corinthians lançou uma segunda camisa oficial —que Analu descreve como preta, branca, linda e maravilhosa em homenagem a 1977. "Uma torcedora tentou comprar a segunda camisa feminina, mas um porta-voz da loja oficial do Corinthians disse que não chegaria. Então, escrevi um tweet para a Nike perguntando quando a peça chegaria às lojas. A resposta? Que não seria fabricada porque não havia demanda", conta.

"Aquilo me revoltou. Com base em que foi concluído que não há demanda? Somos 51% da torcida do Corinthians. Lançamos uma nota de repúdio e enviamos a toda diretoria do Corinthians e à diretoria da Nike. A postagem foi muito compartilhada. Não houve resposta da empresa, mas, um mês depois, a segunda camisa feminina foi lançada".

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Medo mesmo é da PM

Quem frequenta estádios de futebol no Brasil sabe como as experiências dos torcedores em um jogo podem ser bem diferentes e até mesmo se contrapor, de acordo com o valor pago pelo ingresso. Torcedores de arquibancada — o setor mais acessível — carregam um estigma negativo e são muitas vezes repreendidos por um sistema que não discerne entre homens, mulheres, crianças ou idosos.

Eu falo que o meu maior medo dentro de um estádio é a Polícia Militar. Ela trata o torcedor como um meliante. A gente tá pagando ingresso, somos clientes, mas não é desse jeito que somos tratados dentro do estádio".

Uma instituição que teoricamente deveria estar ao lado dos torcedores e fazê-los se sentirem seguros acaba, muitas vezes, desempenhando papel inverso. "Eu já apanhei da Polícia Militar dentro do estádio. Teve um jogo que pra gente sair eles fizeram tipo um corredor polonês, jogaram cavalo em cima da gente. Era criança correndo, derrubando cadeirante. A PM é muito truculenta, sempre foi. Se você, como torcedora, pede uma informação para a polícia, eles te olham como se você fosse um delinquente."

Com uma trajetória marcada pela busca por igualdade, Analu conhece bem as dificuldades enfrentadas dentro de um estádio de futebol, principalmente por mulheres que "ousam", cada vez mais, ocupar este espaço. O avanço é nítido até aqui, e o caminho à frente não a assusta, não a faz recuar e não a afasta do lugar onde realmente se sente em casa.

"Me falaram que, como conselheira, tenho direito a dois ingressos. Ou eu abro mão ou pego e vou doar para quem nunca pôde assistir a um jogo, porque o meu lugar é a arquibancada, não adianta".

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Gritar para ser ouvida

Analu afirma que o que a motivou a se candidatar para o conselho foi a necessidade de ocupar espaços majoritariamente masculinos. Muitas mulheres, ela explica, se contentaram com o espaço na arquibancada, com o respeito quando estão entre os homens da torcida. "Mas não podemos nos acomodar com o mínimo. É preciso mais e, para conseguir mais direitos para a mulher torcedora, é preciso estar entre quem manda", diz.

"Muitas mulheres que, hoje, estão na arquibancada, sentem que conquistaram seu espaço. Até pouco tempo atrás, quando uma mulher chegava à arquibancada, os homens cantavam: 'Well, well, well, buc*** da fiel'. Para fugir disso, a gente se vestia que nem homem: camisetona, bermudão. A gente não queria chamar a atenção. Quem vem dessa época conquistou, com esse custo, o próprio espaço, e está na zona de conforto. Agora, temos que lutar para podermos participar de caravanas, do conselho e de tudo", afirma.

A chapa pela qual Analu concorreu foi a segunda mais votada. Mesmo conselheira há pouco tempo, já se deparou com "vários absurdos dentro dos grupos do conselho". "Não estava acostumada com essa parte política da coisa. Às vezes, é preciso abrir mão de coisas que a gente defende para poder seguir em frente. E eu já sabia disso".

Pode ser que agora eu não consiga fazer muitas coisas, mas vou tentar abrir as portas para as mulheres poderem participar cada vez mais ativamente na política do clube

Analu Tomé

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Um dos projetos que a conselheira pretende executar é um trabalho de inclusão social dentro do Corinthians para que mães solo pagassem um valor menor de mensalidade ao se tornarem sócias do clube. "A ideia é incentivar que tragam seus filhos, que eles participem de escolinhas. É uma maneira de movimentar o social, que é importante. É uma maneira de atrair mais pessoas. Quanto mais pessoas dentro do social, mais fácil de participar da política do clube, de votar, de brigar pelos nossos direitos como torcedora corintiana".

Analu afirma perceber o machismo entre os conselheiros; conta que a comunicação com os homens da cúpula é bastante difícil. "Nós, como mulheres, já sabemos. Para ser ouvida, a gente tem que falar uma, duas, três, quatro vezes, levantar o tom. Eu vejo isso já nos grupos dos quais participo. Se eu falo alguma coisa, muitos não ligam. Aí, um outro conselheiro fala uma besteira qualquer e todo mundo curte, sabe? É muito mais difícil de ser ouvida", diz.

"Para nós, mulheres, não basta só ter um projeto. Também é ser ouvida, respeitada, antes de as pessoas aceitarem o seu projeto. É ser ouvida e respeitada. Para a mulher tem vários obstáculos, muito mais do que para os homens. Quando a gente começa a falar da importância da inclusão, a pensar em um projeto focado em gênero, já dizem que vai começar o 'mi mi mi'. É uma luta".

Talyta Vespa/UOL Talyta Vespa/UOL

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