Anatomia do Vampetaço

Fotos de Vampeta pelado na 'G Magazine' são usadas em controversos protestos na internet

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo

O músico Varg Vikernes é uma pessoa que odeia. Ex-vocalista da conhecida banda de black metal Burzum, o norueguês nutre ódio a tudo que é diferente de si. Ele odeia o que não seja europeu e odeia ainda mais a miscigenação, a mistura dos povos.

Quando, em agosto do ano passado, ele foi ao Twitter elencar os países que mais odeia e acrescentou à lista o Brasil, chamando os brasileiros de "Untermensch" (palavra usada pelos nazistas para designar os "povos inferiores"), o gerente de projetos paulista André Honorato resolveu contra-atacar. E encheu o perfil de Varg de fotos do ex-jogador Vampeta pelado.

Ele não foi o único. Naquele dia, os brasileiros mandaram tantas fotos do ensaio de Vampeta na "G Magazine" que Varg, inundado por uma nudez não solicitada, precisou fechar seu perfil. Foi mais uma edição do protesto virtual batizado de "vampetaço".

O vampetaço é uma espécie de cancelamento. Sempre que alguma figura pública faz ou diz algo que desagrade a massa, ela pode ser vítima do vampetaço. O Twitter, com sua tolerância à nudez, é a rede social preferencial dos manifestantes.

Já aconteceu com participantes do Big Brother Brasil e com um deputado bolsonarista. Trata-se da ressignificação de um ensaio de 1999, no qual o então volante do Corinthians exibiu sua masculinidade de uma maneira que nunca havia acontecido antes.

O UOL Esporte relembra os bastidores daquele ensaio e mostra como, 22 anos depois, aquelas fotos estão sendo usadas como uma forma de protesto nas redes sociais. E discute o que o fenômeno do vampetaço pode nos ensinar sobre o racismo e o antirracismo no Brasil.

Vampeta elogia o vampetaço

Comentarista na "Jovem Pan" e na "Gazeta", Vampeta disse não se incomodar com o compartilhamento em massa de suas fotos como forma de protesto. Em conversa com a reportagem, ele chegou a elogiar a iniciativa.

Não me incomoda, acho da hora. Queria dar os parabéns pra quem criou isso."

Ensaio causou frisson em 1999 e fez fama da G Magazine

A "G Magazine" causou frisson no final dos anos 90 ao contratar o volante do Corinthians, campeão brasileiro de 98 e 99, e também da seleção. Fundada em 1997 sob o nome de "Bananaloca", a "G" já havia triplicado sua tiragem ao publicar o ensaio nu do ator Matheus Carrieri.

Mas foi Vampeta quem elevou o nome da revista a todas as rodas de conversa do país. "Nudez de Vampeta sacode o futebol", estampou a "Folha de S.Paulo", anunciando a edição seguinte da revista. "Sua atitude de posar nu, inédita entre astros do futebol, rompe um tabu nesse esporte no país, marcado pela recusa de dirigentes, técnicos e dos próprios jogadores em discutir publicamente a presença de homossexuais nas equipes."

Nu frontal empoderou gays, afirma editora

A jornalista paulista Ana Fadigas foi uma das responsáveis pelo "escândalo". Ela foi a fundadora e era editora da revista em 1999. "Estávamos passando de uma revista com nu de modelos pra uma revista com nu de famosos. Não tinha isso no mundo. E o Vampeta tinha vivido fora do país [na Holanda], tinha a cabeça mais aberta", conta a jornalista.

Ela acredita que os ensaios da "G" tiveram um aspecto "revolucionário e empoderador" porque era a primeira vez que famosos exibiam uma ereção para ser apreciada por outros homens na imprensa nacional.

"No início, a revista não mostrava ereções, só o bumbum. O ensaio do Mateus Carrieri foi o primeiro com pênis ereto. Os leitores pediam muito", conta Ana. "Com o Vampeta conseguimos a foto mais emblemática que a 'G' poderia ter. Era ele com o pinto ereto furando a rede do gol. Com essa foto a gente estourou, inclusive na Europa. A 'G' mudou por causa disso."

O ensaio teve uma mídia espontânea muito boa pra gente. O Faustão falava, o Jô falava. No Brasil de hoje eu seria uma bruxa queimada na rua."

Ana Fadigas, fundadora da 'G Magazine'

Se eu pude ajudar [a comunidade gay], fico feliz. Não tenho preconceito nenhum contra nada. Recebi carta pra caramba no Corinthians, fui em programas de TV onde jogadores não iam. A verdade é que me ajudou muito e não me prejudicou em nada."

Vampeta, ex-volante do Corinthians e da seleção

Bastidores: Vampeta precisou de ajuda para posar nu

A produção da revista precisou de uma megaoperação para evitar vazamentos nos dois dias de ensaio. Os detalhes seguem na memória do produtor Paulo Branco, que atuou também na direção de Vampeta.

"Quando estávamos na chácara do ensaio, começou a chegar helicóptero pra tentar filmar. Tivemos que parar tudo e nos esconder", relembra. Outro desafio foi deixar o jogador à vontade. Como Vampeta era o primeiro atleta a posar pra revista, havia o receio de que não rolasse "química" entre o modelo e a produção, formada toda por homens gays.

"Achei que ele podia talvez ser um homem meio bronco, mas fiquei encantado com ele. Nos tratou como se a gente se conhecesse há anos, supersimpático e acessível. Acabamos nos divertindo muito e eu virei fã." A relação deu tão certo que, quando Vampeta teve dificuldades em algumas fotos, o produtor quebrou uma regra que costumava seguir em seus trabalhos.

Eu sempre quis que os ensaios fossem artísticos, então eu montava uma equipe reduzida e não permitia que mulheres estivessem para ajudar os modelos a ficarem eretos. Na hora eles se masturbavam e pronto. Só que o Vampeta estava com dificuldade e chegou uma hora que ele disse: 'Cara, não vai rolar, eu preciso ter uma pessoa do lado'. Então eu liberei e foi a namorada dele ajudar. Foi o único que permiti isso."

Paulo Branco, produtor e diretor do ensaio

Dificuldade? Porra nenhuma! Se hoje com 47 anos eu não tenho, imagina quando tinha 22, na flor da idade, voando."

Vampeta, que na verdade tinha 24 anos na época do ensaio

Minha namorada achava que eu tava brincando quando falei pra ela. Ela disse: 'Velho, você é maluco, vai acabar com sua carreira'. Depois, ela foi no ensaio me ajudar."

Vampeta

Outros jogadores que posaram pra "G"

Dinei

O atacante do Corinthians surfou na onda de Vampeta e também posou em 99. O resultado não causou a mesma repercussão. "Ele foi respeitoso, mas estava muito travado", diz Paulo Branco.

Túlio

O atacante, então no Atlético-GO, posou em 2003. Tinha 34 anos. Na capa da revista, ele trazia uma bola na frente da cintura sob o título "Gol de placa! Túlio Maravilha exibe seu maior troféu".

Roger

O goleiro do São Paulo foi ameaçado pelo técnico Carpegiani caso aceitasse o convite: "Nenhum jogador meu vai posar nu". A edição saiu em outubro de 99. No mesmo mês, foi para o Vitória.

Vampetaço como fenômeno sociopolítico e chacota

Babu x Fadas Sensatas

Quando os fãs do ator Babu Santana entenderam que ele estava sendo vítima de perseguição no Big Brother Brasil do ano passado, promoveram um vampetaço contra as "fadas sensatas", como ficou conhecido o grupo capitaneado por Manu Gavassi. Os perfis do grupo foram inundados com o ex-jogador nu.

Douglas Garcia x Antifascistas

Em agosto do ano passado, o deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP) abriu um canal para receber denúncias contra os líderes dos movimentos populares que estavam nas ruas pedindo o impeachment de Jair Bolsonaro. No meio das denúncias, o deputado passou a receber uma série de nudes de Vampeta.

Benfica x Torcida do Flamengo

Quando o Benfica anunciou a contratação do técnico Jorge Jesus, em julho do ano passado, a torcida flamenguista não recebeu bem a novidade. Em reação, os rubro-negros encheram a postagem anunciando o treinador campeão da Libertadores com fotos do ex-volante, chocando os tuiteiros portugueses.

Ilustrador considera vampetaço antinazista e antirracista

O gerente de projetos e ilustrador André Honorato fez parte do vampetaço contra o músico neonazista Varg Vikernes, mas foi além. Um desenho seu mostrando Vampeta dando um chute no cantor acabou viralizando depois de ser compartilhado pelo perfil do roqueiro João Gordo. A ilustração também foi parar em memes, camisetas e foi curtida pelo próprio Vampeta, um printscreen que André guarda com orgulho.

O ilustrador acredita que o vampetaço é uma forma muito particular de luta antirracista. Nessa leitura, ter respondido às falas preconceituosas de um extremista com as fotos de brasileiro pelado seria uma forma de valorizar o povo brasileiro e a miscigenação, a partir da figura de Vampeta.

"Ele é um cara bem-sucedido, um negro que conseguiu muito sucesso, super respeitado e ao mesmo tempo consegue rir de si mesmo. É a figura do bom malandro, o cara que todo mundo gosta", afirma André. "A galera começou a utilizar a imagem dele como uma arma contra o fascismo e racismo."

Ex-BBB, cientista social aponta coisificação da pessoa negra

Apesar do vampetaço ser também uma manifestação inserida no terreno do humor, é possível localizar o gesto no debate sobre o racismo à brasileira. O sociólogo Rodrigo França, que participou da edição de 2019 do BBB, afirma ver no fenômeno o que ele chama de "coisificação ou desumanização da pessoa negra", valorizada apenas por seu físico ou por seu sexo.

"A hipersexualização do negro, uma herança do período escravocrata, nega qualquer aspecto de intelectualidade e valoriza apenas questão sexual e braçal. Muitas vezes até pessoas negras acreditam que esse é seu único ponto positivo e acabam reproduzindo essa lógica racista", afirma ele, que prefere valorizar a contribuição de Vampeta, pentacampeão mundial em 2002, para o futebol brasileiro.

"O histórico do Vampeta no futebol brasileiro acaba ficando em segundo plano para valorizar apenas uma parte do seu corpo. E ridicularizar essa questão sexual. Vamos verificar a singularidade, a subjetividade dele ou vamos focar só no corpo, num membro sexual?", questiona.

O que Vampeta acha disso?

Isso [vampetaço] não me incomoda. Até agradeço pela defesa [feita por Rodrigo França], mas não me incomoda. Eu sei o que eu fiz dentro de campo, eu sei o que eu fiz na G. Cabe bem na história um pedacinho de cada."

Vampeta

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