Onde ele foi maior

Andy Murray encerra a carreira no único palco em que seu legado supera o de Djokovic, Federer e Nadal

Julianne Cerasoli Do UOL, em Paris Martin Rickett/PA Images via Getty Images

"Alguém tira o Andy dessa chuva, ele vai enferrujar" era um dos memes que circulavam na Inglaterra durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Um jeito bem britânico de mostrar carinho pelo tenista que começava seu último campeonato da carreira e não perder a piada.

Afinal, Murray teve mesmo que se tornar um homem de aço —ou de metal, que seja— em todos os sentidos. Mentalmente, teve o azar de ser contemporâneo dos maiores tenistas que o esporte já viu, pegou pela frente Roger Federer, Rafael Nadal, Novak Djokovic. E fisicamente, passou por uma série de desafios, especialmente nos últimos anos, que culminaram com uma cirurgia no quadril para a implantação de uma prótese metálica fundamental para ele chegar até aqui.

A ironia é que o adeus acontece justamente em Roland Garros, a mais famosa das quadras de saibro e onde Murray nunca jogalmente realmente bem —até sua filha fazia piada com isso. Mas, não por acaso, o seu adeus ao esporte acontece também no único palco em que o seu legado é maior do que aquele de Djokovic, Federer e Nadal: as Olimpíadas.

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Meu corpo simplesmente não quer mais fazer isso e minha mente não quer mais passar pela barreira da dor. Eu só esperava me sentir melhor do que isso depois de 16, 17 meses [desde as primeiras dores no quadril]. Estou muito triste com isso porque quero continuar, mas meu corpo está me dizendo 'não'. Dói e sinto muito, não posso continuar." Murray em agosto de 2018, após vencer um jogo de mais de 3h no ATP 500 de Washington. Ele operaria o quadril outra vez em janeiro de 2019.

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Dor até para amarrar os tênis

Andy surpreendeu o mundo do tênis com o anúncio de que pararia, feito às vésperas do Aberto da Austrália, em janeiro de 2019. Os organizadores do evento até prepararam uma despedida, mas na época ele deixou seu futuro em aberto. Disse que decidiria com seus médicos o que fazer. Poucos dias depois de perder, estava na mesa de cirurgia novamente. Seria o terceiro e mais arriscado procedimento no quadril.

Nessa época, não escapava do sofrimento nem quando inclinava o corpo para amarrar os tênis. Seu quadril tinha sofrido um desgaste acentuado na articulação, muito em função dos treinos e competições. Ouviu dos médicos que tinha grandes chances de destruir a prótese rapidamente jogando em alto rendimento. A prótese não era um caminho de volta às quadras. Ele só queria ter uma vida normal, sem dor. Afinal, a prótese é uma solução usada por pacientes com casos graves de artrose que consideram que andar já é uma vitória após um procedimento como esse.

Mas apenas nove meses depois, ele estava levantando o troféu do ATP 250 da Antuérpia, na Bélgica. Foi seu primeiro título no circuito em mais de dois anos e o início de uma sobrevida no tênis que o levou a mais duas Olimpíadas e de volta ao top 40 do ranking. Em Tóquio, ele acabou desistindo do torneio de simples às vésperas da competição, mas chegou a jogar nas duplas.

Garra, determinação, luta

Estas foram as três palavras que mais apareceram em um vídeo postado pela ATP em que os rivais descreviam Murray. E foi o que ele mais mostrou nestes Jogos Olímpicos.

Desde o primeiro jogo, ficou claro que uma campanha no torneio de duplas com Dan Evans seria sofrida. Os britânicos salvaram nada menos que cinco match points na primeira partida, contra os japoneses Daniel Taro e Kei Nishikori. O jogo foi decidido no super tie-break, com placar de 11-9 (neste modelo, é como se o terceiro set fosse disputado em apenas um game no qual a dupla que chegar a 10 pontos com dois de vantagem para os rivais primeiro vence).

Na segunda rodada, foram mais dois match points salvos, e Murray se derramou em lágrimas após mais um 11-9 no super tie break, agora contra os belgas Sander Gille e Joran Vliegen.

No jogo final, o obstáculo provou-se alto demais, até para Murray. Ele e Evans até salvaram mais um match point, mas foram dominados pela dupla norte-americana Taylor Fritz e Tommy Paul desde o início e perderam por 2 sets a 0. Mesmo assim, Andy lutou uma vez mais. Com 6 a 2 no primeiro set, 5 a 2 no segundo, os torcedores já estavam até com os celulares prontos para gravarem seu último ponto. Mas Murray e Evans não estavam prontos para a despedida. Salvaram mais um match point, levantaram a galera, ainda sobreviveram por dois outros games. E Murray se despediu caindo de pé.

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'Pai, por que você é ruim em tênis laranja?'

A despedida aconteceu na competição em que Andy Murray brilhou mais do que Federer, Nadal ou Djokovic: nos Jogos Olímpicos. Foi com o ouro no torneio de simples e a prata nas duplas mistas jogando "em casa" em Londres-2012 que ele explodiu em sua terra natal. Quatro anos depois, carregou a bandeira britânica na cerimônia de abertura no Rio e conquistou seu segundo ouro.

Mas havia um empecilho para uma despedida mais gloriosa. O tênis olímpico em Paris não poderia ter outra casa: o saibro de Roland Garros. Dos 46 títulos que conquistou na carreira em torneios de simples, apenas três foram obtidos em quadras de saibro. Ou tênis laranja, como prefere chamar sua filha mais velha, Olivia, que certa vez perguntou ao pai por que ele era "tão ruim em tênis laranja".

Olivia sabe das coisas. Afinal, Murray venceu pouco menos de 75% das partidas que disputou, com uma porcentagem muito melhor em grama, seu melhor tipo de quadra (80%) do que no saibro, o pior (68%).

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Um herói britânico não pode ganhar tudo

Mas um currículo invejável não costuma mexer com os corações dos britânicos, que se veem como azarões em tudo e preferem esse papel. E ter o menos premiado do que foi em determinada época conhecido como o "Big Four" (formado por ele, Federer, Nadal e Djokovic) não poderia ter combinado melhor com isso.

Foram 19 anos de carreira e 19 anos de um hype imenso em cima de Murray, sempre valorizando sua garra, seus esforços para trabalhar duro para desafiar tenistas que tinham mais talento e mais força do que ele. Dá para arriscar dizer que, se ele tivesse ganhado tanto quanto um Federer da vida, não seria tão querido em seu país.

Sua carreira foi recheada, assim como suas últimas partidas em Paris, da superação que os britânicos gostam de ver. O jogador franzino da gelada Dunblane não tinha como aguentar 5 sets de um grand slam no calor em alto nível no começo da carreira. Então Murray passou a treinar no calor úmido de Miami para se preparar melhor. Tecnicamente, ele mudou sua estratégia de jogo diversas vezes, lutou contra o próprio perfeccionismo para conseguir fazer o básico muito bem.

A chegada ao número 1 do ranking da ATP em 2016, os 46 títulos de simples, três Grand Slams, sendo dois Wimbledon, uma Copa Davis em que praticamente carregou o time da Grã-Bretanha nas costas em 2015, 14 Masters 1000, três medalhas olímpicas e um título no ATP Finals, além de todos os exemplos de respeito aos rivais e ao tênis, a preocupação em ver uma maior igualdade entre homens e mulheres no esporte e tudo mais que fez com que ele recebesse um título de nobreza antes mesmo de pendurar as raquetes provam que a trajetória de Sir Andrew Murray valeu a pena.

Grandeza de Murray vai além dos números

"O maior entre os mortais" talvez seja um clichê que define bem a história de Andy Murray dentro de quadra. O escocês teve de enfrentar, na sua geração, os três maiores campeões de slam da história do tênis masculino. Ainda assim, encerra sua jornada com números e estatísticas invejosas. Somou 29 vitórias contra os outros três tenistas do Big Four - mais do que qualquer outro atleta nos últimos 20 anos, e com folga.

Números, porém, não definem Murray. Mais do que um "mero mortal", Andy foi humano, no melhor sentido da palavra. Encarou o assédio e os ataques da imprensa britânica com paciência e educação; aceitou sem reclamar o peso de ser a principal esperança para quebrar o jejum de mais de 70 anos sem um homem britânico campeão nas simples em Wimbledon; superou um problema sério nas costas quando jogava o melhor tênis de sua vida; desafiou-se o tempo inteiro a encarar Federer, Nadal e Djokovic sem usar desculpas; lutou pela igualade de premiação entre homens e mulheres e fez ainda mais: contratou Amélie Mauresmo para ser sua treinadora.

Quando a lesão no quadril veio, Andy se permitiu conhecer melhor. Deixou que as pessoas vissem e até admirassem seu senso de humor cheio de piadas autodepreciativas. Dentro e fora de quadra, mostrou um amor assombroso pelo esporte. Levou seu corpo, o tempo e - por que não? - a medicina ao limite. Mostrou que era possível ser um dos melhores sem dar rasteiras ou desrespeitar colegas de profissão.

Hoje, aos 37 anos, Murray encerra uma carreira como exemplo de amor, profissionalismo e, sobretudo, caráter, o que não se mede em nenhuma coluna estatística (e anda em falta no tênis). Grandeza que não se compra nem com 50 títulos de Grand Slam. Por isto, Sir Andy Murray terá seu nome sempre citado entre os maiores de seu esporte.

Alexandre Cossenza, Colunista do UOL

Naomi Baker/Getty Images

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