"Você vai ser espetacular"

Aos 16 anos, Bruno Guimarães ouviu uma previsão de Fernando Diniz e achou que ele era louco

Bruno Guimarães, em relato a Eder Traskini e Gabriel Carneiro Do UOL, em Santos e São Paulo

Eu tinha 16 anos quando saí de casa. Filho único, superapegado aos pais, sabe como é. Não vou dizer que passei dificuldade. Eu nunca tive luxo, mas também nunca passei fome. Nessa época, eu saí do Rio de Janeiro e fui morar em São Paulo, fui do Audax-RJ pro Audax-SP.

Quando eu cheguei, dividia quarto com mais 22 garotos, alguns ratos e umas goteiras. Dormia debaixo da arquibancada, num baita calor. Ah, como eu sentia falta da família, dos amigos e da minha casa... Mas vou te falar: essas dificuldades me fizeram valorizar a vida que eu tinha e crescer muito como homem e também como jogador. Muito por causa de um cara chamado Fernando Diniz.

Imagina a cena: eu, que já tive um puta cagaço de jogar bola, passava mal e até vomitava antes dos jogos, franzino de tudo, não tinha força alguma, ouvindo o Diniz dizer pra mim 'você vai ser um jogador espetacular'. E eu só pensava 'esse cara é doido'. Ele me dizia que eu seria bom em qualquer profissão que escolhesse porque eu era aplicado e determinado.

Pra mim, ele é um gênio. As coisas que ele consegue fazer com a qualidade dos times em que já trabalhou... Pra ser sincero, só ele pra levar o Audax pra uma final de Paulistão, lembra? Pode ver que depois que ele saiu, o time só caiu. É um cara ímpar, uma pessoa fundamental. Merece tudo que está acontecendo. Torço por ele e temos contato até hoje. Inclusive, ele me ligou esses dias pra saber como eu tava.

Ele foi meu primeiro treinador no profissional, me subiu com 17 anos pra jogar o Paulistão. O mais louco é que antes de ir pro Audax do Rio, eu já tinha largado mão do futebol de campo e decidido que jogaria futsal. Na verdade, minha história começa bem antes disso, em uma época que nem eu mesmo lembro.

A época em que eu jogava de teimoso

Quando eu tinha três anos de idade tive uma pneumonia. Fiquei dez dias internado. Dois anos depois, eu tive novamente a doença e fiquei mais cinco dias internado. Meus pais contam que tiveram muito medo na época, porque eu era muito novinho.

Foi aí que o médico disse que eu precisava praticar algum esporte pra melhorar o pulmão. Minha mãe me colocou na natação e eu fiz um ano. A questão é que eu não gostava. Eu queria mesmo era jogar bola.

Meu pai sempre foi fanático por futebol, mas minha mãe estava cansada de tanto que ele saía com os amigos pra ver jogo, tomar uma e não curtia a ideia de que eu jogasse (risos). Só que depois de um ano de natação, eu cheguei em casa e disse pra ela que queria jogar futebol, não fazer natação. Ela é quem mandava em casa, e manda até hoje, então eu praticamente implorei pra estar numa escolinha.

Como a gente morava em São Cristovão, ela me levou na escolinha do Vasco. Lembro que cada um levava a própria bola e no primeiro treino eu levei uma bolada na cara que caí, chorei e pedi pra sair. Minha mãe entrou na quadra e deu a maior confusão. No dia seguinte, o treinador conversou com ela, disse que ela era responsável por mim fora da quadra, mas que ali dentro era ele, que bolada acontecia o tempo todo e que eu tinha que cair e levantar se quisesse jogar.

Minha mãe não era muito a favor, não. Mas hoje ela sabe mais de futebol do que eu, fala de táticas, está por dentro de tudo.

Nessa época eu fui pro Helênico, um time de futsal. Eu era muito novo e não tinha categoria pra mim, então jogava com meninos três anos mais velhos. Cara, eu só perdia. Acho que eu nunca ganhei um jogo quando era pequeno. Eu jogava de teimoso, mesmo. E não era derrota por pouco, não. Perdia de 15, de 20. Nessa época que eu passava mal antes dos jogos por causa da ansiedade e da falta de confiança. Vomitava, mesmo. Lembro até hoje da sensação horrível que eu não sabia de onde vinha. Eu devia ser ruim no fim das contas, né? Não tenho explicação.

Eu ficava muito bravo. Tanto que passava mal antes dos jogos. Eu ficava ansioso, vomitava. Meu pai até me deu bronca por isso, deixei de jogar alguns jogos. Quando acabava a partida, a gente brincava de 'pelada' e eu era sempre o melhor. O treinador me perguntava por que eu não jogava daquele jeito nas partidas e eu dizia que não estava à vontade. Mentira. Era cagaço mesmo.

Bruno Guimarães, Sobre o medo de jogar na infância

Botafogo e Fluminense me disseram 'não'

Eu passei por essa crise de ansiedade até uns 12 anos. Nessa época, eu passava muito mal antes dos jogos e não queria ir de jeito nenhum. Inventava dor de cabeça, diarreia... Mas foi uma chave que virou sozinha. Com o passar do tempo fui ficando mais confiante e passou.

Quando eu tinha uns 11 anos, fui fazer teste no futebol de campo do Fluminense, passei e fiquei um ano lá. Fui mandado embora. Dois meses depois, fiz teste no Botafogo. Treinei três vezes, no máximo, e fui mandado embora também.

Eu fiquei chateado pra caramba. Falei pra alguns amigos que não queria mais campo, que ia ficar no futsal mesmo. Só que aí o Mário Jorge, que foi meu treinador no Helênico, assumiu o Audax-RJ e me chamou. Ele disse que não precisava de teste, que já estava no time.

No Fluminense e no Botafogo eu era lateral-direito. Fui ala no futsal, então achava que era essa minha posição. Até que o Mário Jorge me falou: 'esquece esse negócio de lateral. Meio-campista, volante. Sabe o que é um volante? Vou te ensinar'. E foi assim que eu aprendi minha função.

Depois disso, da minha ida ao Audax e de subir pro profissional, o Athletico-PR se interessou por mim. Eu fui pra lá emprestado com opção de compra, cheguei a voltar pra jogar o Paulista, mas aí de novo apareceu o Fernando Diniz, que tinha ido pro Athletico, pedir pra ficarem de olho em mim.

Quem sabe não posso fazer como o Fernandinho no Athletico?

Eu preciso confessar uma coisa. Quando eu cheguei ao Athletico pela primeira vez, eu fiquei boquiaberto com a estrutura. Meu empresário me falava 'fica de boa', mas eu estava muito impressionado. Um monte de campo, lugar pra dormir... e eu pensava 'aqui não tem rato, não tem goteira' (risos).

Foi um passo muito grande na minha carreira. Por isso, guardo o Athletico com muito carinho no meu coração e a relação é muito boa. Até hoje acompanho sempre que dá. Me tratam com tanto respeito e é uma relação de reciprocidade. Os torcedores me mandam mensagem até hoje pedindo pra voltar, muitos me tratam como um dos maiores jogadores da história e isso é uma honra enorme. Eu tinha só 21 anos!

É gratificante demais ser colocado nesse rol dos melhores. Espero poder vestir a camisa do Athletico no futuro, bem mais pra frente. Quem sabe não posso fazer como o Fernandinho?

Minha história com o número 39

No Athletico também aconteceu algo que eu carrego até hoje: o número 39. Quando eu fui assinar, conversei com meus pais e disse que poderia escolher o número e estava pensando no 97, ano em que eu nasci. Meu pai disse pra mim: 'esquece isso. Se você puder, pega a 39. Sempre foi responsável por tudo aqui em casa, é o número do táxi que eu trabalho, sempre deu sorte pra nossa família e vai ter dar sorte também'. Eu fiquei com isso na cabeça.

Fiz o exame médico e fui fazer meu primeiro treino. Quando abro o armário pra pegar minha camisa, me deparo com ele: o número 39. Caraca, eu não acreditei! Liguei pro meu pai, perguntei se ele tinha falado alguma coisa e contei que tinham me dado a 39. Perguntei ao roupeiro e ele disse que não tinha motivo, só me deram o que tinha, aleatório, aí perguntou se eu queria ficar com ele. E sim! Claro que eu queria ficar com ele! E foi assim que as coisas aconteceram.

Até hoje eu carrego o número, tenho ele tatuado duas vezes e sempre que estiver disponível eu vou usar. O bom é que quase sempre está vago (risos). Na França, quando eu assinei com o Lyon, os números eram de 1 a 30. Eu liguei pro Juninho [Pernambucano, na época diretor do time] e pedi um favor. Ele falou: 'mais um?' Contei a história e pedi o 39. O Juninho pediu pra Federação Francesa, contou a história da minha família e conseguiu o número pra mim.

Aliás, eu recebi algumas propostas antes do Lyon. Uma delas foi da China. Aquele dinheiro poderia fazer muita diferença na minha vida, mas eu recusei. Na época, me chamaram de louco. Mas veja: eu sempre acreditei no meu potencial.

Eu tinha o objetivo claro de futebol europeu e seleção brasileira. Não foi fácil recusar, claro que não. Os números assustam muito. Mas eu sabia que se fosse pra China, eu ficaria distante desse sonho. Também sempre almejei jogar uma Liga dos Campeões, estar nas principais ligas do mundo, jogar uma Premier League. Eu sabia que poderia alcançar.

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Pra chegar no topo tem que estudar. Até jogador de futebol

Minha preparação pra chegar nesse topo do futebol passa por muitas coisas. Uma delas é que eu sou um cara que gosta muito de falar, conversar, trocar ideia e dar risada. Então, eu vou atrás de aprender os idiomas dos países onde eu jogo. É ruim chegar em um clube e não conseguir falar nada. Parece conversa de doido.

Na França, o que me ajudou mais foi a pandemia. É até chato falar assim, mas é que eu tive muito tempo pra estudar. Aqui na Inglaterra não tenho tanto tempo, mas estou progredindo e falando melhor. Eu tinha começado o curso há uns dois meses quando eu cheguei no Newcastle. Ainda não estava muito bom pra falar. E aqui, como é o norte da Inglaterra, é mais difícil ainda. É muito complicado.

Quando eu falo com pessoas que moram em outros lugares, eu dialogo melhor. Quando eu cheguei, pedi desculpa por não saber falar e prometi ao elenco que iria me esforçar dentro e fora de campo pra aprender inglês e poder conversar. Aí pouco tempo depois teve um jogo em casa, contra o Manchester City, e eu dei minha primeira entrevista em inglês. Fiquei nervoso, mas foi demais.

Acho que isso facilita pra mim. Eu ainda tenho um acompanhamento tático pessoal que me ajuda bastante, principalmente a estudar o adversário vendo vídeos. Tá valendo a pena estudar, ser esse nerd. No fundo, qualquer vantagem é importante.

Prefeito de Newcastle

Eu acho que falar o idioma do país onde eu tô jogando e querer ser sempre melhor dentro de campo são formas de demonstrar respeito pro clube e pra torcida. Ainda mais depois do que eu comecei a viver aqui no Newcastle. Os caras são loucos por mim, juro. É um pouco parecido com o que a torcida do Athletico fazia, mas talvez um pouco mais. Eu nunca tinha vivido isso.

Me falaram recentemente que 70% das vendas de camisa do time são com meu nome. Já vi gente com tatuagem do meu rosto, bandeira com meu rosto, música. Eu acerto um passe de meio metro e eles cantam 'Bruno, Bruno'. Tem camisa minha por toda parte da cidade. Onde eu vou na rua, eu tiro foto, me sinto um prefeito. Os caras gritam meu nome. Não dá pra entender, mas fico feliz.

Quer dizer, na verdade eu consigo entender um pouquinho. São torcedores que não estavam acostumados a ver jogadores de seleção no time e agora mudou da água pro vinho. É um time com uma torcida gigante, a mais fanática da Inglaterra, e que tava sofrendo.

O jeito que eu aceitei vir pro clube também foi algo marcante. Hoje qualquer um quer vir pro Newcastle, o time mais rico do mundo, mas eu cheguei com o time mal, apontado como virtual rebaixado. Eu e o Trippier fomos os primeiros a acreditar no projeto, então o torcedor tem um carinho especial. Acho que o Newcastle precisa de jogadores com essa mentalidade, não é sair contratando todo mundo só porque tem dinheiro. Não é trazer Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, Mbappé. Não é assim.

Por isso eu tento retribuir com meu melhor, é uma forma de gratidão. O mínimo que eu posso fazer é aprender o idioma pra tentar conversar com o torcedor quando ele quiser tirar uma foto.

Música da torcida do Newcastle homenageia brasileiros do time

Sonho de Copa e de Matteo

Quando eu tomei a decisão de ir pro Newcastle muita gente me xingou, me chamou de louco, disse que a chance de ir pra Copa do Mundo tinha acabado. Mas eu nunca duvidei do meu trabalho. Se desse certo, na verdade isso me deixaria mais perto do Qatar. É o que tá acontecendo agora.

Na verdade acho que desde as Olimpíadas as coisas estão acontecendo pra mim na seleção. Muita gente desmerece, mas foi um grande passo. O Brasil sofreu muito pra ganhar o ouro e quando ganhou eu só conseguia ficar feliz, chorar e ligar pras pessoas que eu amo. Mas racionalmente eu sabia que já era um grande passo pra seleção principal.

Não tem nada decidido, mas eu tô perto do meu sonho. É maravilhoso me sentir parte da seleção. Minha primeira convocação foi antes da pandemia. Eu fui convocado, iria me apresentar e não fui por causa da pandemia. Foi um choque enorme. Depois, teve uma que eu tava assistindo com meus pais e o cachorro. Até viralizou. Pra mim, foi o primeiro passo: 'agora sou um jogador de verdade'. É que quando você veste a camisa da seleção pela primeira vez, você é um jogador diferente do que já foi. Aumenta o respeito.

Agora tenho que continuar jogando meu futebol. Vou assistir a convocação com meus pais, minha mulher e o meu primeiro filho, que está vindo. O Matteo chega um mês antes da Copa, talvez no meio de outubro. A expectativa é muito grande. Estou comprando as coisas, mudando os quartos. Chegou um carrinho de bebê aqui e a ficha vai caindo. Espero ser convocado e quero estar com ele e a família na hora da alegria, porque foram eles que passaram comigo pelos momentos de tristeza.

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