Bisturi, foguete e um avião

Brasil x Chile de 1989 classificou a seleção à Copa em meio a uma série de eventos inusitados e tristes

Diego Salgado e Emanuel Colombari Do UOL, em São Paulo Jorge Araújo/Folhapress

Muita coisa aconteceu nos 24 anos que separaram os títulos do Brasil nas Copas do Mundo de 1970 e 1994. Pelé se aposentou, Zico e Sócrates surgiram para o futebol mundial e saíram sem ganhar a Copa, a seleção comandada por Telê Santana encantou, mas voltou para casa de mãos abanando.

Com uma história tão rica, talvez nem todo mundo se lembre de um jogo único: a vitória por 1 a 0 sobre o Chile, no Maracanã, em 3 de setembro de 1989, há 31 anos. Aquela partida garantiu à seleção uma vaga na Copa do Mundo de 1990, mas ficou marcada por uma série de eventos inusitados digna de obras de ficção.

Primeiro, um foguete foi atirado da arquibancada. Depois, o goleiro chileno Roberto Rojas aproveitou a explosão para forjar uma agressão —que, se tivesse dado certo, poderia ter custado caro à história da seleção brasileira. Fora do Maracanã, porém, outros acontecimentos se juntam ao jogo de maneira quase direta, como a queda de um avião na Amazônia que levou à condenação de dois pilotos que até hoje precisam responder se derrubaram um avião por estarem ouvindo à partida.

Jorge Araújo/Folhapress

Medo de não ir para Copa rondava a seleção

O Brasil entrou em campo com a ameaça real de ficar de fora de uma Copa do Mundo pela primeira vez na história. Campeã da Copa América em julho, a seleção brasileira tinha ainda quatro jogos para disputar nas Eliminatórias para o Mundial da Itália. Os duelos, contra Chile e Venezuela, aconteceram em um intervalo de cinco semanas.

A Venezuela ainda engatinhava no futebol profissional e foi presa fácil para brasileiros e chilenos nos jogos de ida e volta. Assim, disputa pela classificação se resumia a Brasil e Chile. O problema é que os rivais haviam eliminado os brasileiros da Copa América de 1987 e tinham um time experiente e duro de vencer. O primeiro duelo aconteceu em Santiago, em 13 de agosto, e acabou em 1 a 1.

A vaga, então, seria decidida na rodada final, 21 dias depois, no Maracanã. Um empate servia para o Brasil. Já os chilenos teriam de vencer.

Peter Robinson/Getty Images Peter Robinson/Getty Images

A farsa de Rojas

A seleção do Chile começava com um grande goleiro. Aos 32 anos, Rojas era líder de sua equipe, já tinha uma carreira consolidada e era figura conhecida no futebol brasileiro — no final da década de 80, era jogador do São Paulo. Em 1987, havia brilhado na Libertadores com a camisa do Colo-Colo contra o clube paulista, que decidiu contratá-lo após a campanha chilena na Copa América.

Naquele setembro de 1989, Rojas teve uma ideia dois dias antes da viagem ao Rio de Janeiro: guardar uma lâmina de bisturi no velcro da luva para forjar uma agressão em campo. A intenção era que o estádio do Maracanã fosse declarado inseguro e a partida fosse adiada e disputada em campo neutro dias depois. Na avaliação de Rojas, assim, o Chile teria mais chances de vencer o Brasil e voltar à Copa.

Por coincidência, passados pouco mais dos 20 minutos do segundo tempo, uma torcedora atirou um sinalizador em direção ao gramado, que acabou caindo perto do goleiro. Foi a senha para o início da encenação. Àquela altura, o Brasil já vencia por 1 a 0, gol de Careca, aos três minutos do primeiro tempo. Em circunstâncias normais, a classificação brasileira ao Mundial da Itália era apenas uma questão de tempo em um Maracanã tomado por 140 mil pessoas.

Flávio Canalonga/Estadão Conteúdo/AE Flávio Canalonga/Estadão Conteúdo/AE

Sangue no gramado, abandono de jogo e farsa descoberta

Caído no gramado e coberto pela fumaça produzida pelo sinalizador, Rojas tirou o bisturi da luva e cortou o próprio supercílio esquerdo. "Mantive um bisturi na luva durante o jogo. Quando vi aquela fumaça perto de mim, me cortei. Saiu muito sangue", disse Rojas em uma entrevista concedida em maio do ano seguinte. Ensanguentado, Rojas recebeu apoio dos companheiros e de integrantes da comissão técnica. Sete minutos depois, o Chile decidiu abandonar o gramado alegando falta de segurança, e o goleiro saiu carregado.

O árbitro argentino Juan Lostau esperou mais 20 minutos e encerrou o jogo. Na súmula, relatou o abandono de campo do Chile. Essa descrição favorecia a seleção brasileira, que seria declarada vencedora do jogo pela Fifa. A farsa foi descoberta por causa de uma sequência de imagens feita por um fotógrafo, Ricardo Alfieri, que estava atrás do gol chileno. As fotos mostraram a sequência do foguete, que cai longe do goleiro. Baseando-se no relato da equipe de arbitragem e em imagens da partida, entre elas, as fotos de Alfieri, que mostraram que Rojas demorou alguns segundos para ir ao chão após a queda do sinalizador, a Fifa declarou o chileno culpado.

Em dezembro daquele ano, ele decidiu falar a verdade em uma tentativa de reduzir a punição imposta pela entidade máxima do futebol. Rojas disse que recebeu ajuda de Fernando Astengo, zagueiro da seleção chilena. O goleiro ainda acusou o médico do time, Alejandro Kock, de fornecer o bisturi. Todos negaram envolvimento no episódio.

Mantive um bisturi na luva durante o jogo. Quando vi aquela fumaça perto de mim, me cortei. Saiu muito sangue

Roberto Rojas, ex-goleiro do Chile, em entrevista meses após a partida

Ele não quer assumir a culpa sozinho e quer arrastar outras pessoas junto

Fernando Astengo, ex-zagueiro do Chile, acusado de participar da farsa por Rojas

Reprodução

Banimento do futebol

A Fifa demorou uma semana para confirmar a classificação do Brasil para a Copa do Mundo da Itália. Em uma sessão extraordinária, no dia 10 de setembro, a entidade, baseada na súmula do árbitro Juan Lostau e em relatórios escritos por outros integrantes da arbitragem, entendeu que o Chile abandonou o campo sem motivo.

"A essa comissão cabia julgar o abandono de campo. Aplicou-se o regulamento", disse na ocasião o então secretário-geral da Fifa, Joseph Blatter, que se tornaria presidente da entidade.

Rojas, os envolvidos no episódio e a seleção chilena seriam julgados nas semanas seguintes. O goleiro foi suspenso de jogos internacionais e, depois, banido do esporte. O zagueiro Fernando Astengo foi punido por incitar os companheiros a abandonar o campo e só voltou a jogar em 1993. O Chile, por sua vez, foi excluído das Eliminatórias para a Copa de 1994.

João Havelange, que presidia a Fifa na época, mas não participou da reunião, considerou a punição a "mais dura" da história da entidade.

O time do Brasil em 89 era quase o mesmo de 87. Eu estava jogando muito bem no Maracanã. Não sofreria outro gol. Se o foguete não tivesse caído no gramado, a história seria outra

Rojas, em 2001

Ronaldo Theobald/Estadão Conteúdo Ronaldo Theobald/Estadão Conteúdo

De "Fogueteira do Maracanã" à capa da Playboy

A responsável pelo rojão, que deu início à farsa protagonizada por Rojas, foi identificada como Rosenery Mello Nascimento Barcelos da Silva, então com 24 anos. A funcionária da Light, empresa de fornecimento de energia do Rio, chegou a ser levada para a delegacia, prestou depoimento e foi liberada. No dia 5 de setembro, a Folha de S.Paulo publicou uma entrevista em que ela revelava o medo de ser reconhecida.

Temo que agora me tratem como culpada e até me agridam. A caixa (do sinalizador) tinha instruções que diziam não haver perigo de queimaduras".

O episódio serviu para transformar a jovem em celebridade-instantânea. Poucos dias depois, a Playboy anunciou a intenção de fazer um ensaio com ela. A "Fogueteira do Maraca" recebeu um cachê estimado em US$ 40 mil para estampar a capa da edição de novembro de 1989 da revista masculina mais famosa do Brasil.

Diretor de redação da Playboy na época, Carlos Maranhão definiu o ensaio como "bastante razoável", apesar de Rosenery não ter o perfil das modelos e atrizes que geralmente apareciam na revista. "Mas, eventualmente, eram essas instant celebrities. A Rosenery ficou famosa da noite para o dia por um fato insólito", lembrou Maranhão.

EugÍnio Novaes/Folhapress EugÍnio Novaes/Folhapress

Acidente aéreo e o clarão na Amazônia

Um jogo de futebol seria capaz de derrubar um avião? Em 1989, até isso foi especulado. Em 3 de setembro, o voo 254 da Varig decolou de Guarulhos (SP) com destino a Belém (PA), mas jamais chegou à capital paraense. Mais de três horas depois a decolagem, o Boeing 737-200 caiu na escuridão da Amazônia e só foi encontrado dois dias depois, em São José do Xingu (MT), a cerca de 1.100 quilômetros de distância da capital paraense. Das 54 pessoas a bordo, 12 morreram.

Os próprios sobreviventes levantaram a possibilidade de que o piloto, Cézar Augusto Padula Garcez, e co-piloto, Nilson de Souza Zille, poderiam ter se distraído com o jogo no Maracanã. Os dois negaram. "Eu não escutei o jogo do Brasil. Não sei nem quanto foi o jogo. Nem tentei escutar", disse Garcez, em entrevista publicada pela Folha de S.Paulo em 9 de setembro de 1989.

Segundo o co-piloto, a única referência ao jogo aconteceu antes da decolagem em Marabá, onde o avião fez a última escala antes de seguir com destino a Belém, quando uma comissária perguntou se a partida já havia começado. "Depois de todo mundo resgatado, um sobrevivente falou que o acidente aconteceu porque estávamos ouvindo o jogo Brasil e Chile. Gostaria eu, do fundo do meu coração, que a gente estivesse escutando um jogo, que a gente tivesse um sinal de navegação. Seria muito bom mesmo, porque aí, com certeza, a gente saberia que estaria indo para cima de Belém ou de qualquer cidade", desabafou Zille, por telefone, ao UOL.

A versão do pilotos foi confirmada pelas gravações da caixa-preta do Boeing. E, depois, descobriu-se que um erro de interpretação causou o acidente. O plano de voo apontava uma rota a 27,0 graus a partir do norte em sentido horário (em relação ao aeroporto de Marabá), mas estava sem a vírgula e com um zero na frente, 0270 —o que levou o piloto ao erro. Sem conseguir encontrar Belém, que fica ao norte de Marabá, Garcez voou em direção contrária até ficar sem combustível e fazer um pouso forçado na floresta, no estado do Mato Grosso.

O destino dos envolvidos

  • Os pilotos

    Em 1997, Cézar Augusto Padula Garcez e Nilson de Souza Zille foram condenados a 4 anos de prisão. Posteriormente, a punição foi convertida em multas e penas alternativas. Zille disse em entrevistas que o acidente foi causado por Garcez, que não assumiu o erro de interpretação dos dados. O comandante, em raras entrevistas, assumiu a responsabilidade da falha, causada por diferenças nas linguagens entre distintas aeronaves.

    Imagem: Lula Marques/Folhapress
  • Rosenery

    Além da capa de Playboy, Rosenery seria homenageada em uma música anunciada por Jorge Ben Jor. Só que a canção nunca foi ouvida. Procurada, a produção de Ben Jor não soube dizer "nem se o artista cogitou fazer a música". A "Fogueteira do Maracanã" morreu em junho de 2011, aos 45 anos, em decorrência de um aneurisma cerebral. Ela vivia em Araruama (RJ), onde era dona de um bar, e tinha três filhos.

    Imagem: Reprodução

Rojas quase foi para time patrocinado por empresa de fogos

Em 1989, o goleiro Rojas era jogador do São Paulo. E, em meio ao julgamento da Fifa, o São Bento, de Sorocaba, no interior paulista, bolou uma ação de marketing para tentar contratá-lo: no começo de dezembro, o clube procurou o Tricolor paulista para tentar um empréstimo de Rojas. Àquela altura, o goleiro teria condições de disputar jogos de campeonatos nacionais ou regionais, pois a punição imposta pela Fifa em setembro determinava apenas a exclusão de partidas internacionais.

Diante da brecha, Edgard Moura, então presidente do São Bento foi atrás de um patrocinador para viabilizar o empréstimo. Ironicamente, a Caramuru, empresa que produz fogos de artifício, topou financiar a ida do goleiro para o interior de São Paulo. "Eu conversei com a esposa do Rojas na época. Eles aceitaram. Eu tinha contratado o Valdir Peres para ser treinador e precisava de um goleiro experiente. Seria uma jogada de marketing também, estaríamos na mídia", relembrou Edgard Moura ao UOL Esporte.

O sonho do São Bento durou pouco. Em 10 de dezembro, a Fifa definiu o banimento de Rojas dos gramados. "Eu estava com o cheque da Caramuru na mão quando soube da punição", lamentou o ex-presidente do clube de Sorocaba.

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Volta ao futebol no São Paulo

Depois da farsa no Maracanã, Rojas foi acolhido pelo São Paulo. Cinco anos depois do episódio que marcou sua carreira, foi contratado como preparador de goleiros. Dez anos depois, virou treinador do clube. Ao lado do auxiliar técnico Milton Cruz, Rojas levou o São Paulo à Libertadores após um hiato de dez anos.

"Nós ficamos amigos, conhecia ele de jogar contra [Milton era atacante]. Depois a amizade aumentou mais ainda pela lealdade dele", disse Milton ao UOL. Para o ex-auxiliar do São Paulo, a punição a Rojas foi muito pesada. "Foi difícil, porque tudo ficou em cima dele. Foi uma pena muito dura, mais forte que já vimos. Ainda bem que o São Paulo foi solícito, olhou o profissional. Ajudou muito ele".

Milton ainda lembrou que Rojas se arrependeu do episódio do Maracanã. "É uma coisa que ninguém esquece. Ele sentia, mas numa boa, tem uma cabeça legal. Ele superou, mas é uma marca que fica. Ele se arrependeu", completou Milton.

Rojas hoje vive em São Paulo, longe do futebol. No começo da década, lutou contra a hepatite C e, por anos, esperou por um transplante de fígado. Como mostrou o UOL Esporte há dois anos, o ex-goleiro do Chile ainda sonha em voltar ao São Paulo.

Adriano Wilkson/UOL Adriano Wilkson/UOL

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