Sou Miraildes Maciel Mota, mas não me chame pelo meu nome. Hoje, ninguém mais me conhece desse jeito, exceto uma ou outra vizinha. Desde pequena já não me chamavam assim. Quando menina, era "Mira". Mira em casa, na escola —as tias da cantina falavam Miraildes, confesso—, no futebol da rua. Mas, há quase 30 anos, sou Formiga. E gosto de ser Formiga.

No começo, lá quando um torcedor aleatório me chamou de Formiga pela primeira vez, odiei. Ele achava que eu corria para todo lado, por todo campo, que nem uma formiguinha. Problema dele! E odiei mais ainda quando as meninas do time inventaram de repetir o apelido. Começou com uma. Ela ouviu o grito do cara na torcida e decidiu encher meu saco, repetindo incessantemente que, a partir daquele momento, eu seria Formiga. Me subiu um ódio, uma raiva, que saí na porrada. Ela era alta, eu era baixinha, então não conseguia socar a cara. Esmurrei o abdômen e chutei as canelas. Não adiantou. Lá de cima, ela me olhava e ria, num ciclo sem fim de raiva que me abastecia.

Minha reação ridícula fez com que as outras entrassem na provocação. Mas eu não queria ser Formiga. Me imaginava com aquelas anteninhas, um horror. Só que apelido, quando a gente não gosta, aí que pega. Muito tempo depois, fui perceber que minha reação exacerbada e um tanto descontrolada era só um reflexo de como tinha sido minha vida até aquele dia. Cresci convivendo com agressões e punição, normalizei tudo isso por muito tempo. As violências, depois de eu me fortalecer como mulher, não cessaram. Sou mulher, preta, lésbica e jogadora de futebol, imagine só? É bingo. Mas minha forma de lidar com essa violência, essa sim, mudou.

Sou Miraildes Maciel Mota, mas não me chame pelo meu nome. Sou Formiga. E essa é a minha história.

Te convido a viajar comigo para Salvador, na Bahia, até a periferia de Lobato no fim dos anos 1980. Era ali que eu morava, junto da minha mãe e meus dois irmãos mais velhos. Meu pai morreu quando eu tinha oito meses, em decorrência de doença de Chagas. Era ele o boleiro da família, o cara que jogava bola todo domingo, apesar de ser Testemunha de Jeová. O sonho dele era ter uma filha mulher.

Minha mãe trabalhava fora o dia todo, sustentava a casa, e meus irmãos tomavam conta de mim quando chegavam do trabalho. Toda tarde, os meninos da rua se juntavam para jogar futebol. Eu já adorava futebol. Toda boneca que eu ganhava de presente perdia a cabeça para virar bola. O declive que os olhos causavam na cabeça e a pontinha do nariz prejudicavam um pouco, mas não tinha problema. Era uma bola que rolava meio torta, mas era uma bola.

Quando a tarde chegava, eu me enfiava no meio dos meninos para jogar de verdade. Mas meus irmãos não gostavam, então eu jogava escondido. O problema era quando eles descobriam.

A porrada comia solta. E não era um tapinha ou outro não. Eram socos e pontapés. Apanhava porque era menina, e menina não jogava bola. E não jogava porque na rua só tinha menino jogando. E menina jogando com menino podia se machucar. Sabe como é.

Na primeira vez que eles me descobriram entre os meninos, o pau comeu solto ali na rua mesmo, na frente de todo mundo. Morri de vergonha, e meus amigos, de tristeza. Depois desse dia, cada um gritava de um canto quando avistavam, de longe, meus dois irmãos.

E eu corria, mas corria tanto, que os dois —homens e mais velhos— não conseguiam me pegar. Me escondia na casa da dona Nádia, a vizinha, até anoitecer e minha mãe chegar do trabalho. Dali, tomava o rumo de casa, ou voltava a jogar com os meninos. Minha mãe, depois de fazer comida e lavar a louça, sentava na calçada e ficava me vendo jogar. Ela nunca encrencou, mas eu também não podia contar que apanhava. Se contasse, no dia seguinte apanhava mais.

Um dia, já em meados dos anos 1990, um anjo chamado Dilma Mendes caiu do céu na frente do meu portão. Ela jogava bola em um time de mulheres —existe time de mulheres?!— e me queria nele. Dilma beirava os 30 anos e queria começar a transição para ser treinadora. Já dava um ou outro pitaco ali no time.

Para jogar com elas, eu precisaria sair de casa e morar com outras meninas atletas. Eu tinha 12 anos, era menina de tudo, mas Dilma conversou com minha mãe, que deixou a decisão nas minhas mãos. Não pensei duas vezes: apanhar todos os dias dói, e muito. E parar de jogar futebol nem passava pela minha cabeça. Fui embora com Dilma —meus irmãos não estavam em casa, nem me viram sair. Quando voltaram do trabalho, eu já não estava mais.

Descobri, então, um mundo que nem sabia que existia. O time Euro Sport Campomar participava de campeonatos, e eu cresci ali, me desenvolvi dentro daquele elenco, com Dilma jogando e me dando todo suporte que precisava. Nosso primeiro Campeonato Brasileiro rolou quando eu tinha 16 anos. O técnico não me botou para jogar, me achava muito nova, muito pequena, mas Dilma entrou em cena de novo: ela estava no time e fingiu uma lesão para que ele não tivesse saída senão me colocar em campo.

Fui destaque do campeonato naquele ano, e a regra dizia claramente: o destaque do campeonato vai para a Copa do Mundo. Com 17 anos, estava lá, eu, na seleção brasileira. Joguei que nem pelada, mas muito por não entender o tamanho daquele feito. Quando falo de futebol feminino nos anos 1990, existe uma diferença gritante para o que a gente vê hoje. Não que hoje seja bom. Mas era muito pior.

Ninguém queria saber da gente. Ninguém ligava se ia ou não ter Copa feminina. Quando comecei no futebol, a gente viajava mais de 14 horas de ônibus para chegar aos campeonatos —que, no meio do caminho, avisavam que tinham sido cancelados de última hora. E a gente lá, no meio do nada, depois de quase dez horas de ônibus, tinha que dar meia volta e retornar todo o percurso. Quantas vezes não tivemos de sair da Granja Comary porque a seleção sub-20 masculina iria treinar ali.

Já joguei em campos horríveis, sem condições. Já fiquei em hotéis infestados de aranhas, com cheiro de cocô. Foram muitos perrengues.

Formiga

Arregacei as portas do armário

As dificuldades externas aconteciam simultaneamente com as tretas internas, é claro. Bem que eu queria que um esperasse o outro acabar para começar. Não rolava. Enquanto me desdobrava para jogar bola num país que se lixava para o futebol feminino, comecei a entender minha sexualidade.

Tinha entendido que sair de casa me livraria da violência, e que talvez, longe, eu estivesse a salvo. Mas demorei a perceber que ela só mudaria de forma. Sou uma mulher lésbica. Começar a me entender lésbica foi um processo complicado, e não por que me importava com o que gente de clube ia pensar ou dizer. Mas porque não queria que minha mãe soubesse.

Sei lá, não queria magoar ninguém. A família do meu pai é toda Testemunha de Jeová, imaginava o rebuliço que ia dar. Para os dirigentes dos clubes por onde passei, eu não estava nem aí.

Quando o presidente [de clube] dizia que as jogadoras tinham que deixar o cabelo crescer, eu ia lá e raspava o meu na máquina um. Ouvi presidente dizendo que 'se tiver sapatão aqui, não vai jogar'. E engolia tudo aquilo a seco pela minha mãe.

Formiga

Mas a maturidade vai ensinando muito pra gente. Depois de um tempo, desencanei. Deixei de engolir, e ficou bem claro para mim que é a minha vida. Era maior de idade, sabia bem o que queria. Já sofria um monte de preconceito mesmo sem ser assumida —o povo dizia 'Joga futebol? É sapatão. Tem que morrer tudo'. Ah, quer saber? Vou sofrer com gosto. E arregacei a porta do armário.

Minha mãe foi tão acolhedora e querida, que nada mais importava. Ela disse que já sabia. Aproveitou para me contar uma história de quando eu era menina, e uma vizinha ficou brava porque chutei a bola no portão dela. A tal vizinha disse que, se eu continuasse na rua com os meninos, viraria sapatão. E minha mãe respondeu: 'Se ela for, não tem problema nenhum. Melhor que virar uma velha coroca que não tem nada pra fazer'.

Quando conheci a Erica, que hoje é minha esposa, tudo mudou. Ela me acalmou.

Antes, minha resposta à homofobia era a porrada. Hoje, mando beijinho. Se continuar, vai preso, porque agora é assim. Digo que encontrei Jesus. Mais precisamente Erica Jesus.

Racismo dói pra cacete

Mas foi um processo, viu? Eu sempre pensava: já não basta o preconceito por ser preta, jogadora de futebol e nordestina. Também sou lésbica. Pô, sofro por quatro. Tô mais carimbada que meu passaporte. O carimbo do racismo foi constante desde menina, porque eu, por um tempo, pude fingir não ser lésbica. Mas não dá pra fingir não ser preta. A sociedade lembra pessoas pretas o tempo todo de que elas são pretas.

Eu nunca estudei sobre racismo. Eu vivi o racismo. Por causa dele, não escolhi ser antirracista. É uma obrigação. Quando o Vini Junior sofre racismo, dói em mim. Quando minha companheira de time Neném sofreu racismo, doeu em mim. E quando eu fui a vítima, com certeza doeu em tantos outros pretos que souberam da minha história.

O caso da Neném é um de que me lembro com detalhes até hoje. Senti na minha pele quando a pele daquela carioca, negona e porreta virou alvo. Ela era minha companheira de time, e estávamos jogando pelo São José. Ela estava mandando tão bem, arregaçando com o jogo, até três moleques da torcida adversária a chamarem de macaca. Várias vezes.

Eu ouvi. E, ao voltar meu olhar para ela, percebi que ela também tinha ouvido. Aliás, não sei se tinha como não ouvir. Eles faziam questão de gritar bastante alto. Lidar com aquilo foi duplamente doloroso, por me reconhecer nela, e por ver um desempenho que estava tão excepcional definhar. E entender o porquê.

Puxei a Neném para um canto e pedi que esquecesse, que não escutasse. Segurei seus braços com força, encarei seus olhos e disse que resolveria tudo aquilo. Mas que, naquele momento, precisava dela focada naquele jogo. Os olhos dela me fitaram de volta, cheios de lágrimas, e eu senti. Senti tudo aquilo que ela estava sentindo. A gente se abraçou, e ela deslanchou. Meteu três gols nos caras.

Racismo dói. Dói pra cacete. Quando acabou o jogo, os moleques pediram para tirar foto comigo. Como é que é, rapaz? Não queria tirar foto, queria era partir para cima deles. Cair na porrada. Mas não podia, eram adolescentes. Então, descasquei. Eles tentaram pedir desculpas a Neném, e ela não aceitou. Eu apoiei: 'Ela está magoada, eu também estou. Ela é minha irmã, o sangue que corre no braço dela corre no meu. Sabe o lugar pra onde você vai quando morrer? Eu vou para lá também'.

E daí, né, o tempo foi passando. O passar do tempo é o que nos faz ser melhor a cada dia. Hoje, aos 45 anos, sinto que ainda não é a hora de me aposentar, apesar de já estar mirando alguns cursos técnicos da CBF. Quero ser treinadora ou me enfiar mesmo no futebol feminino, para tentar mudar a estrutura pela raiz. São planos.

É bom olhar para trás e me ver em sete Copas do Mundo com a camisa da seleção. É bom ser a jogadora com mais Copas no currículo entre homens e mulheres. Mas não sei se caiu a ficha ainda de todo esse tempo e do que vivi nele. Passa rápido. Até hoje, quando soa o apito e um jogo começa, me sinto descalça pelos terreiros de Salvador, na pelada com os moleques e com tantos sonhos presos na cabeça.

Me vejo em casa, decapitando boneca por boneca para criar minhas próprias bolas, ou então correndo na maior velocidade possível para não ser espancada pelos meus irmãos.

As violências não acabaram, as sinto na pele por quem sou e por como eu amo, mas todo esse caminho percorrido me transformou numa mulher forte, que aprendeu a enfrentar cada uma delas. Você já viu a força de uma Formiga? Elas levantam até cinquenta vezes o próprio peso.

Claro que não sabia disso quando detestei e reneguei o apelido Formiga. Mas agora eu sei. Então, não me chame pelo meu nome.

Me chame de Formiga.

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