As origens de Haaland

Como o garoto que nasceu celebridade se tornou o maior artilheiro de uma edição da Premier League

Thiago Arantes e Eder Traskini Do UOL, em Barcelona (ESP) e São Paulo (SP) Matt McNulty/Manchester City FC via Getty Images

Erling Haaland tinha apenas 15 anos e nunca havia disputado uma partida como profissional quando chamou o colega Sondre Norheim de canto, depois de um treinamento do Bryne FK.

"Você fica depois do treino me passando umas bolas? Quero treinar finalização", disse o atacante, que estava no time B, mas já começava a ser chamado para completar as atividades da equipe principal.

Norheim, um zagueiro de 18 anos que dava os primeiros passos na equipe principal, aceitou. A ideia era simples: ele daria os passes, Haaland dominaria e chutaria de diferentes maneiras, em várias partes do campo.

"Pensei que seriam uns 15 ou 20 minutos", lembra o defensor, em conversa com o UOL. O treino extra durou mais de uma hora. "Naquele dia, eu vi que ele tinha algo especial. Ele chutava, repetia, mudava de lugar. Às vezes não gostava de um chute, pedia para fazermos de novo. E ainda não tinha nem 16 anos".

A história contada por Norheim aconteceu em 2016. Na época, Haaland era apenas um projeto de jogador. Um adolescente alto e magro, artilheiro das categorias de base de um time da pequena Bryne, no sudoeste da Noruega.

Magi Haroun/EMPICS via Getty Images Alf-Inge Haaland, pai do atacante, jogou dez anos na Premier League e foi uma estrela na Noruega

Alf-Inge Haaland, pai do atacante, jogou dez anos na Premier League e foi uma estrela na Noruega

Famoso desde o berço

Dizer que Erling Haaland ficou famoso quando começou a se destacar jogando futebol é impreciso. Afinal, ele sempre foi conhecido em Bryne, mesmo antes de se mudar para a cidade, aos três anos, em 2004.

A fama precoce tinha um motivo. Na verdade, dois: os pais atletas.

O pai, Alf-Inge Haaland, jogou durante dez anos na Premier League e foi uma estrela da melhor fase do futebol da Noruega. Lateral-direito, Alfie vestiu as camisas de Nottingham Forest, Leeds United e Manchester City, e jogou a Copa do Mundo de 1994.

A mãe, Gry Marita Braut, foi uma das melhores atletas da Noruega nos anos 1990, destacando-se na prova do heptatlo. Quando o casal trocou a Inglaterra por Bryne, todos os vizinhos sabiam que os ídolos nacionais estavam por perto.

Em uma cidade de 12 mil habitantes, os filhos de Alfie e Gry eram conhecidos por todos. Até hoje, cada habitante da cidade tem alguma conexão - ainda que distante - com os membros da família.

Mas poucos podem falar que conheceram o jovem Erling tão bem quanto um homem: o treinador da futura estrela durante oito anos.

Bryne FK
Haaland com um troféu de artilheiro na base do Bryne FK

De volta para o futuro

Alf Ingve Bernsten tem uma resposta pronta para a mensagem que mais tem recebido nos últimos anos. Sempre que alguém pergunta "você viu o que o Erling fez hoje?", ele contra-ataca:

"Tudo o que ele faz agora eu já vi há dez anos".

A voz tranquila de Bernsten carrega um tom de orgulho; e, também, de privilégio. O privilégio de ter visto uma parte do futuro do futebol em primeira mão. Enquanto o planeta bola se dividia entre Messi e Cristiano Ronaldo, o campo do Bryne FK formava o novo recordista de gols em uma mesma temporada da Premier League.

O norueguês foi o técnico de Haaland entre os 8 e os 15 anos, nas categorias inferiores do Bryne FK. "Ele sorria muito, marcava muitos gols e treinava muito. É praticamente a mesma coisa que vemos hoje em dia", conta ao UOL.

Para o treinador, o que mais o fascina em seu pupilo mais famoso não é a capacidade de destruir defesas e superar goleiros com gols acrobáticos, em velocidade, usando a força - ou uma combinação de tudo isso.

O que encanta o veterano técnico é um lado de Haaland que a maioria dos fãs não conhece. "Erling ainda é Erling. Ele não mudou praticamente nada. É humilde, é solidário, é um cara legal, querido pelos amigos".

Anatomia do recorde: os 35 gols na Premier League

Opta Opta

O principal nessa história é o trabalho dele. É claro que temos uma parte importante, mas o fundamental é ele ser quem ele é. Caras como Erling aparecem independentemente dos treinadores. Nosso trabalho principal era criar as condições pra ele jogar e ser feliz"

Alf Ingve Bernsten, técnico de Haaland entre os 8 e os 15 anos

Bryne FK
Haaland atuando pela base do Bryne FK

Craque sem privilégios

A base do Bryne FK, onde Haaland nasceu para o futebol, tinha 40 crianças - 39 meninos e uma menina. A única garota do grupo era Andrea Norheim, campeã da Champions League Feminina pelo Lyon, em 2016-17, e irmã de Sondre Norheim, o "ajudante" de Erling anos depois nos treinos extras de finalização.

Além dela e de Haaland, outros três jogadores se tornaram profissionais.

Ter cinco profissionais em um grupo, incluindo uma vencedora de Champions League e uma estrela da Premier seria motivo de orgulho para qualquer treinador. Mas quando fala daquele time, Alf Ingve Bernsten deixa claro que todos tinham - e, para ele, ainda têm - a mesma importância.

"Eu ainda tenho uma ótima relação com aquele grupo de 40 jogadores. Erling era um jogador melhor que os demais, é claro. Mas ele nunca teve um trato especial por isso. Jamais tratei uma pessoa melhor que a outra porque ela chuta uma bola melhor", explica.

"Temos carpinteiros, eletricistas? alguns foram estudar fora da Noruega. Um deles é o mecânico do meu carro. Tenho muito orgulho de todos eles", acrescenta Bernsten.

Na base do Bryne FK, havia três regras básicas: a primeira era não chegar tarde; a segunda, sempre dar o melhor desempenho possível; e a terceira, respeitar os colegas. Nessa última regra, há outro traço da personalidade de Haaland que permaneceu.

"Ele aprendeu desde cedo a não reclamar dos colegas. Se um companheiro fez um passe ruim, não é porque ele quis. Para ele, foi importante entender que o jogo é coletivo e que todos estão tentando fazer o seu melhor", conclui o treinador.

Bryne FK Bryne FK

Franzino, mas inteligente

A coletânea de gols que levou Haaland a fazer uma temporada que já é histórica no Manchester City tem de tudo um pouco: gols de cabeça, de pênalti, de perna esquerda, de direita - a perna ruim -, em arrancadas e até gols acrobáticos.

Mas, dentre tantas vezes que o norueguês foi às redes, talvez a mais emblemática tenha acontecido em 22 de outubro, contra o Brighton, pela Premier League.

Depois de um lançamento longo de Ederson, o atacante arranca, se antecipa ao goleiro espanhol Robert Sánchez, tromba com o zagueiro Adam Webster - que acaba no chão - e chuta para o gol vazio. Força e velocidade e estado puro: duas das características mais marcantes do artilheiro.

Só que nem sempre foi assim. "Ele já era alto, mas não era forte, nem tão rápido", lembra Sondre Norheim, que sofreu com o jovem Haaland nos treinamentos já na equipe profissional do Bryne FK. O defensor, hoje com 26 anos, continua no clube, que disputa a primeira divisão da Noruega.

"Ele sempre estava no lugar certo dentro da área, no ponto certo para fazer os gols. Isso fazia ele ter mais chances. E, quando tinha as chances, ele não errava? Sempre foi muito frio", afirma o ex-companheiro.

Essa inteligência espacial de Haaland surgiu ainda na adolescência. A partir dos 8 anos, ele passou a treinar com crianças um ano mais velhas. Ainda pequeno e franzino, teve de desenvolver outras habilidades. Tudo isso, com uma concorrência forte: os dois zagueiros que ele costumava enfrentar nos treinamentos ainda na adolescência, além de um ano mais velhos, eram das melhores promessas da equipe; ambos chegaram à seleção sub-17 da Noruega, anos depois.

James Gill - Danehouse/Getty Images James Gill - Danehouse/Getty Images
Alf Ingve Bernsten/Arquivo
Haaland, na primeira fila à esquerda com blusa branca, com seus colegas da base do Bryne FK

Quando nasce uma estrela?

Em que momento um adolescente bom de bola vira candidato a craque de nível mundial? Quem estava ao lado de Haaland durante o processo de formação não tem dúvidas. "Foi aos 12 anos. Ali a gente percebeu que ele era diferente", conta Alf Ingve Bernsten.

Nas categorias inferiores, os olheiros costumam observar quatro fatores básicos para definir o potencial de um jogador: os aspectos técnicos, táticos, mentais e físicos. O jovem Haaland tinha os três primeiros. Mas, fisicamente, ficava muito atrás de colegas, sempre mais velhos.

A esperança era o irmão, Astor, cinco anos mais velho. "A gente via o irmão mais velho dele, que era muito forte? Então prevíamos que, pela genética da família, ele também poderia ficar mais forte com o passar do tempo", lembra Bernsten. Aos 12 anos, Haaland começou a crescer. Foi então que a diferença para os demais adolescentes ficou evidente.

O treinador que melhor conheceu o jovem Haaland traça um paralelo com outro jogador que ganhou fama desde a adolescência: o brasileiro Neymar. "Eles são parecidos, porque se adaptaram muito bem às mudanças de nível na carreira e se tornaram jogadores de alto nível, mesmo com uma concorrência cada vez maior".

'O grupo de WhatsApp explodiu'

Entre o garoto de 12 anos que brilhava em Bryne e o monstro que empilha gols na temporada de estreia pelo Manchester City, Haaland passou pelo time profissional do próprio Bryne, pelo Molde, pelo Red Bull Salzburg e pelo Borussia Dortmund.

Mas foi com a camisa da Noruega, no Mundial Sub-20 de 2019, que o norueguês apareceu para o mundo.

Na época, recém-adquirido pelo Salzburg, Haaland estava longe de ser uma estrela. Recuperando-se de lesão e diante de um time encaixado, ele só ganharia chances na temporada seguinte.

"O time estava muito encaixado e não havia espaço para ele. Até então, era uma incógnita, com oscilações nos treinamentos. Não tinha esse faro enorme de gol ainda. Só que no fim do ano nosso centroavante, o Dabbur, foi vendido para o Sevilla e a chance caiu no golo dele", lembra o zagueiro brasileiro André Ramalho, atualmente no PSV e que jogou com o norueguês no time austríaco.

Só que, antes mesmo de se tornar titular do Salzburg, ainda nas férias do clube, veio a partida histórica: Noruega 12 x 0 Honduras. Nove gols de Erling-Braut Haaland.

Lembro até hoje. Estava de férias e dali a pouco o grupo de WhatsApp explodiu: 'o cara já fez quatro gols', 'cinco', 'seis', dali a pouco 'nove!'. Ganhar de 12 já é absurdo, mas ele fazer nove? Falei 'o que é isso?!'. Quando começaram os jogos, ele não parou. Foi gol atrás de gol, hat-trick na estreia na Champions. É o cometa Haaland. Se você parar para pensar, foram seis meses só jogando e o mundo inteiro já conhecia ele" André Ramalho, zagueiro do PSV

Naquele dia 29 de maio de 2019, enquanto o grupo de WhatsApp dos jogadores do Salzburg soltava fumaça, o garoto criado em uma cidade pequena do sudoeste da Noruega mostrava pela primeira vez aos próprios companheiros e ao mundo o que viria pela frente. Menos de quatro anos depois, Haaland é artilheiro do Campeonato Inglês e da Champions League.

Alf Ingve Bernsten continuará dizendo que "já viu tudo 10 anos atrás". O resto do mundo, que não teve a mesma chance, aproveita para ver Haaland agora.

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