Capitão da censura

A história do zagueiro que quase levantou a taça da Copa do Mundo de 50 e virou, anos depois, chefe da censura

Marcello de Vico Colaboração para o UOL, em Santos (SP) Arquivo Nacional, BR RJANRIO PH.0.FOT.1682(5)

Talvez a melhor parte de ser o capitão de um time não esteja no jogo em si, mas depois dele: a hora de levantar a taça. Todo trabalho e suor de um campeonato inteiro imortalizados num gesto. Até hoje, cinco capitães brasileiros tiveram esse prazer: Bellini, Mauro, Carlos Alberto, Dunga e Cafu.

A tragédia que abalou o país há mais de 70 anos impediu que essa lista começasse com outro nome: Augusto da Costa, o homem que esteve a 11 minutos de ser o primeiro brasileiro a erguer uma taça de Copa do Mundo, em 1950.

Ele pendurou as chuteiras três anos depois do Maracanazo. Assim, pôde se dedicar à carreira na Polícia. Chegou longe na profissão. Longe demais para alguns, especialmente artistas. Augusto da Costa foi Chefe da Secretaria de Censura e usou a caneta contra obras históricas da música e do cinema brasileiro.

Arquivo Nacional, BR RJANRIO PH.0.FOT.1682(5)
Centro de Memória do Club de Regatas Vasco da Gama

Quem foi Augusto da Costa?

"Jogador vigoroso e líder nato em campo" segundo descrições da época, Augusto da Costa foi um xerifão de respeito dentro das quatro linhas. Nascido em 22 de outubro de 1920, no Rio de Janeiro, o zagueiro e lateral-direito iniciou a carreira no São Cristóvão, pelo qual conquistou o Torneio Municipal de 1943, que precedeu o Carioca.

Convocado para a seleção carioca, Augusto chamou a atenção do Vasco e acertou sua transferência em 1945, quando começou a escrever uma bonita história no Cruzmaltino. Foi capitão da equipe por seis anos, "talvez os melhores do Vasco em todos os tempos" segundo Alexandre Mesquita, pesquisador do Grupo PesquisaVasco.

Augusto fez parte do Expresso da Vitória, que conquistou 5 Cariocas (45, 47, 49, 50 e 52), além do Sul-americano de clubes em 48. Foram 311 jogos pela equipe principal, sem expulsões.

Pela seleção brasileira, ganhou a Copa Roca (1945), a Copa Rio Branco (1947 e 1950) e a Copa América de 1949, além de ter entrado para a história com o inesquecível vice na Copa de 1950, no Brasil. Com a camisa brasileira, disputou 20 jogos, com 14 vitórias, três empates e três derrotas. Marcou um gol.

Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images
Seleção brasileira que venceu o México na Copa do Mundo de 1950, no Brasil, com (da esquerda para direita, em pé) Ely, Santos, Augusto, Danilo, Barbosa, Bigode e Johnson, massagista; (embaixo) Mário Américo, Maneca, Ademir, Baltazar, Jair Rosa Pinto e Friaça

O homem que deveria ter levantado a taça de 50

Como descrito no livro Dossiê 50, de Geneton Moraes Neto, Augusto era o homem que deveria ter inaugurado, em 1950, o gesto que ficaria famoso, anos depois, nas mãos de Bellini, Mauro, Carlos Alberto, Dunga e Cafu: erguer a taça sobre a cabeça.

Na obra em questão, o escritor reuniu entrevistas com os 11 brasileiros que entraram no campo do Maracanã diante de 200 mil pessoas na fatídica derrota por 2 a 1 para o Uruguai, em 16 de julho de 1950.

"A cena já estava toda pronta na minha imaginação. O jogo terminava. O Brasil, absoluto, ganhava fácil do Uruguai. A gente se perfilava no gramado, em frente à tribuna de honra do Maracanã. Depois de cantar o Hino Nacional, eu pegaria a taça das mãos de Jules Rimet. Todo feliz, ergueria a taça lá para o alto. Mas tudo é sonho", lamentou Augusto a Geneton.

Ex-presidente da Fifa, Jules Rimet organizou a primeira Copa do Mundo de futebol da história, em 1930. Em forma de homenagem, o troféu recebeu seu nome, Taça Jules Rimet, em 1946.

O zagueiro já servia à polícia na época e trabalhou no dia seguinte. "Um dia depois, voltei a trabalhar normalmente, porque, desde 1941, eu era também funcionário público. Sempre joguei futebol e trabalhei. Fui, então, à minha repartição. Eu era da Polícia Especial. Tive de aturar os meus colegas de polícia me gozando".

A derrota de 50 teve a dimensão de uma tragédia nacional porque o futebol mexe com todos os brasileiros. Cinquenta foi também uma grande tragédia, porque o Brasil tinha esperado um bocado por aquela Copa. A última Copa do Mundo tinha sido disputada em 1938. Com a inauguração do Maracanã, 200 mil pessoas encheram o estádio certas de que o Brasil iria vencer. Como nós, jogadores, também tínhamos certeza da vitória, deu-se essa tragédia."

Augusto da Costa

Várias vezes sonhei com aquele jogo com o Uruguai. O placar era sempre diferente no sonho. A gente ganhava, eu levantava a taça. Quantas vezes eu sonhei... Se fosse possível esquecer o que aconteceu naquele dia, seria bom. Mas não se esquece. Não pude esquecer. Eu, capitão do time, naquela idade [29 anos], estava diante de minha última chance de conquistar o título de campeão do mundo. Eu sabia que não teria outra chance depois."

Augusto da Costa

Xerifão, também, fora de campo

Quando Augusto ainda jogava, era comum acumular funções. Quem jogava futebol sempre tinha outra atividade fora de campo. No caso dele, servia à Polícia Especial desde a época do São Cristóvão. Mas foi depois de se aposentar, em 1953, pelo Vasco, que ele assumiu um cargo que mudaria para sempre a sua imagem.

Ele não seria mais "apenas" o zagueiro. Augusto, aposentado do futebol, se tornou censor federal.

O "xerife da censura" começou a "canetar" ainda antes da ditadura militar, regime de caráter autoritário instaurado no país entre 1964 e 1985.

"Sempre luto o máximo que posso. É o que fiz no meu emprego de funcionário público: entrei como polícia especial, cheguei a censor federal quando me aposentei. A gente também nunca deve pensar que uma coisa é fácil", contou Augusto no livro Dossiê 50.

A censura começa a se consolidar na década de 40, com Getúlio [Vargas, ex-presidente do Brasil]. Todo mundo acha que o período da censura foi maior nas duas ditaduras: do Getúlio, no Estado Novo [1937-1945], e na Ditadura Militar. Mas nesse período de entressafra, censurou-se muito."

Walter de Sousa Junior, professor e pesquisador colaborador do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da ECA/USP

Lobo Bobo - Comer ou jantar?

Quem abre a nossa lida de obras censuradas por Augusto é Lobo Bobo, um dos clássicos da bossa nova, composto por Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. Uma história contada por Ronaldo, jornalista e um dos principais letristas do estilo, aponta o censor Augusto como responsável por alterar um trecho da canção — na verdade, uma palavra. Filho de Ronaldo e Elis Regina, o produtor musical João Marcelo Bôscoli revela no vídeo acima a divertida e curiosa versão contada por seu pai — que morreu em 1994.

Também entrevistado pelo UOL, o escritor Ruy Castro, amigo de Ronaldo, é outro que confirma a história. "O próprio Ronaldo quem me contou. Trabalhei com ele na TV Globo durante quase dois anos, via-o todos os dias, almoçava com ele... Não havia motivo pra ele mentir", diz o jornalista responsável por livros clássicos sobre a bossa nova como "Chega de Saudade".

Arquivo Nacional, BR DFANBSB.NS.CPR.MUI.LMU.32387 Arquivo Nacional, BR DFANBSB.NS.CPR.MUI.LMU.32387
Felipe Varanda/Folhapress

Como Carlos Lyra driblou o ex-zagueiro

Carlos Lyra disse à reportagem não lembrar da história de Lobo Bobo, mas tinha fresco na memória um episódio em que Augusto tentou mudar a letra de uma composição sua com Gianfrancesco Guarnieri: "Feio não é bonito", lançada em 1964, justamente o ano do golpe que deu início à Ditadura Militar no Brasil.

Foi também o ano que marcou o primeiro auto exílio de Carlos Lyra, que ficou fora do Brasil entre 64 e 71. Ele repetiu o autoexílio em 74, quando seguiu para Los Angeles.

Essa era a comédia da censura brasileira".

À reportagem, Lyra lembrou com detalhes o diálogo que teve com Augusto:

Augusto: "Assim não pode. Estão botando peito com os homens dizendo que o povo é valente e nunca se deixa quebrar."

Carlos: "Então, se eu mudar pro contrário, ficaria bom?"

Augusto: "Aí fica!"

Carlos: "Então escreve aí: 'porque é covarde e sempre se deixa quebrar!'"

Augusto (que deu um pulo): "Aí não!!! Aí fica ruim. O povo não é covarde."

Carlos: "Ah, então como eu havia falado estava certo."

Augusto: "Estava bem melhor, sim senhor."

Carlos: "Vamos deixar como estava?"

Augusto: "Vamos sim!"

Adriano Vizoni/Folhapress

Porra, Augusto, você perde a Copa e ainda vem me aporrinhar..."

Chico Buarque, durante um show de Maria Bethânia, sobre a censura à música "Tanto Mar", uma homenagem à Revolução dos Cravos em Portugal, vetada pelo ex-zagueiro. A música seria liberada anos depois, mas o artista refez a letra em função dos rumos tomados pela revolução portuguesa. O episódio foi contado nas biografias "Tantas Palavras", de Humberto Werneck, e "Tempestade de Ritmos", de Ruy Castro.

Divulgação
Cena de Os Cafajestes, com Jece Valadão e Norma Bengell, que foi censurado por Augusto da Costa

O primeiro nu frontal do cinema brasileiro (e Zé do Caixão)

As canetadas de Augusto não se limitaram à música. O cinema também sofreu com o ex-zagueiro. Ele foi o responsável pela censura ao filme "Os Cafajestes", de 1962, escrito e dirigido por Ruy Guerra e estrelado por Jece Valadão, Daniel Filho e Norma Bengell, que protagonizou o primeiro nu frontal do cinema brasileiro.

A sequência em que a personagem Leda anda nua pela praia causou problemas com a censura e o filme foi proibido em todo o território nacional.

"Ele que censurou 'Os Cafajestes'. Quando foi lançado, foi proibido", diz Ruy Castro.

Reprodução Reprodução

Outro filme que passou por Augusto foi "Esta noite encarnarei no teu cadáver", de 1967, protagonizado e dirigido por José Mojica Marins —que encarna o famoso personagem Zé do Caixão. A obra teve cenas cortadas ("corte da cena do sangue espirrando quando a cabeça do homem é amassada por uma pedra", como diz o documento da imagem acima) e o desfecho totalmente alterado, como explica o jornalista e roteirista André Barcinski, autor de "Zé do Caixão: Maldito - A Biografia".

"O filme foi submetido à censura e inteiramente retalhado, com várias cenas cortadas. Nesse processo, um dos chefes da Secretaria da Censura, Augusto da Costa, foi procurado pelo produtor do Mojica e disse que não liberaria o filme enquanto não fosse mudado pra algo 'mais positivo'", diz.

O próprio Augusto sugeriu dublar a cena final trocando 'eu não creio', do Zé do Caixão, por alguma declaração de arrependimento e de fé no Senhor. O Augusto de Cervantes concordou, era isso ou o filme não seria exibido. E, além de exigir que o filme fosse redublado, o censor escreveu o texto que deveria ser dito pelo Zé do Caixão no fim do filme. Além disso, o Augusto da Costa obrigou o Mojica a botar uma frase no final do filme: 'o homem só encontrará a verdade quando ele realmente quiser a verdade'."

André Barcinski, autor de "Zé do Caixão: Maldito - A Biografia"

"Uma pessoa boníssima e um grande pai de família"

Augusto da Costa morreu em fevereiro de 2004, aos 83 anos, vítima de uma infecção generalizada. Ele se casou duas vezes e deixou dois filhos, Augusto da Costa Filho e Maria da Glória, não localizados pela reportagem até o fechamento dessa matéria.

Apesar do passado ligado à censura, fontes ouvidas pelo UOL Esporte dão conta que Augusto da Costa, ou Seu Augusto, como era mais conhecido na Polícia, tratava-se de 'uma pessoa boníssima, grande pai de família e esposo exemplar', deixando assim a alcunha de xerifão exclusivamente para o trabalho, seja dentro de campo ou à serviço do Governo.

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