Bilhete para o futuro

Como carta da mãe empregada doméstica virou combustível para Maressa no futebol

Paulo Favero e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Cristiane Mattos/Staff Images Woman/CBF

O bilhetinho escrito à mão, que repousava sobre a mesa na madrugada, ganhou lugar cativo na carteira de Maressa, capitã do São Paulo. "Maressa, lute, faça gol. Estamos torcendo por você. Beijos, te amo. Mamãe". Os dizeres da mãe, que saía antes de o sol nascer para trabalhar como empregada doméstica, estão opacos pelo tempo. O papel, rasgado de um caderno qualquer, começou a desfigurar. Mas ele segue lá: nem tão firme, mas com a mensagem ainda forte.

Maressa é uma meia fugaz. Deixou o Palmeiras para se firmar no São Paulo, time que deslanchou em 2023 e tem conquistado resultados importantes nas competições. Marcou contra o ex-time Palmeiras no último domingo (18), do qual se despediu em 2020 e cuja torcida ainda a quer de volta. Seu olhar atento, que a fez ganhar a braçadeira de capitã do elenco de Thiago Viana, também percebeu que o bilhete se desfalecia aos poucos. Decidiu, então, rabiscá-lo na pele para sempre.

A tatuagem, fidedigna até à estética do bilhete, teve a perna de Maressa como tela. Sob uniformes de jogo, não se esconde, fazendo-a relembrar da mensagem. Ao UOL, ela fala com exclusividade sobre os percalços do começo, sobre as raivosas vizinhas que detestavam quando sua bola batia em seus portões. Relembra como conciliava escola e futebol e chora ao citar as pelejas dos pais até que ela se profissionalizasse.

A entrevista é a primeira de uma série de cinco episódios que contam a história de personagens do futebol feminino às vésperas da Copa do Mundo. Todas as quintas, essas histórias serão publicadas no UOL, e os vídeos, exibidos no programa Joga Junto, no mesmo dia, às 15h.

Cristiane Mattos/Staff Images Woman/CBF

A carta que move Maressa

Jogadora do São Paulo tem bilhete da mãe tatuado na perna

Bilhetinho azul

As condições financeiras na casa de Maressa, durante a infância, eram ruins. Os pais trabalhavam incessantemente para evitar que faltasse comida. Nunca faltou, mas a muito custo. A mãe, empregada doméstica, cuidava de duas crianças além de seus três filhos. Ela deixava a casa em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, antes do dia amanhecer, às 5h da manhã, e só voltava tarde da noite.

Nem sempre ela pegava a filha acordada. Quando não conseguia se despedir, deixava bilhetes como o tatuado na coxa da filha. O pai conciliava seu trabalho com a rotina das três crianças. Maressa estudava pela manhã. Depois de fazer sua primeira peneira, aos 12 anos, e se tornar atleta do São Bernardo, as tardes eram preenchidas com treinos numa rotina quase extenuante.

O pai, ela conta, a encontrava ao fim das aulas com uma marmitinha especial que, muitas vezes, Maressa devorava no ponto de ônibus a caminho do treino. Em 2012, ela se tornou atleta do Centro Olímpico, e conciliar escola com os treinos foi ficando pesado.

Eu chegava em casa muito tarde, dizia para a minha mãe que estava muito cansada e que não ia conseguir continuar. Ela insistia que eu não desistisse. Dizia que era meu sonho e que eu precisava seguir em frente, que estariam comigo. Deu certo."

Arte UOL Arte UOL

Tudo começa na base

Maressa deixou o Centro Olímpico em 2016. Passou pelo Foz Cataratas, pelo Avaí Kindermann e pela Ponte Preta até ser contratada pelo Palmeiras, na temporada de 2019. Se destacou com a camisa alviverde e recebeu proposta do São Paulo em 2021. Da torcida palmeirense, ela afirma receber até hoje mensagens saudosistas.

Ao chegar na escola, Maressa contava os minutos para voltar para casa e jogar bola na rua. O futebol era diário ? os pais não brecavam, sempre permitiam que ela passasse a tarde jogando.

Quem não gostava eram as vizinhas chatas, que se incomodavam com a bola batendo no portão. Não sofri qualquer impeditivo por parte da minha família, mesmo antes de imaginar que o futebol se tornaria minha profissão. Meus pais me blindaram de todos os preconceitos."

Rubens Chiri/Perspectiva Rubens Chiri/Perspectiva

Mudanças no futebol feminino

Aos 25 anos, Maressa vê mudanças significativas no futebol feminino desde que começou a jogar. A jogadora, que atualmente é patrocinada pela Adidas, ainda pegou uma fase sem qualquer apoio, em que os clubes sequer pagavam a condução para as atletas. "A gente jogava por amor, não tinha salário nem qualquer contribuição", conta.

A gente treinava em campo de terra, não tinha uniforme. Precisava usar o uniforme do time masculino, as roupas ficavam enormes. As competições eram desorganizadas, com muitas goleadas pelo fato de os campeonatos não serem tão equilibrados. Os clubes mal investiam. Me lembro de quando jogava na Ponte Preta: saía de casa às 4h da manhã para jogar em São José do Rio Preto à noite. No mesmo dia, a gente chegava, comia (cada um levava sua marmita e comia dentro do ônibus), jogava e ia embora. Era realmente muito cansativo."

Dois anos depois de passar na primeira peneira, Maressa competiu pela primeira vez já no elenco profissional. Ela tinha 14 anos. A participação chamou a atenção do Centro Olímpico, para onde foi e fez toda sua categoria de base.

"No começo, eu só queria brincar. Quando as coisas foram ficando mais sérias, mais profissionais, tive o estalo de que era o que eu queria fazer. Sabia que seria muito difícil, mas tinha muito claramente na cabeça que daria tudo para ser uma grande jogadora."

Gabriela Montesanto/São Paulo

O São Paulo

A braçadeira de capitã a agarrou no São Paulo pelo que ela considera um "espírito de liderança". "Acho que consigo contagiar todo mundo com minha vontade e vibração dentro de campo. Sinto que, neste ano, a equipe do São Paulo está sendo bem vista. A faixa de capitã também roda bastante entre as meninas. Ter um elenco cheio de líderes é importante".

Maressa teve um bom exemplo de liderança muito perto: dividiu posição com Formiga, que, segundo ela, fez da convivência uma aula viva. A meia precisou abrir mão da camisa 8, que usava antes de Formiga ser contratada pelo São Paulo, e ela o fez com apreço.

"Na primeira vez que Formiga veio ao Morumbi, fiquei super nervosa. Pedi para tirar uma foto com ela, eu tremendo, e ela daquele jeitinho. Baixinha, mas forte. Nossa parceria foi se desenvolvendo de forma natural. Dividimos a mesma posição, e ela me ensinou muito: recebi muitos toques e feedbacks dela, tivemos uma troca imensa e me sinto lisonjeada por esse encontro", diz.

Formiga me ensinou a ter perseverança, a ser incisiva e a não ter medo. Ela me dizia que as dificuldades viriam, mas dar a cara a tapa era uma obrigação. Me ensinou a enfrentar as oportunidades de cabeça erguida, com raça, dando meu melhor dentro de campo"

Maressa, capitã do São Paulo

Rebeca Reis / Staff Images Woman / CBF Rebeca Reis / Staff Images Woman / CBF

Sonho da seleção

A um mês da Copa do Mundo, Maressa não acredita em uma convocação, mas sonha em vestir a camisa da seleção brasileira numa próxima oportunidade. Acredita, ainda assim, que o desempenho do elenco de Pia Sundhage vai surpreender no Mundial.

"O mercado está cada vez mais agitado e voltado para o futebol feminino, isso é bom. Os salários têm melhorado, assim como as premiações. A valorização está acontecendo a cada ano, e a gente vê isso dentro de campo, com campeonatos equilibrados. O futebol feminino tem um futuro pela frente".

Meu sonho é jogar na seleção. Creio que não vai ser agora, mas ainda sou nova, tenho muito o que viver."

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