Os blindados da Copa

Veículos blindados comprados para controle de manifestações custaram R$ 15 milhões e podem virar sucata

Hygino Vasconcellos Colaboração para o UOL, em Porto Alegre (RS) Alberto Maraux/SSP Bahia

Uma herança da Copa do Mundo de 2014 corre o risco de virar sucata. Chamados de caminhões antidistúrbios, 12 veículos blindados foram comprados pelo governo federal em 2014 e distribuídos às cidades-sede do evento para serem utilizados na contenção de protestos. Os veículos, que contam com jato d'água para dispersar multidões, sistema de câmeras para monitorar os arredores e capacidade para abrigar mais de dez policiais, custariam R$ 20,2 milhões, no total, aos cofres públicos. O Governo Federal, porém, pagou apenas R$ 15 milhões, por uma série de contratempos na entrega.

A questão é que esses não foram os únicos problemas apresentados pelos veículos. Passados seis anos, a reportagem conseguiu a confirmação de que apenas a metade deles segue em operação — nas fotos abaixo, o veículo locado em Porto Alegre aparece em operações em um clássico Grenal e no julgamento do ex-presidente Lula, em 2018. Quatro blindados, aqueles doados para Amazonas, Bahia, Mato Grosso e Rio Grande do Norte, estão inoperantes. Os motivos para isso são parecidos: defeitos nos principais sistemas.

Panes elétricas, ar-condicionado quebrado, portas emperradas e até a dúvida se o veículo é, de fato, blindado. No Amazonas, o veículo está parado há mais de três anos por falhas nos sistemas de monitoramento de câmera e do canhão de água, por exemplo. O blindado do Ceará chegou a pegar fogo durante uma manifestação e o sistema das portas travou — PMs escaparam por uma escotilha, mas três pessoas ficaram feridas.

O estado de São Paulo chegou a receber o blindado, mas devolveu a encomenda após a identificação de problemas. O veículo voltou para Brasília e foi incorporado à frota da Força Nacional — até o ano passado, estava inoperante, mas no começo deste ano passou a funcionar, segundo o órgão. Além da Força Nacional, seis estados informaram que desembolsaram mais de R$ 500 mil para a manutenção do veículo. O Ceará foi o que mais gastou: foram mais de R$ 160 mil para manter o blindado em operação.

Os dados foram obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), inicialmente com o governo federal e depois com os estados — em uma apuração do UOL que levou mais de um ano. Em alguns casos, foi necessário acionar o Ministério Público e o Tribunal de Contas Estaduais (TCE) para obter as respostas finais, que chegaram em junho. O resultado disso é a reportagem que você está lendo.

Alberto Maraux/SSP Bahia

A origem dos veículos

Os blindados foram fabricados pela Steel Truck, empresa com sede em São Paulo, e comprados por um pregão eletrônico —uma modalidade de licitação utilizada para contratação de bens e serviços regulamentada pelo governo federal em 2005. Nessa licitação, consta como "contato no órgão" o delegado federal Andrei Augusto Passos Rodrigues, que na época era o titular da Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (Sesge), ligada ao Ministério da Justiça.

Era essa a secretaria responsável pelo planejamento e pela coordenação da segurança da Copa do Mundo de 2014. Ao UOL, o delegado observou que a aquisição dos blindados não ocorreu de maneira emergencial e seguiu todos os trâmites licitatórios, incluindo um depósito na Caixa Econômica Federal (CEF) de garantia — de valor não revelado — pela Steel Truck como compromisso para a entrega dos veículos.

"Houve problema de atrasos na entrega (dos blindados) e problemas mecânicos nos veículos. E, por isso, a empresa foi multada", explicou Passos Rodrigues. O delegado observou que não havia a possibilidade de outra empresa assumir o contrato e, por isso, houve a rescisão após autuação da Steel Truck.

Segundo o Ministério da Justiça, responsável pelos assuntos ligados à Sesge, esses problemas nos veículos fizeram com que o valor total estabelecido em contrato não fosse pago. Dos R$ 20.213.892,00 previstos inicialmente, R$ 15 milhões foram efetivamente desembolsados. A diferença se deve a descumprimentos contratuais, como atraso na entrega, demora na apresentação da garantia de execução e ausência de manutenção corretiva dos veículos de quatro cidades-sede — Brasília/DF, Belo Horizonte/MG, Recife/PE e Natal/RN.

O ministério disse, ainda, que a empresa foi multada em R$ 5 milhões na "forma de bloqueio dos pagamentos e assunção da garantia contratual prestada no valor de 5% do contrato", segundo nota. De acordo com o delegado, a Steel Truck tenta, ainda hoje, reverter judicialmente o bloqueio dos valores e a aplicação da multa contratual em um processo que corre no TRF-1 (Tribunal Regional Federal 1).

A última decisão foi de maio de 2017. Na sentença, o juiz federal Itagiba Catta Preta Neto salientou que os documentos anexados ao processo permitem "constatar as irregularidades apuradas no curso da execução do contrato" e que a empresa não trouxe "quaisquer provas que refutassem os atos praticados pela Administração Pública".

Após a publicação da matéria, o advogado da Steel Truck, Marcel Augusto dos Santos, entrou em contato com a reportagem e observou que o contrato inicial não previa a manutenção dos veículos após o período de garantia. O serviço deveria ser feito pelos estados, mas, segundo ele, muitos governadores não tinham verba destinada para a conservação dos blindados ou os utilizavam de maneira inadequada.

"Um caminhão que fica dois, três anos parados, obviamente vai dar problema. Qualquer carro zero que deixar parado vai dar problema. As revisões não foram feitas pelos Estados e muitos não tinham onde guardar", salientou o advogado, que encaminhou uma nota oficial da empresa que pode ser lida mais abaixo.

Ao longo dessa matéria, você verá imagens de um relatório da PM do Mato Grosso sobre o veículo que estava em sua posse. O relatório mostra problemas similares aos apontados pelas polícias de outros estados.

Brigada Militar/Divulgação Brigada Militar/Divulgação

MT: Blindado pode causar "risco à saúde" dos ocupantes, diz PM

Em Mato Grosso, o veículo está inoperante devido a "inúmeras avarias e elevado custo de manutenção" e porque o uso nas ruas poderia causar "risco à saúde e integridade física dos ocupantes, além de comprometer o resultado das ações". Essas observações são do comandante-geral da Polícia Militar, coronel Delwison Sebastião Maia da Cruz, em ofício de 28 de fevereiro deste ano encaminhado à reportagem pelo portal da transparência estadual.

O UOL teve acesso a um relatório de avarias de 12 páginas elaborado pela PM do Mato Grosso que aponta como "inviável o uso do blindado". Os defeitos passaram a surgir logo após a entrega do veículo e, mesmo com os ajustes durante o período de garantia, os problemas "nunca foram sanados, ficando o caminhão-choque inoperante para o serviço que se propõe (controle de distúrbio civil)".

O canhão d'água, um dos diferenciais do veículo, não funciona e apresenta inúmeros vazamentos. No sistema de câmeras, o joystick — que permite direcionar o aparelho — está inoperante e uma das câmeras apresenta vibração excessiva "impedindo totalmente a visualização das imagens", conforme o relatório. Os PMs reclamam que não foram entregues à corporação manuais e mídias de instalação dos sistemas embarcados.

O veículo deveria ser blindado, porém, segundo o relatório da PM, "não há qualquer comprovação" da colocação da proteção extra. "Para o assoalho, a previsão é de resistência contra granadas, minas, explosivos improvisados e artefatos de artilharia", mas não há documento que ateste isso. Segundo a PM, a viatura deveria oferecer proteção a tiros de pistola 7.62. "A ausência de comprovação da capacidade de proteção balística pode ser entendida como defeito crítico", observa o relatório.

Além disso, o blindado está com o sistema de ar-condicionado inoperante e o tanque de combustível também não apresenta proteção adequada para "artefatos explosivos, incendiários ou objetos pontiagudos que possam ser utilizados como barricada". A corporação chegou a solicitar orçamento para o conserto das avarias, o que sairia por pouco mais de R$ 60 mil.

RN: "Parece que entrou em curto-circuito", diz comandante da PM

No Rio Grande do Norte, um problema elétrico não permite que sejam ligadas a mesa de comandos que direciona o canhão d'água ou as câmeras. Também não é possível dar ignição no caminhão. O ar-condicionado tampouco funciona. Segundo o coronel Alarico José Pessoa Azevedo Júnior, o comandante da Polícia Militar, duas baterias já foram trocadas, mas descarregaram sem conseguir ligar o veículo.

"A gente não consegue identificar e corrigir esse problema. Quando a gente trocou as baterias, o veículo parece que entrou em curto-circuito. Agora, estamos procurando empresa para fazer esse serviço", salienta o oficial, que assumiu o comando da PM no início de 2019 e já encontrou o veículo fora de operação.

Foram identificados ainda problemas mecânicos nos feixes de molas, responsáveis por absorver os impactos causados pelas irregularidades do piso e suportar o peso do caminhão. A PM do Rio Grande do Norte observou ainda que as portas do blindado só funcionam manualmente, já que o sistema de pressurização está danificado.

Painel de controle do sistema de monitoramento dos caminhões não funciona

Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck

AM: Blindado é "recuperável", mas está fora de operação há três anos

No Amazonas, o governo não informou inicialmente a situação atual e o gasto para manutenção do blindado, apesar de três pedidos feitos no portal da transparência estadual. Só após a reportagem acionar o Ministério Público do Amazonas, se conseguiu descobrir a situação do blindado: inoperante.

Em 30 de março deste ano, o secretário executivo de Segurança Pública, coronel Anézio Brito de Paiva, classificou o veículo como "recuperável", porém, "providências essas que, no momento, estão sustadas em virtude da atual pandemia que assola todos os continentes", observou o oficial, no documento incluído no processo do MP. Em 28 de abril deste ano, o promotor de justiça Antonio José Mancilha cobrou o governo estadual dos gastos para manutenção do blindado e ainda sobre motivos para os três pedidos da reportagem não terem sido atendidos. Até agora não houve resposta do governo.

Procurada pelo UOL, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) informou que o blindado está inoperante há mais de três anos devido a problemas técnicos. "Até 2016, o veículo teve garantia do fabricante. Depois desse período, o equipamento passou a registrar falhas no sistema de monitoramento de câmera, canhão de água, entre outros, não tendo registro de realização de serviços pelo governo da época. Atualmente, o veículo é utilizado pelo batalhão de choque para instruções e exposições", observou o órgão.

Canhão de água: relatório fala em vazamentos no sistema

Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck

BA: Caminhão foi entregue com problemas e com contrato de manutenção expirado

Na Bahia, o governo aguarda liberação de recursos para o conserto. Em 2019, o Comando de Policiamento Especializado (CPE) informou que a regularização da transferência do blindado para o governo estadual só havia ocorrido no ano anterior. Não foi informado se o veículo passou por manutenção e, caso tenha ocorrido, quanto foi gasto. Em janeiro deste ano, a reportagem repetiu o pedido, mas a solicitação não foi respondida.

Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública informou que o blindado já chegou à PM da Bahia com o contrato de manutenção com o fabricante expirado, além de apresentar problemas que outros estados também encontraram: defeito no jato de água e no ar-condicionado. Em nota, a SSP disse que alguns reparos foram realizados e que o veículo chegou a ser empregado em operações relacionadas a grandes eventos depois de 2014.

Sistema de ar-condicionado não funciona apesar de manutenção

Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck

SP devolveu caminhão

Logo após o recebimento do blindado, o Estado de São Paulo devolveu o veículo. A reportagem teve acesso a duas vistorias, feitas em junho de 2014, nas quais a corporação questiona a blindagem do veículo — da mesma maneira que os colegas da Polícia Militar de Mato Grosso.

No documento, a PM paulista observa que a parte inferior do caminhão deveria receber proteção antifragmentação para proteger os ocupantes e também o motor. "Ocorre que tal proteção não existe, estando o motor, o tanque de combustível, elementos de suspensão e sistema elétricos totalmente expostos tornando o veículo vulnerável a ataques dos mais rudimentares agentes inflamáveis ou explosivos".

Com a devolução, o veículo foi levado para Brasília e incorporado à Força Nacional. No ano passado, o órgão informou que o veículo estava inoperante. Entretanto, no começo deste ano, a Força Nacional disse que o blindado estava operante, sem dar detalhes.

Sistema pneumático de abertura das portas, que não funciona

Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck

Único a não informar situação de blindado, Goiás gastou R$ 30 mil em manutenção

O governo de Goiás foi o único estado que não esclareceu sobre a situação do blindado. A informação foi classificada como sigilosa, de caráter reservado. Ou seja, sem possibilidade de acesso aos dados por cinco anos. Após explicações da reportagem, o governo respondeu apenas parte da solicitação, sobre as despesas de manutenção: ao todo, foram desembolsados R$ 31.680,00 para o serviço no período de 2018 a 2019.

Sobre o sigilo, o governo não forneceu o Termo de Classificação de Informação (TCI), o que é obrigatório segundo o artigo 31 do decreto federal 7.724 e pela portaria estadual 7187 de 2015. O TCI detalha o grau de sigilo, as razões à classificação e o prazo de sigilo, entre outras informações. A situação foi informada ao Ministério Público de Goiás, mas ainda não houve andamento.

Pneus baixos mostram que sistema de calibragem automático não funciona

Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck Reprodução/Relatório da PMMT sobre o caminhão Choque Steel Truck

Três estados não informaram gastos para manutenção

Além de Bahia e Amazonas, o Paraná também não informou os gastos para manutenção dos blindados. Segundo a Lei de Acesso à Informação, os registros de despesas devem ser fornecidos de maneira obrigatória, independentemente de requisição. A reportagem registrou uma denúncia no Ministério Público. Entretanto, e a promotora de justiça Rosana M. Demchuk arquivou o pedido após a Polícia Militar afirmar que não dispunha das informações e que poderiam ser obtidas com o Departamento de Gestão do Transporte Oficial (Deto).

Após 11 dias do arquivamento da denúncia, o Batalhão de Operações Especiais (BOE) informou que houve troca das empresas responsáveis pela manutenção dos veículos oficiais. "Até meados de 2017, era a JMK, a qual disponibilizava acesso a seu sistema, com os relatórios dos gastos e manutenções realizadas na frota de veículos oficiais, porém, com a desvinculação da empresa à prestação de serviços ao Estado do Paraná, o acesso ao sistema foi rompido, deixando à Policia Militar do Paraná de ter acesso a tais dados", disse a corporação no sistema de transparência.

Sobre a situação do blindado, o governo informou inicialmente, em agosto de 2019, que o veículo estava em operação. Em março deste ano, em um pedido da reportagem para atualização das informações, o governo classificou o pedido como sigiloso e, por isso, não foram "fornecidos maiores detalhes acerca da utilização, manutenção e/ou atual condição do veículo em questão".

Divulgação/BM Divulgação/BM

Nota da Steel Truck Blindados

A empresa Steel Truck Blindados, por meio de seu departamento jurídico, repudia veementemente as infundadas ilações feitas na referida matéria jornalística, tendo em vista sempre ter cumprido à rigor todas suas obrigações contratuais no âmbito de suas atividades empresariais e na fabricação dos veículos blindados em questão.

Esclarecemos, ainda, que sempre observamos com rigor todos os prazos para entrega dos veículos contratados, bem como os parâmetros técnicos que foram devidamente analisados e aprovados pelos contratantes por meio do Centro de Avaliações do Exército.

Importante esclarecer que os problemas enfrentados com os veículos pelos Estados se deram pela falta da devida manutenção preventiva e o uso inadequado dos equipamentos em total desacordo aos treinamentos e orientações fornecidos pela fabricante aos usuários.

Destacamos, ainda, que o contrato licitatório para fabricação dos veículos não contempla as necessárias manutenções preventivas dos veículos, que devem ser realizadas por exclusiva responsabilidade dos Estados.

Por fim, destacamos que esta empresa possui amplo reconhecimento no mercado de blindados e que jamais houve quaisquer questionamentos nesse sentido acerca de seus produtos e serviços.

No mais, seguimos a disposição para eventuais esclarecimentos.

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