Sensação da América

Por que Boca e River são maiores na América do que os times brasileiros?

Jeremias Wernek Do UOL, em Porto Alegre (RS)

Não é só Buenos Aires, São Paulo, Rio, Montevidéu ou Santiago. Mas também Maracaibo, Cusco, Luque, Canelones, San Andrés, Sucre, Quito e Valparaíso. Todas cidades sul-americanas carregam o futebol consigo, em um continente fanático em que às vezes os times são quase como cartões portais da cidade.

A sensação comum no meio dessa gente de nacionalidades diferentes é de que os clubes argentinos são mais influentes do que os times brasileiros. Boca Juniors e River Plate rivalizam a preferência dos irmãos latinos agora, mas ali atrás já houve fascinação por Estudiantes, Independiente e também os uruguaios.

Corinthians e Flamengo, nossos clubes mais populares, por exemplo, parecem ao largo dessa disputa por milhões de corações, assim como os outros gigantes daqui. Mais títulos internacionais, a língua, espanhol contra português... o que explica a relevância de Boca e River no continente?

O UOL Esporte vasculhou os porões do inconsciente coletivo na América do Sul para entender como e o motivo de os clubes da Argentina mexem mais com os irmãos do que os nossos.

Sem dúvida, de bate-pronto

Quem jogou futebol nos mais diferentes rincões do continente não deixa margem para dúvida. Entre os ex-jogadores sul-americanos questionados pelo UOL Esporte, a opinião é uníssona. Os times argentinos são mais populares e influenciadores que os brasileiros.

Aqui na Colômbia, um Boca Juniors contra River Plate faz todo mundo parar

Freddy Rincón

Freddy Rincón, ex-Palmeiras, Corinthians, Cruzeiro e Santos

Tirando os clássicos do Equador, o mais conhecido aqui é River e Boca com certeza

Alex Aguinaga

Alex Aguinaga, ex-meia da seleção equatoriana

O torcedor aqui no Uruguai consome muito futebol argentino, então é Boca e River mesmo

Jorge Fossati

Jorge Fossati, ex-goleiro do Avaí e treinador do Internacional

Divulgação/Peñarol Divulgação/Peñarol

Economia argentina tirou posto do Uruguai

Nos primórdios da Libertadores, o futebol sul-americano era dominado pelos uruguaios. Porém o jogo começou a mudar a partir da década de 1940. E a tendência passa pela economia. Foi neste momento que a Argentina passou a exportar carne e desenvolver exportação de petróleo e trigo. Foram trinta anos até o Uruguai assistir a balança envergar.

"O Uruguai sofreu por não ter outras matérias-primas ou serviços para exportar no pós-guerra. A Argentina ganhou fôlego na economia pelo petróleo, além do trigo e da carne. Isso manteve o país em crescimento ao longo do século 20, e a reboque vieram os clubes e a produção cultural, que difundiu hábitos e costumes, como o futebol", conta Rodrigo Stumpf, cientista político da UFRGS e especialista em América do Sul.

O comentarista da FOX Sports Eugenio Leal também vê neste crescimento econômico o início da hegemonia boleira na região. "A Argentina foi o país que mais se desenvolveu e passou a ser uma referência no continente. E esses dois clubes [Boca Juniors e River Plate] se tornaram referência."

Divulgação Divulgação

Brasil de costas para os irmãos

A colonização portuguesa sempre diferenciou o Brasil em relação à América hispânica, mas o isolamento vai além do idioma. Politicamente o cenário é, historicamente, pior. A criação do Mercosul, em 1991, ainda não foi capaz de reverter décadas de políticas desfavoráveis ao intercâmbio entre os países.

"O Brasil é um país separado, digamos assim, do resto da América do Sul. Tem a colonização portuguesa e o histórico de libertação. Entre eles houve mais comunhão de ideias e pessoas, enquanto o Brasil sempre foi um blocão", afirma Eugênio Leal, comentarista do FOX Sports.

Colega de Leal e blogueiro do UOL Esporte, PVC provoca: "E a gente tem um país que fica de costas para a América Latina. A gente olha para a Europa todo dia, mas ignora o continente. Alguém aqui está preocupado com o que vai acontecer no Campeonato Peruano? Não, claro que não."

A briga entre uruguaios e argentinos pela nacionalidade de Carlos Gardel enche o imaginário popular com uma pitada de rivalidade. Mas é o maior exemplo de comunhão dos povos. Uma parceria que o Brasil não tem com nenhum outro país da região.

Este isolamento também é sentido culturalmente. Quantos artistas latinos chegaram a se tornar realmente populares no mercado brasileiro? Por outro lado, nossos artistas também viam o mercado fechado para suas músicas em português.

Sem relação histórica com os outros países, desde o processo de independência, até a influência cultural ficou restrita. O êxito de artistas brasileiros no continente, na maioria das vezes, precisou de um padrinho. Nomes como Mercedes Sosa, Charly García e Fito Paez fizeram parcerias com Milton Nascimento, Caetano Veloso e Paulinho Mosca ao longo das décadas.

"Todo artista brasileiro que fez ou faz sucesso na América do Sul entrou nos países vizinhos pela mão de um cantor local. A música brasileira é muito respeitada no continente, mas existe uma barreira que a cultura brasileira dificilmente rompe", lembra Stumpf.

Os últimos anos, no entanto, passaram a ver uma tendência de maior intercâmbio musical, alimentada pelo interesse comercial de ampliar o leque e atingir novos mercados em potencial. A cantora Anitta, por exemplo, desde 2017 investe pesado na disseminação de seus hits por toda a América, do Sul ao Norte. Faixas cantadas em espanhol e inglês, além das tradicionais parcerias com cantores locais.

Matthias Hangst/Getty Images Matthias Hangst/Getty Images

Seleção sim, clubes não

No mundo todo, o futebol brasileiro é sinônimo de Pelé, Garrincha, Zico e Ronaldo, Romário e Ronaldinho Gaúcho, entre outros. As imagens que pipocam quando o assunto é Brasil e futebol são de seus craques com a camisa da seleção brasileira. O sucesso do time verde e amarelo sempre contrastou com os clubes, pouco conhecidos além de quem joga a Libertadores.

O excessivo número de clubes considerados grandes no Brasil pode ser um fator que dificulte uma maior projeção de alguns deles na mente dos torcedores de fora. Na Argentina, apesar de clubes como Independiente, Racing, Estudiantes e San Lorenzo, entre outros, terem muita representatividade, Boca e River são claramente os mais presentes no inconsciente coletivo.

"Aqui sempre houve rodízio do protagonismo. Santos, depois Flamengo, São Paulo, Corinthians", aponta Eugênio Leal.

De maneira geral, os clubes brasileiros são mais conhecidos em praças sul-americanas quando algum jogador de determinado país atua nele. Como Inter, Flamengo e Corinthians terem popularidade alta no Peru por conta das passagens de Paolo Guerrero por estes times.

"No Brasil, a história é em cima da seleção. Nunca se investiu muito na divulgação de marca de clubes brasileiros. Os clubes daqui não são conhecidos internacionalmente. A seleção brasileira é, os clubes não. Essa é uma diferença fundamental", conta PVC.

Buda Mendes/LatinContent via Getty Images Buda Mendes/LatinContent via Getty Images

Quem não é visto...

O ditado popular sobre lembrança vale bem para os clubes brasileiros. O equilíbrio no cenário brasileiro fez com que poucos clubes despontassem em participações internacionais, jogando bem menos Libertadores do que Boca e River.

O Flamengo, por exemplo, disputa apenas a segunda final da história rubro-negra neste ano. O clube tem menos da metade de participações em Libertadores do que o River Plate - terceiro time que mais jogou a competição em toda a história. O Boca jogou 28 Libertadores, e o River, 35. Os brasileiros que mais jogaram foram Grêmio, Palmeiras e São Paulo, com 19.

Abaixo uma comparação dos números dos dois times de maiores torcida na Argentina e no Brasil.

Hermanos nas bancas

Fundada em 1919, a revista "El Gráfico" se tornou um vetor importantíssimo na propagação do futebol argentino e seus matizes. Item de colecionador em todo o continente, a publicação internacionalizou ídolos e popularizou histórias locais dos clubes da Argentina. Expandiu fronteiras e virou o grande norte sul-americano no esporte e com isso trouxe notoriedade aos seus clubes.

"A revista era um fenômeno, incrível mesmo. Um dirigente colombiano me recebeu e abriu armário com coleção da 'El Gráfico'. As pessoas compravam toda semana e liam sobre os clubes, os jogadores. Foi uma era de ouro e isso levou o futebol argentino ao exterior", conta Juan Pablo Mendez.

A partir da década de 1990, a TV também propagou as imagens do futebol argentino. FOX Sports, principal rede do continente, tem Buenos Aires como polo na produção da grade de programação. Os demais países da América hispânica possuem, no máximo, um estúdio local.

No Brasil, o projeto de mídia PSN ajudou a injetar os torneios sul-americanos e o Campeonato Argentino começou a se tornar mais comum no dia a dia, mas seu fôlego durou pouco.

Denis Doyle/Getty Images Denis Doyle/Getty Images

Via de mão única

O UOL Esporte mostrou que a via é de mão única. Se os argentinos aparecem com frequência no futebol brasileiro, o mesmo não ocorre do outro lado da fronteira. A falta de casos de sucesso alimenta o rótulo de investimento errado e afasta os argentinos de atletas e suas histórias. De suas origens e? de seus clubes. Sem representantes do mercado verde e amarelo no torneio américo-hispânico mais popular, uma outra barreira emerge.

"Houve um momento que a Argentina levou treinadores brasileiros para lá, logo depois da Copa de 1958. Em 1961 fizeram a campanha do futebol espetáculo. Levaram o Feola, o Boca teve nove brasileiros, mas isso está muito no passado. É natural que eles olhem mais para os argentinos", conta PVC.

Desde a década de 1990 o jogador brasileiro virou inviável economicamente para os clubes argentinos. Além disso, os que vieram não deram certo e os clubes passaram a olhar para outro lá. Na época, era comum isso. Se alguém contratava um peruano e ele ia bem, os outros faziam o mesmo. Valeu para quem deu errado também", lembra Mendez.

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Cezaro De Luca/picture alliance via Getty Images Cezaro De Luca/picture alliance via Getty Images

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