Mais do que só dinheiro

O olhar biônico que reacendeu o Botafogo e levou o time a conquistar sua primeira Libertadores

Alexandre Araújo e Igor Siqueira Do UOL, no Rio de Janeiro Buda Mendes/Getty Images

O Glorioso alcançou a Glória Eterna. Antes da Libertadores, já existia o Botafogo. Hoje, enfim, é o ponto da história em que eles se encontram de forma mais apoteótica. "Botafogo, Botafogo campeão!"

O clube que se orgulha de sua tradição, do seu DNA e do que emprestou à construção do futebol brasileiro, finalmente alcança o topo da América do Sul. E deu aula de como montar um time campeão, buscando nomes que estavam completamente fora do radar no mercado da bola.

Foi Monumental. No maior estádio do continente, em Buenos Aires, com a vitória épica por 3 a 1 sobre o Atlético-MG.

"Tem coisas que só acontecem com o Botafogo", repetiram os que provocaram ao longo dos anos. Mas neste 2024, a frase ganha outro sentido.

Ser campeão após ter um jogador expulso com menos de um minuto? Sim, Botafogo. Reestruturação financeira e esportiva de forma tão rápida no modo SAF? Só com o Botafogo. Cura das feridas psicológicas depois de um ano tão traumático no Brasileirão? Ele, o Botafogo.

"Ninguém cala esse chororô!". Sim. O choro de alegria, até de uma incredulidade misturada à euforia, ao alívio e ao êxtase de alcançar o maior título da história do clube.

Torcer pelo Botafogo ao longo de décadas foi visto como algo sem lógica. Não por acaso essa geração de torcedores alvinegros se dizem "escolhidos" por essa paixão.

Mas o que não falta é motivo que justifique a conquista deste histórico 30 de novembro, em Buenos Aires, diante do Atlético-MG. Venceu o melhor. Venceu quem investiu de forma certeira. Venceu quem teve o melhor técnico (Artur Jorge). Venceu o Botafogo.

Buda Mendes/Getty Images

É um sonho que estou vivendo. Estou muito feliz. Pude proporcionar essa vitória para minha mãe e meu irmão aqui. Agradecer muito ao Botafogo. Disse na minha primeira entrevista que o Botafogo merecia estar no topo pelo que se empenhava no dia a dia.

Luiz Henrique, atacante do Botafogo, eleito melhor jogador da Libertadores 2024

Buda Mendes/Getty Images Buda Mendes/Getty Images

Montagem do elenco tem escolhas precisas

A formação do Botafogo campeão da Libertadores é uma mescla de jogadores pinçados cuidadosamente no mercado, contratados a custo zero, e investimentos pesados da SAF de John Textor.

Entre os titulares, dois remanescentes de 2023: o capitão Marlon Freitas e Bastos, que era reserva, mas cresceu de produção e virou um dos pilares defensivos.

Nas outras nove posições, nove jogadores que chegaram em 2024.

Muito do crédito é dado ao departamento de scout, capitaneado por Alessandro Brito. Ele foi uma das primeiras contratações da gestão Textor como marco da reestruturação do departamento de futebol.

O setor conseguiu mapear Igor Jesus, centroavante que chegou sem que fosse necessário pagar pelos direitos econômicos e hoje é o titular da seleção.

E o que dizer de Alexander Barboza, Gregore, John e, mais recentemente, Alex Telles? Eles formam a espinha dorsal para o brilho dos que vieram a peso de ouro, Thiago Almada (campeão do mundo com a Argentina), que custou 20 milhões de euros (R$ 110 milhões), e Luiz Henrique, que estava no Bétis e custou 16 milhões de euros fixos (R$ 86 milhões). Não dá para esquecer Savarino nesse ataque e o lateral-direito Vitinho.

Essa combinação ganhou espaço em detrimento de gente importante em 2023, como Tiquinho, Eduardo (que se machucou em boa parte do ano), Marçal e até mesmo Adryelson, que voltou de empréstimo do Lyon no meio da temporada.

Considerando quem veio "de graça" (tem o pagamento de luvas, claro) ou mesmo os que custaram tanto, a sensação é que, com a Libertadores ganha, saíram muito baratos.

Se você olha a forma como montamos o elenco, não é só sobre os jogadores que compramos, é também sobre os atletas que nós achamos. O departamento de scout é, honestamente, o melhor que eu já vi no futebol. Júnior Santos, da segunda divisão do Japão. Igor Jesus, dos Emirados Árabes, em uma transferência gratuita? Nós temos muita sorte de termos eles. Nós já estamos planejando recarregar pesadamente para o ano que vem.

John Textor, dono da SAF do Botafogo

Buda Mendes/Getty Images

Textor 'namorou' o Londrina, mas casou com o Botafogo

Tudo o que se viu diante das câmeras em Buenos Aires está conectado a uma reunião virtual na manhã de 22 de dezembro de 2021. Foi a primeira videoconferência entre o então candidato a investidor e a diretoria do Botafogo.

Era uma SAF em modo pré-operacional. A estrutura da empresa estava pronta. Faltava o recurso para fazê-la girar. Um time de conselheiros conduzia o futebol, com Durcesio Mello na presidência e Jorge Braga como CEO. O acesso de volta à Série A já estava assegurado.

Àquela altura. Textor já tinha se interessado por investir no futebol brasileiro. Mas o Botafogo não foi a primeira opção. Ele queria um time de menor porte, imaginando que não conseguiria o aporte necessário para um clube da elite. Textor, antes, queria o Londrina.

"Eu passei um grande tempo pensando no clube e torcida quando comecei a olhar o Brasil. E fiquei extremamente impressionado com Londrina, como um clube que é bem gerido, com grande história e que poderia virar muito importante novamente com pouco investimento", admitiu o empresário, em 2022.

Mas o trabalho da XP e da Matix Capital, de Thairo Arruda, atual CEO do Botafogo, levou para o fechamento do acordo com o alvinegro, que se mostrou atrativo, com Braga, Durcesio e Cia.

O desfecho é que o Botafogo entrou para a família Eagle Football. Virou o primeiro clube de Textor a conquistar um torneio continental.

Chefe do setor estava no Galo

O homem que John Textor escolheu para liderar o departamento de scout estava onde? No Atlético-MG.

Alessandro Brito fez parte da estrutura do Galo na temporada 2021, que culminou com título brasileiro e da Copa do Brasil. Ele já tinha trabalhado com Rodrigo Caetano, então executivo de futebol atleticano, no Internacional.

Mas viu a aproximação e o projeto do Botafogo como grande oportunidade. André Mazzuco, que também já tinha trabalhado com Britto no Athletico e já tinha fechado com o Botafogo de Textor, ajudou muito no processo de convencimento.

Alessandro não se arrepende e vê que essa foi a melhor escolha da carreira.

A meta inicial era até mais cautelosa do que a realidade. O Botafogo imaginava que poderia, em 2025, estar entre os principais times da América do Sul. Mas já foi campeão e alcançou um elenco muito forte um ano antes disso.

LUIS ROBAYO/AFP LUIS ROBAYO/AFP

Como o departamento funciona

O Botafogo hoje tem três braços dentro do departamento de scout: Scout PRO, Analytics e desempenho.

Scout PRO: observação de atletas voltada para o elenco profissional. Hoje, a coordenação é de Raphael Rezende, ex-comentarista do Sportv.

Desempenho: o que tem dentro de casa, o que os atletas do Botafogo estão fazendo.

Analytics: Dados, métricas, etc. com as quais o Botafogo mede o estilo e característica de jogo que deseja para si. Exemplo: o que um lateral que joga no Botafogo tem que ter? Quais as métricas para a posição?

O próximo passo é crescer ainda mais o departamento de captação para a base.

O lado bom de fazer parte da família da Eagle Holding é ter um atalho para que os scouts de outros clubes já fizeram pelo mundo, dando mais velocidade ao acesso à informação.

Faltam palavras para falar desse momento. Desde que cheguei encontrei um grupo faminto. Depois do que aconteceu no ano passado, que eu acompanhei de longe, ninguém tocou nesse assunto até agora, porque era uma coisa que machucava o elenco, todo mundo, a torcida. E a gente sabia da responsabilidade que a gente tinha no dia a dia, a cada vez que íamos avançando de fase. Carregamos esse peso junto com a gente em campo. Estamos respondendo o nosso torcedor. Fizemos história.

Alex Telles, Lateral-esquerdo do Botafogo

Buda Mendes/Getty Images

Estilo de jogo: jogadores rápidos e inteligentes

O desenvolvimento da cara que o Botafogo passou a ter na fase SAF passa muito pelas características dos jogadores contratados. Textor bate na tecla de querer jogadores rápidos, técnicos, com bom entendimento de jogo.

Assim, é comum que o scout do Botafogo mapeie e avance no mercado quando identifica intensidade, velocidade, alta distância percorrida por jogo, questões físicas e comportamentais.

Quem joga na ponta, tem que ser bom no 1 x 1 e rápido. Luiz Henrique é o maior símbolo disso. Mas Almada, Savarino e até reservas, como Matheus Martins, combinam com isso.

Mas a proposta não e que todos os jogadores sejam iguais, rigorosamente. Até para não engessar o que o técnico pode fazer com o grupo.

Quando isso tudo puder envolver jogadores em fim de contrato ou livres no mercado, melhor ainda. E aí, o trabalho de scout mapeia nomes "fora da lógica", que por vezes estão escondidos para brilhar junto à estrela solitária.

Marcelo Endelli/Getty Images Marcelo Endelli/Getty Images

Equilíbrio e perfil de ídolo

No elenco ideal, o Botafogo entendeu que não podia só pinçar jogadores jovens, por exemplo. Se tem um Tiquinho, de 33 anos, vem também um Igor Jesus, de 23. Marçal era um mais experiente, Cuiabano mais jovem.

A posição de camisa 9, inclusive, teve uma atenção especial. Alessandro Brito conversou com profissionais mais antigos do clube, como o diretor de comunicação Julio Gracco.

Ouviu que a torcida se apaixona por camisas 9 com certa facilidade. E aí o perfil mencionado foi o de Túlio Maravilha e, depois, Loco Abreu.

Outro insight foi o de que os botafoguenses curtem goleiros de peso. No time de 1995, legado de Wagner. Mas depois Jefferson trouxe essa característica. Até Gatito. Mas o nome do momento é John.

Buda Mendes/Getty Images

Da taça que ninguém queria à conquista mais desejada

A América é alvinegra. E pelo terceiro ano consecutivo o título é conquistado por um time do Rio - Flamengo, Fluminense e agora o Botafogo. O trio, inclusive, se junta ao Palmeiras como representantes brasileiros no novo Super Mundial de Clubes da Fifa, em junho.

Mas a temporada botafoguense começou com a taça que ninguém queria: o bi (!) da Taça Rio. Aquela que é um troféu de consolação para os que ficam fora das semifinais do Carioca, entre o quinto e o oitavo lugar da fase de classificação.

Lá estava o Botafogo, de forma constrangida, posando e recebendo o troféu. No meio disso tudo, incerteza.

O time há alguns dias tinha demitido o técnico Tiago Nunes, ainda herança do traumático 2023. Não só a campanha no Estadual, mas a caminhada na fase preliminar da Libertadores tinha começado de forma tortuosa. A estreia foi na Bolívia, e o empate por 1 a 1 com o Aurora decretou o fim da passagem do treinador.

O Botafogo só conseguiu chegar à fase de grupos com o interino Fábio Mathias. Além do Aurora, o time superou o Red Bull Bragantino.

Mas depois da derrota na primeira rodada, diante do Junior Barranquilla, a diretoria teve a certeza de que precisava de alguém com currículo mais pesado. Uma reformulação já estava em curso, e seria liderada pelo português Artur Jorge.

Foi assim que as coisas começaram a se encaixar.

Marcelo Endelli/Getty Images Marcelo Endelli/Getty Images

No caminho, os desafetos Palmeiras e São Paulo

Depois de uma fase de grupos não muito simples, o mata-mata reservou à equipe de Artur Jorge, logo de cara, o duelo com o Palmeiras. Logo ele, algoz no Brasileiro do ano passado.

O confronto ainda contava com ingredientes que ultrapassavam apenas o âmbito esportivo. Textor e Leila Pereira trocaram farpas e a briga chegou até à CPI.

As desavenças começaram após as acusações do empresário sobre possível manipulação de resultados no Brasileiro, e ganharam corpo.

Em julho, quase um mês antes do encontro pela competição continental, os times se enfrentariam no Nilton Santos, pelo Brasileiro, e alvinegros penduraram bonecos de Leila e do presidente da CBF Ednaldo Rodrigues, indicando o tom que o confronto tinha ganho. Textor se desculpou.

O Botafogo ganhou o primeiro duelo, em casa, por 2 a 1, e segurou o empate dramático na volta: 2 a 2 no Allianz Parque.

Nas quartas de final, a tabela colocou à frente do Botafogo outro "desafeto" de Textor: Julio Casares, presidente do São Paulo.

As rusgas do mandatário tricolor com o dono da SAF alvinegra se iniciaram pelos mesmos motivos de Leila, já que a menção dos relatórios da Good Game sobre manipulação envolveu, principalmente, o 5 a 0 que o São Paulo levou do Palmeiras em 2023.

Nos 180 minutos, empate sem gols no Nilton Santos e 1 a 1 no Morumbis. Na disputa de pênaltis, deu Botafogo.

Wagner Meier/Getty Images

5 a 0 e final: obra-prima que simboliza campanha

A campanha do título teve uma noite de gala. O Botafogo desfilou em campo, venceu o Peñarol com um nada modesto 5 a 0 e levou o torcedor às nuvens. Carimbar a classificação à final tornou-se apenas uma questão burocrática, e o jogo da volta virou algo protocolar.

O dia começou com a violência dos uruguaios no Recreio, zona oeste do Rio de Janeiro, terminou com a vitória com dois gols de Savarino, um de Bastos, uma pintura de Luiz Henrique e mais um gol de Igor Jesus.

O encontro no Uruguai teve tensão e até o jogo esteve em xeque. Por questões de segurança, a partida aconteceu no Estádio Centenário, e não no Campeón del Siglo, casa do Peñarol. Os aurinegros triunfaram por 3 a 1, mas não foi o suficiente. O Botafogo estava classificado à final da Libertadores pela primeira vez na história.

Na decisão, veio então a apoteose: não deu para o Atlético-MG, mesmo quando parecia que tudo iria abaixo com a expulsão de Gregore. O Botafogo deu uma aula de jogo coletivo, brilhou e saiu com o 3 a 1 para levantar a taça.

O que vem pela frente agora é a conclusão do Brasileirão, onde o Botafogo é líder. Além disso, o clube já sabe que tem o Intercontinental, no Qatar, a partir de 11 de dezembro. O primeiro adversário é o Pachuca. Na final, quem sabe, o Real Madrid. Ano que vem, o Super Mundial de Clubes da Fifa.

Se 2024 é histórico, o ano que vem também promete para o Botafogo e sua equipe de especialistas em achar bons jogadores fora do radar.

ALEJANDRO PAGNI/AFP ALEJANDRO PAGNI/AFP

+Especiais

ANDRÉ FABIANO/ESTADÃO CONTEÚDO

Filipe Luís: como foi solução a caseira do Flamengo para salvar ano e levantar a taça

Ler mais
Raul Baretta/Santos FC

Santos é campeão da Série B, mas torcida prefere não fazer festa pela conquista

Ler mais
Eduardo Knapp/Folhapress

Ana Paula Oliveira revisita carreira nos campos e avalia arbitragem: 'Parece que clubes são adversários'

Ler mais
Ayman Aref/NurPhoto via Getty Images

Vice-campeã olímpica, seleção feminina descobre como voltar a ganhar e mostra que o futuro pode ser brilhante

Ler mais
Topo