Botafogo: da S.A. à Série B

Clube iniciou temporada sonhando virar empresa; 5 técnicos e 57 jogadores depois, volta a cair

Alexandre Araújo e Bernardo Gentile Do UOL, no Rio de Janeiro NAYRA HALM/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

O Botafogo entrou em campo pela temporada 2020 com otimismo. A expectativa era que pudesse ser um ano de virada, com o avanço do projeto S.A. e a chegada de estrelas internacionais como chamariz para uma nova fase. Agora, a quatro jogos do final do Brasileirão, o time assimila o amargor do rebaixamento após a derrota para o Sport, na noite de ontem (5), por 1 a 0, no estádio Nilton Santos.

Esse foi o revés em campo, produto do desarranjo na gestão. Os planos do clube-empresa parecem ainda mais distantes para uma instituição asfixiada por dívidas. Sem novas ideias, o time se perdeu com a espiral de trocas de técnicos e contratações em excesso que, em vez de solução, se tornaram problema. O resultado é a terceira visita à Série B nacional, num duro contraponto a seu passado glorioso.

Agora o desafio primordial do Botafogo, na opinião de figuras célebres como Carlos Augusto Montenegro e Felipe Neto, é viabilizar o projeto da S.A. Mas num contexto de ainda menos recursos na Série B, com uma perda ainda mais significativa nas receitas.

Em 2019, o time embolsou R$ 52 milhões por direitos televisivos. Nesta temporada, o valor já vai cair consideravelmente, para um pouco mais de R$ 30 milhões, uma vez que os rebaixados não recebem a cota equivalente a seu desempenho no campeonato. Na Série B, há duas ladeiras a escolher: uma cota fixa no valor de R$ 8 milhões ou o que conseguir arrecadar em pay-per-view.

É uma missão árdua para uma nova administração, que vai ter de cuidar de uma reorganização administrativa e também esportiva. O clube terá de se superar para retornar à primeira divisão do Campeonato Brasileiro.

NAYRA HALM/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Sociedade anônima. E demorada

Na noite de 12 de dezembro de 2019, o time nem estava em campo, mas os torcedores do Botafogo celebraram como se um golaço tivesse sido marcado. O Conselho Deliberativo do clube havia acabado de aprovar o projeto da S.A., que previa um aporte financeiro para pagar débitos e investir no departamento de futebol. A data já completou aniversário, e nada disso foi aplicado.

A partir daquele momento, praticamente qualquer decisão mais prática vinha com um ar transitório na pasta - "válido só até começar a S.A.". O planejamento teve um início animador, mas logo vieram obstáculos, dentre eles a pandemia do coronavírus e a consequente crise na economia. Aos poucos, o plano foi perdendo o fôlego até estagnar em sua aplicação.

O que não impediu que virasse uma novela pública, principalmente após um desabafo de Felipe Neto à esteira de uma derrota para o Cuiabá, pela Copa do Brasil. Hoje um dos torcedores mais influentes do Alvinegro, o empresário fez duras críticas à forma como, na sua visão, o projeto tenha sido desvirtuado. Carlos Augusto Montenegro, ex-presidente e então membro do Comitê Gestor do Futebol, respondeu em uma entrevista coletiva.

É o fim do projeto da S.A. Pode vir a acontecer, mas totalmente esfrangalhado. E agora o Botafogo está em situação de calamidade. Qualquer um que diga o contrário, está mentindo. Não vou ver meu clube do coração acabar sem tentar tudo que eu posso para expor o que está acontecendo e, quem sabe, ajudar a chacoalhar a árvore. Agora, a única saída que resta ao Botafogo é o projeto de recuperação judicial, que é uma lástima. O projeto é apenas adiar o inadiável. Sem o projeto S.A., há 99,9% de certeza de que o Botafogo não irá sobreviver."

Felipe Neto, YouTuber e empresário

O Botafogo está falido, toda a receita está penhorada. Se não fosse a torcida, o comitê, se não fosse a ajuda pessoal de algumas pessoas, o Botafogo já estaria falido oficialmente. O que estamos tentando é tirar o Botafogo da falência. Nenhuma empresa sobrevive com 10 milhões [de reais] de despesa e 800 mil de receita por mês. Ele ontem tacou fogo. Na minha visão, o comitê está tentando ajudar mais o Botafogo que o Felipe Neto. A única coisa que ele fez de errado foi incendiar um projeto. Misturou uma derrota honrosa com a S.A. Achei isso covarde."

Carlos Augusto Montenegro, presidente do Ibope

Numa coisa Montenegro e Neto concordam: o projeto de sociedade anônima ainda é apontado como a melhor saída para a instituição, que acumula R$ 514 milhões em dívidas, uma das maiores do futebol brasileiro e ganha peso maior em comparação a outros clubes devido ao menor poder de receita alvinegro.

Allan Carvalho/NurPhoto via Getty Images Allan Carvalho/NurPhoto via Getty Images

Eterno enquanto dura

Com a ideia de que a S.A. seria rapidamente concretizada, foi montado um Comitê Gestor de Futebol para que terreno fosse preparado para a revolução.

O grupo era formado pelo então presidente Nelson Mufarrej, pelo vice-presidente de Futebol Marco Agostini, pelo vice-presidente Comercial e de Marketing Ricardo Rotenberg, pelo ex-presidente Carlos Augusto Montenegro, pelo ex-diretor da base Manoel Renha, e pelo ex-vice de finanças Cláudio Good.

Com a demora na transformação do departamento de futebol, porém, todo o planejamento da pasta para a temporada passou por esse colegiado. Desde contratações de reforços para o elenco à chegada de novos técnicos. E decisões equivocadas ao longo desta caminhada não faltaram, como mostraremos abaixo.

O Comitê foi desfeito apenas dias depois da eleição presidencial, que aconteceu em 24 de novembro e apontou Durcesio Mello como vencedor.

Thiago Ribeiro/AGIF Thiago Ribeiro/AGIF

57 jogadores numa temporada

A ideia da diretoria do Botafogo, na virada de 2019 para 2020, era fazer uma avaliação do elenco, buscar reduzir custos e montar um grupo mais modesto para que houvesse um lastro para contratações com um novo perfil quando a S.A. assumisse. Não aconteceu nem uma coisa nem a outra.

Neste embalo, o zagueiro argentino Carli, por exemplo, foi dispensado por ter um salário considerado acima da realidade financeira. O experiente volante Cícero tomaria o mesmo caminho, mas acabou permanecendo — chegou a ser afastado e, posteriormente, foi reintegrado.

No final, o Alvinegro acabou contratando nada menos que 25 jogadores: dois times completos e mais três peças de reposição. Destes, cinco nem sequer terminaram a temporada: o zagueiro Ruan Renato, o lateral esquerdo Danilo Barcelos, o volante Thiaguinho, o meia equatoriano Gabriel Cortez e, no caso mais célebre, o meia japonês Honda. No total, 57 jogadores vestiram a camisa do Botafogo durante a temporada, embora o número elevadíssimo mereça uma ponderação: o time disputou as primeiras partidas da temporada, pelo estadual, com uma formação alternativa, para descansar o grupo principal.

Entre idas e vindas, reforços e dispensas, o grupo se mostrou bastante desequilibrado e sem muitas virtudes para produzir resultados positivos em campo. Foram 54 jogos, com 12 vitórias, 19 empates e 23 derrotas.

Thiago Ribeiro/AGIF

Você fala português?

Não é que o Botafogo tenha investido só em quantidade. O clube também decidiu ir ao mercado por contratações de impacto—até internacional: o meia japonês Honda e o atacante marfinense Kalou. Isso para não falar das semanas de noticiário em torno de Yaya Touré, compatriota de Kalou, que não deram em nada.

A ideia é que Honda e Kalou fossem referências em campo e nos negócios. Mas não foi bem assim. Com grandes clubes europeus no currículo e disputa de Copa do Mundo 'nas costas', a dupla não conseguiu corresponder à altura dentro das quatro linhas.

Honda chegou sob grande festa e foi recebido por uma multidão no aeroporto. Faixas nipônicas, camisas com o nome do jogador, copo, almofada... O meia abraçado como um ídolo instantâneo. Já o atacante Kalou, contratado em meio à pandemia de coronavírus, não teve tal sorte —mas também ganhou produtos especiais e alimentou a esperança do torcedor.

A caminhada de Honda no Glorioso foi acompanhada por um debate sobre o melhor posicionamento: volante, vindo de trás para construir as jogadas, ou meia, mais perto do gol? Dos sofás em casa à comissão técnica, o tema sempre esteve presente, mas a verdade é que o japonês oscilou entre boas partidas e atuações apagadas. Foram 27 jogos e três gols.

No decorrer do ano, ele, em algumas oportunidades, demonstrou insatisfação com a gestão do futebol. Em uma delas, após a demissão do técnico argentino Ramón Díaz, no fim de novembro, disse que "começava a pensar em sair". Em dezembro, em comum acordo com a cúpula, o contrato, que iria até o fim do Brasileiro, foi rescindido. Talvez, no fim, ele tenha marcado mais por suas posições firmes contra a retomada do futebol em meio à pandemia do que por suas ações em campo.

Kalou, por sua vez, chegou ao Botafogo em julho, enferrujado. Ele havia jogado pela última vez em novembro de 2019, ainda pelo Hertha Berlim, da Alemanha. Além do período de adaptação necessário, conviveu com um problema muscular que o afastou dos gramados por cerca de um mês. Até aqui, entrou em campo em 25 oportunidades, 10 como titular, e fez um gol, contra o Corinthians.

O vínculo do marfinense com o clube vai até o fim do ano, mas, com vencimentos altos e apontados como fora da atual realidade financeira, as partes já conversam para uma quebra de acordo de forma amigável.

Thiago Ribeiro/AGIF

Ciranda de técnicos

Técnico demitido sem nem sequer estrear? Sim, isso também aconteceu no Botafogo, que, entre 2020 e 2021 teve cinco treinadores efetivos. A temporada começou sob o comando de Alberto Valentim, remanescente do ano anterior e demitido no início de fevereiro.

Chegou, então, Paulo Autuori. O experiente técnico, com fortes ligações com o Alvinegro desde a conquista do Brasileirão em 1995, foi o que ficou um período maior à beira do gramado. Ele chegou ainda em fevereiro e se despediu em outubro. À época, a direção optou pela "solução caseira" e efetivou o então auxiliar Bruno Lazaroni, que ficou apenas seis partidas no cargo. Se preferirem, podemos incluir também nesta conta o preparador de goleiros Flávio Tenius, que foi técnico interino por três jogos após a queda de Lazaroni.

A cúpula voltou ao mercado e sondou alguns nomes. A torcida, então, fez pressão para que fosse um técnico estrangeiro e o clube ouviu. Após algumas negociações frustradas, acertou com o argentino Ramón Díaz. Ele, porém, foi demitido sem nem sequer estrear à beira do gramado, numa história emblemática dos desencontros botafoguenses em sua gestão de futebol.

O comandante se apresentou em 10 de novembro e voltou à Argentina para ser submetido a um procedimento cirúrgico, enquanto o filho e auxiliar Emiliano Díaz dava as ordens ao elenco. Após três derrotas em três jogos, o Glorioso decidiu pela troca na comissão técnica, contratando Eduardo Barroca. Que, por sinal, havia dirigido o time em 2019 e fora demitido em outubro para a contratação de Valentim. O Botafogo completou a ciranda.

Vitor Silva/Botafogo

Montenegro: liderança minada

Presidente do Botafogo campeão nacional em 1995, Carlos Augusto Montenegro sempre gozou de muito prestígio junto à torcida alvinegra e influência nos bastidores do clube, tendo voz ativa, inclusive, no que dizia respeito à gestão do futebol. Não à toa, ele foi um dos nomes escolhidos para integrar o Comitê Gestor de Futebol, que faria a transição do departamento para a chegada da S/A.

Com a atuação do dirigente, alguns profissionais chegaram a General Severiano, como Valdir Espinosa, para a gerência de futebol — ele morreu em março do ano passado—, e Paulo Autuori como treinador. Algumas contratações e decisões, porém, geraram críticas da torcida e o planejamento mal feito na montagem do elenco teve reflexos no campo.

Mais popular dentre os integrantes do comitê, Montenegro, ao longo da temporada, foi ao microfone diversas vezes, fosse para criticar a condução do futebol brasileiro em meio à pandemia ou para explicar o motivo da chegada jogadores contestados.

A péssima campanha no Brasileiro fez com que os membros do grupo se tornassem quase que personas non-gratas no Alvinegro e abalou até mesmo a imagem do "presidente eterno". Na eleição realizada em novembro, ele, que apoiou Durcesio, chegou a ser alvo de xingamentos de um sócio que entrava no ginásio para votar.

Vencedor do pleito, Durcesio Mello é amigo de Montenegro e, recentemente, fez elogios a ele, mas admitiu que pretende evitar qualquer participação do parceiro na atual gestão.

Vitor Silva/Botafogo

Novo planejamento

Em meio a essa prolongada fase de transição, a diretoria alvinegra foi, ao menos realista, ao colocar o rebaixamento no radar, com cerca de dez rodadas de antecedência. Afinal, uma queda à Série B representa drástica diminuição nas receitas.

No futebol, Eduardo Freeland, vitorioso à frente da base do próprio Botafogo, voltou para assumir o cargo de diretor de futebol do elenco profissional e colocar em prática um projeto a longo prazo. A ideia é desenvolver um DNA e aprimorar a integração entre as categorias inferiores e o elenco principal.

Freeland, porém, chegou com alguns desafios mais imediatos, como as definições em relação ao futuro de alguns nomes da pasta e a montagem do grupo visando a próxima temporada.

"Reconhecemos que estamos atrasados nesse processo, então, estamos correndo contra o tempo. Estamos fazendo muitos contatos, mas o fundamental para essa reconstrução é ser o mais assertivo possível. Não podemos simplesmente abrir e trazer jogadores. Temos de trazer jogadores com o perfil que traçamos internamente, que queiram vestir a camisa, tenham capacidade técnica e tenham competitividade", disse em recente entrevista à Botafogo TV.

O futuro é recomeçar

Durcesio Mello venceu a eleição presidencial e iniciou a gestão em 4 de janeiro. Entusiasta do projeto da S.A., o mandatário busca fazer uma reformulação e levar uma maior profissionalização ao clube. Nesta caminhada, a cúpula está fazendo uma seleção para que um CEO possa chegar e começar um trabalho neste sentido.

Buscar novas receitas para aliviar a crise financeira e equacionar dívidas são outras missões que a chapa vencedora terá nos próximos quatro anos de mandato. Jogar a Série B, porém, não ajuda a causa.

Outra incumbência, talvez mais importante a curto prazo, é tentar concretizar a transformação do departamento de futebol em clube-empresa. O projeto praticamente voltou à estaca zero. Agora, o clube está novamente no mercado buscando investidores para dar o pontapé inicial na ideia. Será que um dia ela ainda vai sair do papel?

Bruna Prado/Getty Images Bruna Prado/Getty Images
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