O último campeão mundial

A história de amor de Brandãozinho, que estava no grupo do Palmeiras que venceu a Copa Rio de 1951

Roberto Salim Colaboração para o UOL, em Santos (SP) Lucas Seixas/UOL

Morreu na manhã de hoje (5), em Araraquara-SP, José Carlos Silveira Braga, ou Zezé ou "Coco" (querido em francês), que também atendia pelo apelido de Brandãozinho. Ele era o último vivo daquele lendário time do Palmeiras que conquistou a Copa Rio no ano de 1951, em pleno estádio do Maracanã.

Logo mais à noite, o time de Abel Ferreira entra em campo para enfrentar o River Plate, da Argentina, no primeiro jogo das semifinais da Copa Libertadores, e a maioria dos torcedores palmeirenses estará sonhando com a sequência de uma caminhada que poderá acabar com uma pergunta incômoda: o Palmeiras tem ou não um título Mundial?

Para Brandãozinho não havia dúvida: o seu time de coração está em busca do bicampeonato do planeta bola. Ele considerava esse um título que lhe trazia orgulho incomparável, mas que dá aos torcedores inimigos munição para atormentar a vida dos palmeirenses.

É uma conquista em que a participação da Fifa é o problema. A entidade estava presente no torneio, que aconteceu um ano depois da Copa do Mundo de 1950, em um momento em que organizadores brasileiros e membros da entidade mundial estavam inevitavelmente próximos.

Só que não faz parte da lista de títulos mundiais que a entidade reconhece. O Palmeiras até tem um documento enviado por fax que equipara o torneio a um Mundial, mas esse texto nunca foi reconhecido. Por tudo isso, a Copa Rio de 1951 caiu em cheio no mundo da gozação futebolística.

Em uma longa entrevista ao UOL Esporte em março do ano passado — uma de suas últimas —, Brandãozinho respondeu: afinal, o Palmeiras é campeão mundial?

O Palmeiras é campeão mundial?

Aos 90 anos, completados dia 24 de janeiro de 2020, Brandãozinho deu de ombros quando ouviu a pergunta. Ele estava na poltrona da sala de seu amplo apartamento santista, onde passava por uma bateria de exames. Estava mais preocupado com a declaração do Imposto de Renda, tarefa que precisava ser feita antes de voltar para a tranquilidade, para o jardim e para sua piscina no interior paulista, no seu pequeno paraíso em Boa Esperança do Sul, a poucos quilômetros de Araraquara, do que com a polêmica.

"Claro!"

Brandãozinho não tinha dúvidas da conquista. Os jornais da época noticiaram em destaque a final do Maracanã e "a torcida os recebeu como heróis na volta a São Paulo".

O amigo palmeirense Miguelzinho Costa, que morava na casa em frente em Boa Esperança do Sul, também não tinha a menor insegurança ao falar do assunto.

"Brandãozinho ou Zezé, que é como ele é chamado aqui, foi campeão do mundo sim. Mas sempre tem algum corintiano para dizer que não, embora aqui na cidade todo mundo o respeite e o trate como ídolo", contou Miguelzinho, que também é campeão, mas de bocha. Representa a cidade nos Jogos Regionais. Ele que deixa uma provocação no ar: "Você sabia que a Janu, a Januária, irmã do Zezé, é corintiana?"

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O amor que não gosta de futebol

Quem estava ao lado do seu amor — que é como ela o trata o tempo todo — durante a entrevista era a francesa Suzanne, agora viúva do ex-jogador. Eles tiveram um relacionamento de quase sete décadas, com direito a um roteiro cinematográfico.

Antes de falar sobre essa paixão — talvez a primeira, talvez a segunda da vida de "Coco" —, fizemos a pergunta necessária também a Suzanne: "O Palmeiras tem mundial?"

Ela olhou em direção a "Coco", olhou a camisa que ele tinha ganho da diretoria do Palmeiras em festa recente comemorativa do título da Copa Rio, olhou as fotos que emolduravam a sala, olhou, em suma, para um passado de 69 anos juntos. E disse:

"Eu não gosto de futebol, para mim tanto faz. O futebol machucava muito o meu 'Coco', não é amor?"

Então, ela não se envolvia nesta questão. Mas entrou de sola em outra: qual era a maior paixão do seu amado: o Palmeiras ou Suzanne?

"Coco, de quem você gosta mais?" E ela nem esperou resposta alguma. Diante da demora pela manifestação de Brandãozinho, Suzanne apontou para ela mesmo. "Parou para pensar? Sou eu sua paixão maior!"

Eles não tiveram filhos, mas tinham passado e presente.

Parece que viveram encantados.

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O futebol francês e a modelo

Suzanne é uma mulher determinada. Brava. Conheceu o seu amado quando era uma menina-modelo de uma empresa de cosméticos. Era, também, Miss na cidade de Nice, onde nasceu. Período difícil, de pós-guerra. A mãe morava em Lyon e saiu da cidade quando descobriu fios de cabelos loiros na cama de seu namorado.

"Minha mãe era morena... Então partiu para a casa da sua irmã no interior de Nice e não quis mais saber de meu pai. Sou filha única e mimada".

Foi a jovem e bela Suzanne que o também jovem Brandãozinho conheceu quando deixou o Palmeiras, após a conquista de 1951, para jogar em campos franceses: no Nice Olympique, que também jogou a Copa Rio e foi devidamente batido pelo Palmeiras na primeira fase do torneio, por 3 a 0, no Pacaembu.

Depois, os palmeirenses bateram o Estrela Vermelha por 2 a 1, perderam da Juventus por 4 a 0, mas se reergueram nas semifinais e eliminaram o Vasco da Gama (2 a 1 e 0 a 0).

Nessa época, Yeso Amalfi era um deus em campos franceses e chegou até a paquerar Suzanne, que competia em provas de ciclismo, esqui, natação e formava em uma equipe local de basquete. Yeso lhe presenteou até com um casaco de peles. Mas ela, do alto de seus 1,68m de altura e 58 quilos, nem ligou.

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Flerte e casamento

No começo, não se interessou também por Brandãozinho, um jovem brasileiro que nem francês falava. Ficaram na troca de olhares e no café que o jogador de futebol ofereceu a ela.

"Estávamos na praia, eu queria tomar sol com minhas amigas".

Na segunda vez que se encontraram, o ponta-esquerda já estava mais à vontade na França, arriscava algumas palavras. Insistiu e conseguiu levá-la ao cinema.

"Um cavalheiro. Pegou somente nas minhas mãos, sabe como é homem? Logo me apaixonei por ele. Foi como uma doença".

E o brasileiro era convincente.

Nas cartas que enviava de Vigo, na Espanha, para onde tinha se transferido, sempre prometia à amada: "Vou casar com você".

Três anos de namoro, cartões postais e telefonemas cheios de interferências e veio um casamento discreto.

Brandãozinho foi a Nice, conversou com a mãe de Suzanne, casaram-se e foram morar em Barcelona, onde o atacante veloz, com uma agilidade incrível, encantava a torcida europeia.

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"Ele tinha muita impulsão, nadava muito bem, gostava de aventura. Chegou até a montar em touros", fala Suzanne, mostrando a foto de uma "Plaza de Toros" em que Brandãozinho voa no dorso de um animal.

Ver o amado jogando, Suzanne foi só uma vez.

"Foi no campo do Espanyol, mas eu não gostei. Batiam muito no meu 'coco'. Pontapés, cotoveladas, foi horrível. Davam muita paulada nele. Nunca mais fui a um estádio. Só aquela vez no Sarriá".

Ela fala do mesmo Sarriá onde, em 1982, a seleção de Zico e Sócrates foi eliminada da Copa do Mundo pela Itália de Paolo Rossi.

Suzanne esperava Brandãozinho chegar em casa com uma bacia com gelo e uma pomada milagrosa para curar suas dores futebolísticas.

"Quando ele chegava, só pelo jeito, eu já sabia se ele tinha vencido ou se tinha perdido o jogo".

Ela falou e gesticulou se batendo, como se visse os zagueiros adversários chutando o seu "coco".

"Nem rádio eu ouvia. Não ia sofrer, me torturar".

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Na sala do apartamento em Santos havia muitos álbuns, muitas fotos.

E uma delas mostrava o vestiário do time do Palmeiras após a final da Copa Rio com a Juventus. Foram dois jogos na decisão: no primeiro, o Palmeiras venceu por 1 a 0. No segundo, em um Maracanã com mais de 116 mil pessoas, um 2 a 2 eletrizante, gols de Rodrigues e Liminha.

Na foto, com taça e tudo, em primeiro plano estqfq o lendário Jair da Rosa Pinto, o Jajá de Barra Mansa. "Muito amigo nosso, amigo de nossa família", disse Suzanne, enquanto Brandãozinho abria um largo sorriso.

De repente, nos guardados, um álbum de figurinhas, onde aparecia o time do Jabaquara, com Brandãozinho. Foi ali que começou sua carreira profissional, onde foi visto pelos dirigentes palmeirenses que o levaram direto para o Parque Antártica para ser campeão paulista em 1950, jogar na seleção paulista que inaugurou o Maracanã e fazer parte do grupo seleto dos campeões da Copa Rio.

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Batia forte como Pepe

Em 2019, o Jabaquara — seu primeiro time profissional — festejou mais de cem anos.

Perguntei a Brandãozinho se ele tinha ido à festa do clube.

"Ninguém me chamou", verbalizou ele.

Outra foto, agora com Pepe, o Canhão da Vila.

Outro sorriso de Brandãozinho. Ele tinha um estilo semelhante ao de Pepe.

"Ele batia forte também. Canhoto como eu", garante Pepe.

"O Brandãozinho era um pouco mais velho, mas lembro que era veloz e chutava muito".

Então, perguntei a Pepe o que ele achava da polêmica em torno do título mundial do Palmeiras, um campeonato disputado por oito equipes. Tinha o Vasco da Gama, o Áustria Viena, o Sporting de Portugal, o Nacional do Uruguai no grupo A. E no grupo B, além do Palmeiras, tinha Juventus da Itália, o Nice Olympique e o Estrela Vermelha da Iugoslávia.

Pepe, com a elegância de sempre, comentou que foi um título importante conquistado pelos alviverdes... "Foi importante, sim. Vieram times de fora do país, mas não foi considerado um campeonato mundial pela Fifa. Não tinha esse nome. Não houve esse objetivo por parte da Fifa. Então, apesar da importância, não pode ser considerado um título mundial".

E Pepe fala com a autoridade de quem foi campeão do mundo.

Pela seleção brasileira e pelo Santos.

Bicampeão, aliás.

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Para equilibrar essa sinceridade de Pepe com a certeza dos palmeirenses que se acham campeões, surgiu na sala, sobre a mesa, uma revista do Palmeiras, com Brandãozinho segurando a Copa Rio.

Perguntei se ele tinha ido ao clube para posar para a foto.

Ele acenou negativamente.

A Copa Rio é que veio a Santos.

"Veio com três seguranças. Três guardas vieram com a taça até nossa casa e depois até a praia, onde foram batidas outras fotos da reportagem", explicou orgulhosa Suzanne.

A Copa Rio foi um torneio de nível mundial organizado pela CBD para resgatar a autoestima do futebol brasileiro, jogada ao chão com a derrota de 1950 para o Uruguai, na final da Copa do Mundo.

Participaram da competição times realmente importantes. Até o lendário Jules Rimet esteve no Maracanã para entregar a taça aos jogadores palmeirenses. A Fifa participara da organização, mas não dera ao torneio o nome de mundial — daí tamanha confusão e discussão entre os torcedores.

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Brandãozinho estava no grupo campeão do Palmeiras. Tinha ao seu lado velhas figuras lendárias no clube, como Oberdan Cattani e Waldemar Fiúme, que não estiveram na finalíssima. Em compensação, jogaram contra os italianos Liminha, Fábio, Luiz Villa, Ponce de Leon, Jair da Rosa Pinto e Rodrigues. Todos sob o comando do técnico uruguaio Ventura Cambon.

Mais imagens e outras recordações foram aparecendo na sala, nesta viagem pelo futebol mundial.

Tinha foto de Brandãozinho ao lado de Alfredo Di Stefano, tinha foto de Suzanne com roupa de dança flamenca. E, no pulso durante toda a nossa entrevista, ele ostentou o relógio que todos os jogadores palmeirenses ganharam após a conquista do título de 1951.

"Sabe, ele tinha um outro relógio de ouro, mas levaram aqui de casa. Até hoje não sei quem foi!"

Suzanne lamentou, mas logo estava trazendo mais fotos e recortes de jornais franceses e espanhóis. São muitas cenas de Brandãozinho no alto, pulando de cabeça, dividindo com os goleiros. "Ele saltava muito. Viu aquelas fotos dele saltando numa lagoa? Eu ficava com medo, mas ele gostava de pular. Se atirar no ar".

Brandãozinho jogou em Nice, em Vigo, em Barcelona, em Mônaco. "Quando ele nadava, tinha uma classe incrível, não levantava uma gota d'água na piscina. Até o príncipe parava para olhar seu estilo".

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Quando o sonho futebolístico terminou, o casal voltou em um navio italiano para o Brasil. Na cidade de Boa Esperança do Sul, foram recebidos com carinho, festa e um jantar dançante.

"No fim, me chamaram para falar ao microfone. Falei em francês, não sabia português. E no fim agradeci: merci beaucoup. Na hora, senti que houve um murmúrio no salão. No dia seguinte, o organizador da festa veio se queixar ao meu querido: 'Poxa, fizemos uma recepção tão linda e sua mulher mandou todo mundo para aquele lugar'. Mas logo o meu querido esclareceu tudo e as coisas voltaram ao normal".

Suzanne, então aos 89 anos, fala um português quase sem sotaque. Ama o Brasil. Adora a cidade de Santos, onde foi gerente por muito tempo de uma boutique de modas. Na cidade santista, o casal passa um período do ano. Mais do que da praia, ela gosta de regar seu jardim e suas flores na residência de Boa Esperança do Sul, onde viu os jogos da Libertadores ao lado do esposo.

Para os inimigos palmeirenses, uma caminhada que pode levar a um indesejável e inédito título mundial. Mas para Brandãozinho era uma estrada conhecida: rumo ao bi.

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