Da praia ao bimundial

Muller conta como ficou 15 dias no litoral após briga com Telê e voltou para conquistar o mundo pelo São Paulo

Eder Traskini e Vinicius Mesquita Do UOL, em São Paulo (SP) UOL

À sombra de um guarda-sol, de óculos escuros e sentado em uma cadeira de praia sobre as areias do litoral paulista estava aquele que, pouco tempo depois, faria o torcedor do São Paulo vibrar com o bimundial: o atacante Muller.

Se engana quem pensa que o período na praia foi durante as férias. O jogador decidiu ir ao litoral durante a temporada passar 15 dias após ser afastado pelo técnico Telê Santana em decorrência de um desentendimento.

Muller fazia tratamento no joelho após uma pancada e, com dores, pediu para o médico avisar a Telê que não poderia viajar com o grupo. O histórico técnico do Tricolor não gostou. O São Paulo venceu a partida e, na volta, Telê afastou Muller.

Se sentindo injustiçado, o atacante prometeu procurar outro clube e foi para a praia. Ele mal sabia que, enquanto curtia o sol do litoral, seus companheiros de elenco tentavam convencer Telê a reintegrá-lo: "precisamos dele para o Mundial, depois faça o que quiser com ele."

Foi assim que o telefone de Muller tocou. Era o então presidente do São Paulo, José Eduardo Mesquita Pimenta: "vem pra cá se reconciliar com ele, a gente precisa de você". Raí e Zetti também procuraram o atacante e o convenceram a retornar ao time.

Muller voltou, Telê o perdoou após um sermão de 40 minutos, o goleiro Rossi rebateu, a bola encontrou o calcanhar do atacante e o fundo das redes do Milan. Depois de 15 dias na praia, Muller tornou o São Paulo bicampeão do mundo.

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Relação com Telê

A relação entre Muller e Telê Santana foi repleta de "discussões de pai e filho", segundo o próprio ex-jogador define.

O estádio do Morumbi foi casa do garoto sul-matogrossense sonhador e, depois, o bairro se tornou também a residência fixa do consagrado atacante. E até isso era motivo de desentendimento com Telê.

O histórico treinador pedia que os jogadores retornassem ao CT da Barra Funda após os jogos em casa para jantar e dormir. No dia seguinte, os casados eram liberados para ficarem com suas famílias. Muller, porém, queria matar o pós-jogo determinado pelo técnico.

"Discordava porque sempre morei no Morumbi. Quando a gente jogava ali, era do lado da minha casa. Nós (ele e Telê) tínhamos essas divergências. Quando eu jogava bem, ele dizia que eu era um filho rebelde, mas que ele amava", ri o ex-atacante ao relembrar a história.

Muller foi treinado por Telê Santana no São Paulo e na seleção brasileira e viu dois comandantes diferentes. Enquanto na seleção Telê era fechado e quase não brincava, no São Paulo o final do treino era marcado por muita "resenha".

"O melhor era depois do treino. A gente se reunia no centro do campo e ficava uma hora conversando com ele. Ali ele se abria. Era um relacionamento muito legal."

César Itiberê/Folhapress

Seis meses chorando na capital

Cocada, irmão de Muller e ex-lateral de Flamengo e Vasco, foi o principal responsável pelo atacante jogar no São Paulo. Na época, o jovem atuava no time de sua cidade, o Operário de Campo Grande-MS.

Cocada insistiu para Muller jogar no tricolor e até levou o irmão na casa de um amigo que morava na capital para fazer teste no clube. Ele passou, mas o início não foi nada fácil.

"Vim de família muito pobre. Até os 15 anos de idade eu dormia com meus pais. Não tinha colchão pra todo mundo, éramos muitos irmãos em uma casa pequenininha. Sair do conforto dos meus pais foi difícil, eu passei seis meses chorando, não sei se não tive depressão. Queria voltar pra casa".

Mas Müller não voltou. Se adaptou no clube e na cidade com ajuda dos amigos que fez ali. No início, ele passava finais de semana e feriados sozinho na concentração, sem dinheiro para viajar para ver os pais. "Virava piolho de concentração", relembra.

Depois, os amigos começaram a levar Müller para passar tais períodos com suas famílias. O atacante foi acolhido pelos companheiros. Foram sete anos morando debaixo das arquibancadas do Morumbi antes da glória como jogador.

Do salário de Maradona aos problemas financeiros

Antes de entrar de vez na história do São Paulo com o bimundial, Müller já tinha se destacado o suficiente para disputar a Copa do Mundo de 1986 e chamar atenção da Europa. O interesse findou na contratação do atacante por parte do Torino (ITA).

Só que a aventura europeia não saiu da forma como o atacante imaginou. O Torino caiu para a segunda divisão logo na primeira temporada do brasileiro.

"O Torino foi vendido para um novo dono e, na primeira entrevista, ele fala que a prioridade era não deixar o Muller ir embora. O Milan me queria e eu queria ir para um time grande. Saí do São Paulo cheio de conquistas para passar raiva no Torino, fome de bola, de vitórias? Dali dois anos tinha Copa e como eu iria jogando na 2ª divisão?"

O presidente pedia para o brasileiro salvar o time, mas quando a equipe foi rebaixada, Müller avisou que não ficaria. De férias no Brasil, voltou com dez dias de atraso para discutir a saída com o mandatário, mas sem propostas concretas, acabou ficando.

Voando na Série B, o atacante recebeu um convite do presidente para um jantar. Na mesa, ao lado de um diretor desafeto do brasileiro, o mandatário pergunta quanto ele queria para ficar no Torino e Müller faz sua pedida. "O diretor falou: 'ô, você quer ganhar mais que o Maradona?". Dias depois, o atacante foi chamado na sala da presidência para renovar o vínculo com o salário pedido. E livre de impostos.

Anos mais tarde, já aposentado, Müller falou sobre as escolhas erradas que fez e chegou a dizer ao jornal Marca que "perdeu tudo". Ao UOL, disse que houve exagero, mas não escondeu os erros e comemorou o avanço no estafe dos atletas de futebol.

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Nunca soube administrar meu dinheiro, ser uma pessoa inteligente nesse sentido. Aprendi mais errando que acertando. Investe nisso, naquilo, um monte de gente oferecendo o mundo. Tudo eu fiz sozinho e esse foi um grande erro. Tinha medo de confiar em alguém também. Minha carreira sempre foi solitária nesse ponto, não tinha gente pra me ajudar. É complicado vencer sozinho. O jogador quando tem um estafe, eu acho muito bom. Significa que esse jogador quando parar não vai ter o mesmo problema que eu tive. A carreira é muito meteórica. Já se passou muito tempo que aconteceu isso. Não me arrependo de nada que eu fiz. Hoje eu vivo muito mais feliz que antes, ganhando muito menos do que ganhava.

Mark Leech/Offside via Getty Images

A várzea de 90 e o que mudou em 94

Muller disputou três Copas do Mundo: 1986, 1990 e 1994 - o ano do tetra. Pra ele, o primeiro mundial foi uma surpresa, o segundo "uma várzea" e o terceiro uma certeza de título.

Em 1986, Telê convocou diversos atacantes na preparação e avisou que somente quatro estariam na lista final. Quando Muller viu, entre outros, Éder, Renato Gaúcho, Careca e Casagrande ao seu lado, ele já quase desistiu.

"Eles vinham das Eliminatórias voando, ídolos nacionais, e eu começando. Falei: 'tô morto'. Vai levar só quatro? Então, são os quatro. Só que tinham dois meses de preparação e seis amistosos no Brasil. Nesse caminho o Renato saiu por indisciplina, o Marinho machucou, o Sidnei machucou, sobraram eu, Casagrande e Careca".

Em 1990, Muller acreditava que faltava organização, mas não qualidade. Para ele, o time era tão bom quanto o de 86 e ele é só elogios ao técnico Lazaroni. Ele conta que no fatídico Brasil x Argentina, os "hermanos" estavam temerosos.

"Eu conhecia o Caniggia, o Balbo e o Sensini. A gente estava para entrar, o Caniggia bate nas minhas costas e diz: 'Muller, por favor, pega leve hoje'. Eu via que eles estavam com medo da gente. Pensei: 'caramba, vamos arrebentar esses caras, vai ser goleada hoje'. Nosso time era muito bom. E aconteceu o que aconteceu". A seleção perdeu por 1 a 0 e acabou eliminada.

Já em 1994, Müller afirma que notou desde o início que tudo estava diferente e que o título viria.

"Em 90, tivemos vários problemas que afetaram o relacionamento do grupo. Em 94 não tinha nada disso. Falamos que não íamos deixar entrar jornal, não íamos ler nada. Reuníamos uma vez por semana para decidir o que íamos fazer, via quem era contra, quem era a favor e chegávamos a um consenso, coisa que a gente não fez em 86 e 90. Sempre prestigiando o grupo. Quando vi isso, falei: 'a gente vai ser campeão'."

O não de Telê e a chegada ao Palmeiras

Muller não esconde de ninguém que é são-paulino desde criança. Jogar no Tricolor paulista sempre foi visto por ele como um prazer. No entanto, o mesmo Telê que o levou a uma Copa do Mundo e sob o comando de quem foi herói de um título mundial fez com que o atacante acertasse com um rival.

Muller voltava do Japão e bateu na porta do Tricolor paulista. A diretoria são-paulina pediu para o atacante ir ao Morumbi se reunir com Telê após uma partida para definir o retorno. Muller foi, Telê, não.

"Fiquei na sala do presidente esperando o Telê por duas horas. Falei: 'presidente, tchau'. Eu sabia que o Telê não ia chegar. Ele não me queria de volta. 15 dias depois, o Antônio Carlos (Zago) me liga: 'você não acertou com o São Paulo?'. Expliquei que não me quiseram lá. Passaram cinco minutos e o Brunoro, da Parmalat, me liga. Acertei com o Palmeiras."

O Palmeiras de 1996, o time dos 100 gols no Paulistão, é considerado por Muller um dos melhores que ele já atuou. A saída do Verdão só ocorreu por motivo financeiro. O atacante conversava para renovar o vínculo com o alviverde e recebeu uma oferta para voltar ao São Paulo.

"Apresentei para o Brunoro e perguntei: 'em cima desse contrato que o São Paulo está me oferecendo, o que vocês podem fazer?' Brunoro falou 'nada'. Então, tchau. Eu queria ter jogado a final da Copa do Brasil. Final, pô. Aquele timaço. Pedi pra fazer um seguro pra eu jogar, pedi pra renovar o contrato. Não queria sair de lá, abriram as portas pra mim, sou agradecido. O time do Palmeiras era uma seleção, pra que eu ia sair? São Paulo estava em reconstrução. Mas em cima da proposta do São Paulo eles disseram que não poderiam fazer nada. Então, eu saí."

Reprodução

A desilusão na Globo e a volta na Gazeta

Já aposentado, Muller se aventurou como técnico por insistência do irmão, mas acabou migrando para a televisão. Ele começou como comentarista do canal sportv, mas se decepcionou.

"Eu não estava preparado e nem sabia que a TV é refém das pessoas. As pessoas criticam você e eu não sabia que isso repercutia pra eles. Falei: 'quer saber? Acho que não tenho que ser comentarista, mesmo'. Por isso que pedi demissão da Globo e nem fui pra Copa."

Muller viajou para ficar com a mãe e se isolou do esporte por seis meses. Em setembro, voltou a São Paulo para trabalhar e recebeu uma proposta da Gazeta.

"Como eu já tinha passado pela Band e pela Globo, já tinha aprendido muito. No começo, eu olhava para a câmera e tinha medo, me intimidava. Hoje eu engulo a câmera da Gazeta. Foi aí que parei para pensar que as passagens anteriores foram positivas nesse ponto. Aprendi com meus erros."

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