A nova guerra das TVs

Briga entre Flamengo e Globo pelo Campeonato Carioca pode contaminar estaduais por todo o país

Léo Burlá e Rodrigo Mattos Do UOL, no Rio de Janeiro Miguel Schincariol/Getty Images

Negociações de televisão entre clubes e a emissoras de televisão costumavam ter renovações automáticas de contrato ou concorrência limitada até 2015. As conversas relacionadas ao Brasileiro em 2016 mudaram esse panorama e empoderaram os clubes na negociação.

Primeiro, foi o Athletico.

Depois, o Palmeiras.

Agora é a vez do Flamengo.

O atual campeão brasileiro e da Libertadores não fechou com a Globo a transmissão do Campeonato Carioca de 2020. Mais do que o efeito em um torneio, é um impasse que traz à mesa de negociações entre clubes e emissoras novos componentes.

Primeiro, a diferença entre as propostas dos dois lados é de cerca de R$ 60 milhões: a Globo oferece R$ 18 milhões, cota fixa igual a de outros grandes do Rio. O Flamengo pede R$ 80 milhões.

Segundo, o clube se ofereceu até a comprar direitos da emissora, o que seria inédito.

Terceiro, gera um impacto direto sobre o Campeonato Carioca deste ano —que pode não ter transmissão da final —que pode contaminar, a longo prazo, todos os Estaduais do país.

Bruna Prado/Getty Images

A proposta do Flamengo de multiplicar por quatro ou cinco vezes o valor a ser recebido tem uma justificativa: ganhar, por jogo, quase R$ 5 milhões, um valor similar ao que ganha pelo Campeonato Brasileiro. O clube simplesmente usou como referência o restante do ano. E ainda luta para receber o pay-per-view do período de quatro meses do Estadual, já que a Globo só paga por oito meses relativo ao Brasileirão.

Para a Globo, a discussão envolve o quanto arrecada com os campeonatos estaduais. E quanto vale a pena pagar por eles. A emissora já tinha aberto mão da Liga dos Campeões da Europa e de partes da Libertadores em 2018 pela concorrência. Deixou Estaduais menores de lado e agora a diretoria descarta chegar ao valor pedido pelo Flamengo.

O principal impacto será sobre seu produto pay-per-view. Mas o tamanho desse efeito é que vai dizer muito sobre o futuro da venda de direitos de transmissão e sobre o calendário do futebol brasileiro.

É difícil a gente falar que vale mais. Flamengo vale o que Flamengo vale. Se outro clube vale mais ou menos, é problema do outro clube. Não queria entrar especificamente em outro clube. A gente não botou no nosso orçamento o direito de transmissão do Carioca. Essa administração (Rodolfo Landim), se nós não chegarmos a um valor que achamos razoável, a gente não vai fechar. Está zero lá no orçamento. Não tenho esse problema

Gustavo Oliveira, vice-presidente de Comunicação do Flamengo

Sub-20 dificulta pressão por proposta da Globo

Enquanto não fechava acordo com a Globo, o Flamengo utilizava um time sub-20 nos primeiros jogos do Estadual. O motivo era a necessidade de dar férias aos titulares após a disputa do Mundial de Clubes.

Essa decisão, porém, gerou especulações. Será que o clube rubro-negro tentava esvaziar a competição? Não é bem assim. A presença dos garotos em campo, na realidade, atrapalha a estratégia da agremiação rubro-negra de pressionar a emissora por um acordo, já que o time titular é bem mais atrativo.

Dentro da diretoria do Flamengo, há uma instrução do presidente Rodolfo Landim de disputar para valer o Estadual. O objetivo é ganhar. E há a intenção de atrair torcedores para os jogos com o elenco principal, que deve estrear diante do Resende, no próximo domingo. A aposta é de que, com os titulares em campo, haverá maior interesse pelas partidas rubro-negras e, consequentemente, pressão sobre a Globo para fazer uma nova proposta.

Nunca houve intenção da diretoria do Flamengo de boicotar o Estadual deliberadamente. Até porque ele é visto como uma fonte de receita alternativa ao Brasileiro. Seu técnico, Jorge Jesus, no entanto, tem dito que a competição serve como uma espécie de pré-temporada para um ano desgastante. E que tem outras prioridades.

Do lado da Globo, há a percepção de desvalorização do Estadual com o uso de reservas não só pelo Flamengo, como por Botafogo e Vasco. Por isso, não é visto como plausível que o campeonato tenha a mesma valorização do Brasileiro como quer a diretoria rubro-negra. A interlocutores, aponta-se uma contradição entre o discurso de Jesus de que o Carioca é uma pré-temporada e o pedido do clube por mais dinheiro.

Marcelo Cortes/Flamengo Marcelo Cortes/Flamengo

Quanto a Globo perde sem o Flamengo

Qual o impacto de não fechar com o Flamengo? Para a Globo, o principal prejuízo é a (possível) debandada de assinantes do pay-per-view, um ponto sensível para a emissora. A torcida rubro-negra, pela pesquisa feita com assinantes, representa 18% dos compradores. O tamanho do impacto sobre os pacotes, no entanto, ainda não pode ser verificado.

A questão é que a Globo já sofre com uma queda de assinantes no PPV durante o período dos Estaduais com a queda do interesse. Para piorar, há uma avaliação de que o Carioca começou com ainda menos prestígio por conta dos reservas, o que piora o desempenho das vendas de pacotes fechados. Por enquanto, ainda não é possível saber se ocorreu uma debanda de fato de torcedores do Flamengo — mas foram feitas campanhas de cancelamento em redes sociais.

Em relação às outras receitas, não há impacto imediato. Na TV Aberta, a Globo vendeu seu pacote de publicidade para anunciantes no ano passado. A intenção da emissora é disponibilizar um calendário de jogos o ano inteiro com os principais times, mas não há obrigação de incluir todos os torneios. A avaliação interna é que a empresa já perdeu outros direitos, como Champions e parte da Libertadores, e esses anúncios não foram afetados.

É preciso lembrar que a Globo também terá uma economia com a falta de acordo com o rubro-negro. Deixa de pagar R$ 18 milhões para o clube, e outros R$ 18 milhões que serão descontados do contrato. Quem perderá essa fatia de dinheiro são os times pequenos, que terão cotas reduzidas.

Não é a primeira vez que há uma discussão nesta linha. O que há de diferente é o fato de um clube não ter este recurso previsto no orçamento. Isso diferencia o Flamengo dos casos anteriores. Os clubes já perceberam que são grandes produtores de conteúdo. Isso não acontecia no passado

Pedro Daniel, diretor-executivo da empresa de consultoria EY

Paula Reis/Flamengo

Estadual representa 2,5% da renda do Flamengo

Há uma explicação para o Flamengo decidir fazer jogo duro com a Globo na negociação: a cota do Estadual oferecida pela emissora representa entre 2% e 3% da receita do clube para 2020. O clube entendeu que, como o que ganharia com a competição não faria tanta diferença, poderia pedir um valor maior pelo acordo. Além de deixar de ganhar o dinheiro, o clube rubro-negro administra junto aos patrocinadores à redução de exposição em TV Aberta durante quatro meses.

Em seu orçamento para 2020, o Flamengo não incluiu nenhum valor a ser ganho como cota de TV pelo Estadual. Era uma prevenção. Na última renegociação, em 2016, o clube precisava dos R$ 15 milhões dos direitos da competição para poder fechar as contas do ano. Por isso, aceitou o mesmo valor dos outros grandes.

Em relação aos patrocinadores, a diretoria rubro-negra entende que consegue dar retorno aos parceiros em outras mídias, graças à penetração do clube em redes sociais. Atualmente, o Flamengo tem 28 milhões de seguidores em diversas plataformas, com liderança folgada entre os times nacionais.

Os dirigentes do clube, porém, reconhecem que obviamente haverá uma perda com a ausência da Globo. Explicaram para os parceiros que não fecharam com a emissora porque não houve reajuste, como ocorreu com as propriedades da camisa do clube. Por isso, o clube apresentou três propostas à Globo com modelos diferentes para tentar atingir o valor desejado - os detalhes dessas três propostas são tratados de forma sigilosa. A emissora não topou nenhuma.

Miguel Schincariol/Getty Images Miguel Schincariol/Getty Images

Flamengo fora da TV ameaça futuro do Estadual?

Em reunião na semana passada, com todos os dirigentes de clubes e a Globo, o presidente do Bahia, Guilherme Belintani, defendeu que se acabasse com os Estaduais para direcionar o dinheiro da TV para o Brasileiro. Essa discussão é, de uma certa forma, o pano de fundo do impasse entre a Globo e o Flamengo. O clube quer ganhar igual o ano inteiro, e a emissora entende que atualmente as competições regionais dificultam a expansão de receita no futebol.

Por quê? O grande potencial de aumento de receita do futebol brasileiro é o pay-per-view, que tem queda de arrecadação no período dos Estaduais. Por isso, desde o final de 2018, a Globo tem defendido que o Brasileiro passe a ser jogado por dez meses, com as competições menores colocadas nos intervalos.

Ora, esse é um dos motivos de a emissora não ter topado pagar os valores pedidos pelo Flamengo. Ao mesmo tempo, o clube não tem como estratégia desprestigiar o Estadual.

O impasse serve para avaliar o valor do Estadual, mas essa verificação só vai ser definitiva nas renovações de contratos como o do Paulista, que acaba em 2021. Há a perspectiva de novos veículos, como o Youtube, Facebook e DAZN, entrarem na concorrência por direitos das competições. Isso pode reverter a tendência de desvalorização dos Estaduais, ou então torná-los irrelevantes, se não houver disputa pelos direitos.

A consequência natural é que o produto seja rediscutido. Mas temos de lembrar que uma competição é mais forte que a questão individual dos clubes. Essa balança é difícil de equalizar

Pedro Daniel, diretor-executivo da EY

Paula Reis/Flamengo

FlaTV quer ocupar vazio dos apagões

Um dos objetivos do Flamengo na negociação com a Globo era turbinar a FlaTV, seu canal próprio feito para torcedores. Assim, uma das propostas feitas pelo clube era comprar propriedades da emissora, como direitos sobre jogos do Carioca. A ideia rubro-negra era transmitir os jogos do Estadual no canal do clube.

O problema é que isso afetaria a venda de pay-per-view pela própria emissora, já que a torcida migraria para o canal do clube, que não é pago. A FlaTV, assim como outros canais de clubes, tem crescido em produção de conteúdo e visualizações, mas não trabalha com exibição de jogos cujos direitos são vendidos.

Sem ter o direito de passar o time adversário, o Flamengo tem feito transmissões de rádio que atingem até 3 milhões de visualizações. Há programas pré-jogo e pós-jogo para prender atenção dos telespectadores.

A Globo tem incluído em seus contratos sempre os direitos de streaming das competições. No exterior, clubes têm direitos de passar pelo menos replays das partidas em seus canais.

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