Futebol zen

Como o budismo leva jogadores brasileiros a Taiwan, exemplo mundial no combate à covid-19

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo Fabio Braga/Folhapress

Há bem pouco tempo, eles jamais tinham ouvido falar de Taiwan, uma ilha de 24 milhões de habitantes entre a China e as Filipinas. Através do projeto social "Filhos de Buda", do templo Zu Lai, em São Paulo, um punhado de garotos brasileiros teve a chance de estudar do outro lado do mundo, aprender dois idiomas diferentes e começar uma carreira no futebol.

Para sorte deles, foram parar em um dos países mais seguros para se estar neste momento. Mesmo localizado a apenas 118 km da China continental, Taiwan agiu rápido, usou o aprendizado de outras epidemias e tomou medidas efetivas que o levaram a ser um dos países com melhor controle sobre o novo coronavírus no planeta, segundo autoridades sanitárias mundiais. Foram até hoje 429 casos e apenas seis mortes, a menor taxa de casos por milhão de habitante do mundo, de acordo com um estudo da universidade de Oxford, na Inglaterra.

A disciplina da população e a organização do governo permitiram ao país não interromper aulas, não isolar seus cidadãos em casa e nem alterar a rotina de trabalhadores. Até jogos de futebol (e de outros esportes) foram mantidos, seguindo recomendações para minimizar as chances de contágio entre os jogadores.

"É um privilégio jogar futebol enquanto todos os campeonatos europeus e sul-americanos estão parados", afirmou o meio-campista Vitor Alves, do Tainan Steel. "Um privilégio maior ainda jogar e se sentir seguro."

Antes de vir pra cá eu nem conhecia Taiwan, nem sabia que esse país existia. Agora estou aqui, realizei meu sonho e estou seguro enquanto o mundo inteiro está sofrendo por conta desse vírus. Chega a ser engraçado."
Vitor Alves, meia do Tainan Steel

Fabio Braga/Folhapress
Reprodução

Jogadores se mantiveram cristãos mesmo no templo de Buda

Os jogadores brasileiros de Taiwan passaram por um processo seletivo no projeto "Filhos de Buda", mantido pelo templo Zu Lai, um popular espaço religioso em Cotia, na região metropolitana de São Paulo. Com aulas de capoeira, judô, escolinha de futebol e atividades sociais, o projeto atende crianças de comunidades carentes nas margens da rodovia Raposo Tavares.

Além de Vitor, estudaram no projeto o atacante Luan Anderson, destaque do Hang Yuan, e o zagueiro Igor Maurício, do Tainan Steel. Vitor e Luan passaram oito meses internados no templo, saindo apenas aos fins de semana, meditando e participando de cerimônias budistas. Eles também tiveram aulas de inglês, mandarim e de cultura e gastronomia chinesa.

A cada ano, o templo oferece bolsas de estudo para adolescentes brasileiros em faculdades de Taiwan, um país autônomo e capitalista, mas considerado pelo governo comunista como uma província rebelde da China. "Sou cristão e o projeto não te obriga a virar budista", afirma Vitor (nas duas fotos abaixo). "Confesso que no começo foi meio estranho participara das cerimônias budistas, mas nada que interferiu na minha mente. Foram novas experiências e aprendizados. Em termos do que prega, o budismo não foge muito do cristianismo".

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Faculdade internacional e futebol universitário

Ao chegar em Taiwan, os brasileiros foram morar no alojamento da universidade e começaram a estudar gestão em turismo, curso cujas aulas são ministradas em inglês.

Atuando pelo time universitário de futebol, eles logo se destacaram e passaram a pensar na profissionalização. Hoje, são um dos poucos jogadores de futebol no mundo que continuando jogando bola, no meio da pandemia.

"Nunca joguei na base de nenhum time no Brasil", afirma o zagueiro Igor Maurício (nas fotos abaixo), que acaba de se profissionalizar pelo Tainan Steel. "Eu jogava bola, mas o futebol era segundo plano pra mim. Acabei fazendo um trabalho bom na faculdade e surgiu essa oportunidade. Agora levo o esporte mais a sério, como profissão."

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O futebol do futuro pode ter começado em Taiwan

Na 138ª posição do ranking da Fifa, Taiwan nunca foi relevante no cenário mundial, e seu campeonato de oito times nunca frequentou o noticiário esportivo da imprensa internacional. Mesmo internamente, o futebol taiwanês perde em popularidade para o beisebol.

Mas olhar para a "Taiwanese Premier League", a liga profissional local, pode ajudar a antever que tipo de medidas outras ligas podem tomar, caso seus países consigam controlar o espalhamento do vírus. No Brasil, por exemplo, clubes e CBF debatem a volta do futebol, mas estão longe de atingir um consenso.

A liga profissional de Taiwan não havia começado quando as primeiras notícias sobre a gravidade da covid-19 surgiram, mas a liga universitária já caminhava para sua fase final.

Enquanto governo e população tentavam conter o vírus, Luan Anderson (nas fotos abaixo), cuja faculdade havia se classificado pela primeira vez às semifinais, recebia orientações para evitar o contato com adversários antes dos jogos.

Antes das partidas, todos os jogadores e comissão técnica tinham a temperatura medida com termômetros e era obrigatório passar álcool gel na mão em todos os jogos."
Luan Anderson, do Hang Yuan

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Os jogos universitários normalmente não reúnem público numeroso, mas ainda assim a organização limitou a entrada da torcida durante a fase finais, uma atitude notada pelo meia Vitor Alves.

"Só podia entrar quem preenchesse um formulário com uma autorização e quem estivesse sem febre, que era medida na hora. Eles também deixaram um assento de distância entre cada torcedor na arquibancada."

No campeonato profissional, que teve início no começo de abril, os portões foram fechados para o público, mas a liga manteve a medição constante da temperatura de todos os envolvidos. O cumprimento entre times adversários foi abolido e os jogadores foram incentivados a usar álcool gel e lavar as mãos com cuidado no vestiário.

Alberto Buzzola/LightRocket via Getty Images Alberto Buzzola/LightRocket via Getty Images

Como Taiwan controlou a pandemia e virou exemplo para o mundo

Uma combinação de fatores explica o sucesso taiwanês no combate à covid-19. A epidemia da Sars em 2003 obrigou o Estado a criar uma estrutura que permitiu uma resposta rápida à ameaça atual. Ainda em janeiro, a presidente Tsai Ing-wen publicou um protocolo de 124 medidas para bloquear o avanço do vírus na ilha. Nenhuma delas incluía o isolamento da população em casa.

O país passou a limitar voos da China e monitorar todos os passageiros originários da região de Wuhan, epicentro da pandemia. Com o avanço do coronavírus pelo mundo, Taiwan fechou suas fronteiras e aumentou a produção e distribuição interna de máscaras. O costume da população de usá-las com frequência ajudou a diminuir a transmissão.

"Desde o começo, se você pega metrô ou ônibus, você tem que passar por uma câmera que mede seu calor corporal", conta Luan Anderson. "Se a câmera falar que você está com febre, você não pode entrar."

"E sempre que você desce de um ônibus, um funcionário do governo pega seu número de celular. Assim eles podem saber exatamente quem estava ali, caso identifiquem alguém com febre ou com o vírus."

Tive sorte de estar num dos países mais seguros pra se estar nesse momento. E sou um dos poucos jogadores de futebol no mundo que está podendo jogar. Me sinto honrado e privilegiado. Só fico preocupado com a minha família porque a situação do Brasil não está tranquila

Igor Maurício

Se não usar máscara você é multado. Em todo lugar medem sua temperatura. Na escola, na faculdade, em qualquer portaria eles têm esse controle. No campeonato, os times têm que ficar passando álcool na mão em todos os jogos. E medir a temperatura sempre

Luan Anderson

Não paramos de treinar, de estudar, de trabalhar, mas os cuidados foram redobrados. A vida seguiu, não foi necessário entrar em quarentena, só ficamos em alerta porque em algumas partes o vírus estava mais perigoso. O governo tomou decisões rápido e a população respeitou o que governo disse

Vitor Alves

Walid Berrazeg/Anadolu Agency via Getty Images Walid Berrazeg/Anadolu Agency via Getty Images

População se isola voluntariamente e ajuda a deter vírus

Mesmo sem uma ordem do governo, a disciplinada população do país resolveu fazer uma quarentena voluntária, evitando aglomerações que pudessem ajudar na propagação do vírus. As populares feiras noturnas passaram a ficar desertas e reuniões sociais, cada vez mais raras.

O controle de temperatura se espalhou para outros lugares, como a entrada das universidades e centro comerciais, e o uso de máscara passou a ser obrigatório no transporte público.

O governo também ofereceu uma ajuda equivalente a 30 dólares diários (R$ 164) para contaminados, além de oferecer alimentos e livros para incentivá-los a ficar em quarentena.

Com uma política de testagem capaz de identificar cada pessoa contaminada e rastrear boa parte de seus contatos recentes, o governo de Taiwan anunciou no dia 14 de abril seu primeiro dia sem novos contágios, situação que vem se tornando comum desde então. O país então começou a oferecer ajuda à comunidade internacional e doou equipamentos de proteção para a União Europeia.

A ação faz parte de uma estratégia do governo de ser mais ouvido e reconhecido em fóruns internacionais, como a própria Organização Mundial da Saúde, que não permite participação de Taiwan por pressão da China.

Ao contrário de governos autoritários que mantiveram os esportes minimizando a ameaça do vírus, Taiwan agora colhe os frutos de uma política mais eficiente.

Gene Wang/Getty Images Gene Wang/Getty Images

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