Buzina para o medalhista

Caio Bonfim conquista prata inédita na marcha atlética, construída com legado familiar e impulso de motoristas

Demétrio Vechioli Do UOL, em Paris Alexandre Loureiro/COB

O capítulo em que Caio Sena Bonfim conquista uma medalha de prata na marcha atlética nos Jogos Olímpicos, escrito na manhã desta quinta-feira (1) em Paris, está no meio da história dos Sena Bonfim.

O começo aconteceu em Sobradinho, onde João Sena iniciou a carreira de professor de educação física. "Onde eu for professor, vai ter atletismo", disse no começo dos anos 1980. Casou-se com uma das muitas atletas que revelou, Gianetti Sena, e a ajudou a obter o índice olímpico.

Quando ela encerrou a carreira, Caio, o filho deles, chegava à sua primeira Olimpíada. Foram quatro tentativas até a tão sonhada medalha olímpica, de prata. Nunca um atleta brasileiro chegou lá depois de tantas tentativas frustradas. Resiliência.

Mas ainda há muitos outros capítulos a serem escritos. Caio derrubou o preconceito contra o esporte no Brasil e, nesta quinta, deu um passo importante para o país conquistar respeito dentro da comunidade da marcha, única prova do atletismo decidida por árbitros.

"A gente só não ganha medalha se os árbitros não deixarem", disse Gianetti antes da Olimpíada. Hoje, nem se eles quisessem evitar. Foi o quinto pódio do Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris.

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Nós somos medalhistas olímpicos! Poxa, é um sonho. Sou extensão da carreira dela, cara. Meu pai começou a dar aula numa escola, e falou, na escola que eu der, vai ter atletismo. Nessa turma, ela tirou dois atletas olímpicos, Carmen de Oliveira e Solange de Souza. A Carmen foi a primeira brasileira a ganhar na São Silvestre. Depois, veio a minha mãe. Eles se apaixonaram, casaram. Então, sou extensão desse trabalho de um cara lá, em 1980. E ele montou um treino, que eu acredito. É treino dele. Caio Bonfim, sobre o trabalho dos pais na carreira dele

Sven Hoppe/Getty Sven Hoppe/Getty

'Decidi ser xingado sem ter problema'

Conquistar a medalha de prata indo e voltando de um percurso sob a Torre Eiffel foi a parte mais fácil do processo até chegar ao ápice da carreira de qualquer atleta, o pódio olímpico.

Muito mais difícil foi todo o resto. "É vencer o preconceito, é chegar nessas provas da América do Sul e: 'Quem é esse cara? Brasil? Brasil não tem marchador'. Eu tive que conquistar, marchar. Então, rejeição, desacreditado, injustiçado, ouvi muita coisa", disse Caio na zona mista, com lágrimas nos olhos.

Antes de se apaixonar pela marcha, Caio tentou o que a maioria dos garotos brasileiros tenta: ser jogador de futebol. Mesmo destro, ele desenvolveu bem o pé canhoto e jogava de lateral-esquerdo. Chegou a entrar nas categorias de base do Brasiliense, mas aos 16 anos tomou o caminho que estava na família.

E olha que o preconceito externo estava presente desde o início, representado na forma com a qual era tratado pelos motoristas que costumam passar pelos atletas durante os treinos na rua.

"Quando meu pai me chamou para marchar pela primeira vez, eu fui muito xingado naquele dia. Não é me fazendo de vítima, não, mas minha mãe era marchadora, oito vezes campeã nacional. E eu só comecei com 16 anos. Por quê? Porque era muito difícil ser marchador. No dia em que eu cheguei em casa e falei: 'Ei, eu quero ser marchador'. Na verdade, eu tava dizendo pra eles: 'Hoje eu decidi ser xingado sem ter problema'."

Nos primeiros anos, na escola, até eu ir para uma Olimpíada, o atleta era vagabundo. Eles sempre perguntavam: 'E aí, mas você vive de quê? Trabalha de quê?' E essa medalha é isso, cara. Esse moleque que está marchando lá numa rua de barro em qualquer lugar aí do Brasil. Acredita, pô. Acredita, olha onde nós estamos.

Caio Bonfim, medalhista de prata na marcha atlética em Paris 2024

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A buzina mudou

Um trem que passa por baixo do mar conecta as duas capitais europeias em menos de três horas. Mas, entre Londres e Paris, Caio viveu muita coisa.

A estreia olímpica foi novinho, aos 21 anos, para enfim colocar os Sena Bonfim nas Olimpíadas. "Minha mãe fez índice para Atlanta-1996, mas, por causa de umas mudanças de critério em cima da hora, ela não foi. Em Londres, eu falei: 'Quem disse que você não é atleta olímpica?"

No Rio, a medalha já estava no horizonte, e não veio por muito pouco. Caio foi quarto, mas passou a ser conhecido pelo Brasil e, principalmente, em seu local de treinamento: as ruas de Sobradinho.

"Eu tenho muito orgulho do meu quarto lugar, abriu muitas portas para mim. Na minha cidade, eu brinco que antes eu era sempre xingado quando eu ia marchar. Depois da Olimpíada do Rio, o som da buzina mudou. "Pã, pã, vamos campeão". Os caras até exigiam. "Ô, ô, tá flutuando, cuidado." Mas eu queria mudar isso."

Em Tóquio, já bem mais experiente, a frustração de não conseguir entregar o que planejava. Uma pessoa com quem ele teve contato testou positivo para Covid e Caio foi colocado em quarentena. Só foi liberado a poucos minutos da prova, e não conseguiu performar.

Em Paris, o Caio que vai ao pódio é um pouco daquelas três versões. "Eu falava: Eu quero ter a ousadia do Rio-2016, a experiência de Tóquio e o primeiro amor de Londres". E a gente conseguiu aqui. Então eu tô muito, muito contente."

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A prova da prata

A prata foi conquistada com uma prova absolutamente técnica de Caio, que fez um intenso trabalho de bioquímica nos últimos anos. Descobriu que tem energia extra para gastar no começo da prova e que isso faz bem ao seu corpo.

Resolveu arriscar. Puxou um ritmo de 3'59'' para percorrer um quilômetro, e, surpresa, ninguém foi com ele.

"Aí a arbitragem já fica doida, porque ela não tem relógio, né?", disse Caio após a prova. Os árbitros entenderam que ele estava "flutuando" (tirando os dois pés do chão ao mesmo tempo, um movimento proibido na marcha) e deram ao brasileiro o primeiro cartão. Foi um recado: volta lá com todo mundo.

Caio foi para trás do pelotão, se escondeu, e passou a fazer testes. No 10º quilômetro, foi para a liderança e acelerou o ritmo. Mais de 20 aceleraram junto e o acompanharam. No 14º, baixou mais um pouco o ritmo, e nove o seguiram.

Alexandre Loureiro/COB Alexandre Loureiro/COB

Coragem no final

A prova começou a ser definida no 17º quilômetro. Caio novamente foi quem arriscou, e desta vez só três rivais conseguiram acompanhá-lo. Um deles o italiano Massimo Stano, campeão em Tóquio, que ficou para trás.

Caio de novo se preocupou com os árbitros. A Itália é uma das principais escolas da marcha e uma terceira punição ao brasileiro, que já tinha dois cartões, a colocaria no pódio.

A estratégia então passou a ser deixar o equatoriano Braian Pintado e ficar perto do espanhol Alvaro Martin. Caio até fazia sinais para o europeu vir junto dele.

"A arbitragem vai percebendo que você não está querendo fazer firula. Você está segurando a técnica e está disputando", explicou o brasileiro. Prata ou bronze, não faria muita diferença, importante era não ser punido e dar adeus à medalha.

Ele só teve coragem para o sprint final nos últimos 100 metros, quando deixou Martin para trás. "Quando eu olhei pro quadro, falta 100 metros, não tem mais árbitro. É só o árbitro chefe. E eu não estava dando nenhum sprint. Aí, eu falei: 'Agora eu vou ser prata, também. Vou levar essa prata pra casa." Conseguiu.

Em Paris, ele tem nova chance de medalha no revezamento, em que ele e Viviane Lyra percorrerão, cada um, pouco mais de 20km. A prova ocorre na quarta-feira (7).

A família da medalha

  • João Sena

    Tudo começou com ele, que apostou em ensinar atletismo no Distrito Federal, de onde Joaquim Cruz havia saído para conquistar o mundo. Da sua primeira turma de alunos de um colégio em Sobradinho saíram duas atletas olímpicas, entre elas Carmem de Oliveira, primeira brasileira a vencer a São Silvestre e até hoje detentora de diversos recordes nacionais. Foi João quem iniciou Caio no atletismo.

    Imagem: Reprodução
  • Gianetti Sena

    Treinada por João, que depois viria a se tornar seu marido, foi a melhor marchadora brasileira de sua geração. Chegou a atingir o índice para Atlanta-1996, mas acabou ficando sem a vaga. Disputou Copas do Mundo e rodou o circuito internacional até 2011, quando o filho Caio já estava entre os melhores do mundo no sub-20.

    Imagem: Reprodução
  • Caio Bonfim

    Independente da medalha em Paris, já era o maior marchador da história do país. Tem duas medalhas em Mundiais, ambas de prata, em 2017 e 2022, além de cinco top8. Foi bronze no Pan de 2015, e prata em 2019 e 2023. Desde 2012, ganhou todos os campeonatos nacionais que disputou.

    Imagem: Abelardo Mendes Jr/Rede do Esporte

O que é mais difícil ser um atleta de marcha atlética não é nenhum apoio financeiro. É moral, pô! Quem é o pai que pega o menininho no colo e fala: 'Eita, tá aqui o meu novo marchador'?. A gente não tem uma cultura esportiva no Brasil de que, caramba, o esporte que ele quiser ele vai ter apoio e tal. Minha família sempre me apoiou. Isso foi fundamental.

Caio Bonfim, medalhista de prata na marcha atlética em Paris 2024

Os medalhistas brasileiros

  • Larissa Pimenta (bronze)

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    Imagem: Wander Roberto/COB
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  • Willian Lima (prata)

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    Tchau, Fadinha. Oi, Rayssa: Três anos depois da prata em Tóquio, brasileira volta ao pódio em Paris e consolida rito de passagem.

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  • Caio Bonfim (prata)

    Buzina para o medalhista: Caio conquista prata inédita na marcha atlética, construída com legado familiar e impulso de motoristas.

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    Netflix e Ouro: Bia conquista primeiro ouro do Brasil em Paris após destruir favoritas e ver TV.

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  • Rebeca Andrade (prata)

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    Imagem: Miriam Jeske/COB
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    Imagem: Elsa/Getty Images
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    Imagem: William Lucas/COB
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