A nossa cara

Calendário cheio, lesões e covid-19 enchem ligas europeias de problemas bem brasileiros

Arthur Sandes Do UOL, em São Paulo Matt McNulty - Manchester City/Manchester City FC via Getty Images

Por todo lado se diz que 2020 é o ano do incomum, das coisas fora do lugar, como se o universo estivesse alinhado e pronto para nos surpreender, nos desapontar —ou ambos. Pois este festival mundial do "por essa eu não esperava" está aprontando das suas também no futebol europeu, que por alguns ângulos —assim, com alguma boa vontade— chega a lembrar nosso bom e velho Brasileirão.

Por lá a pandemia do coronavírus encurtou a pré-temporada e sobrecarregou o calendário, o que direta ou indiretamente fez o número de lesões crescer. Coincidência ou não, as cinco principais ligas europeias somam resultados bem inesperados e classificações estranhas para quem acompanhou semanalmente a progressão dessas tabelas nas últimas décadas. O vírus mudou tudo. E o "novo normal" do futebol deles parece um pouco com o nosso.

Não é de agora que agenda cheia, muitos desfalques e resultados inesperados são três dos pilares de nosso Brasileirão. Para justificar alguns trabalhos de conteúdo duvidoso aplicado em campos nacionais, foram vários os técnicos apontando o dedo nessa direção. Por aqui nos acostumamos à pré-temporada curta, depois dez ou quinze desfalques em um único jogo e no meio disso tudo vários placares surpreendentes. Para os europeus, no entanto, tudo isso soa como novidade bem desagradável.

Por lá, profissionais como Pep Guardiola e Juergen Klopp estão abismados com um aumento de 42% da ocorrência de lesões musculares e as dificuldades de manter um elevado nível de desempenho mesmo para os elencos mais caros e prestigiados. Para constar: o Manchester City, de Guardiola, ocupa hoje a 11ª posição do Inglês. O técnico espanhol lamenta:

O problema é que os jogadores perdem a alegria de jogar futebol. Antes, era legal jogar uma ou duas vezes por semana, com torcedores. Agora é uma partida a cada três dias. Nós viajamos e jogamos."

Só a covid-19 seria novidade dos dois lados do Atlântico, mas também aí o Velho Continente vai aos poucos repetindo nossos passos. No Brasileirão o coronavírus é tão protagonista que a segunda onda da pandemia se formou primeiro no campeonato e só depois, agora, na sociedade; mas na Liga dos Campeões também já teve time viajando com 17 jogadores por causa de um surto.

Nesta confusão, os resultados das ligas europeias ficaram menos previsíveis —uma característica que sempre se exaltou no Brasileirão. A eneacampeã Juventus não é líder do Italiano; Barcelona e Real Madrid estão irreconhecíveis no Espanhol; e, se o Liverpool, de Klopp, parece estar sobrevivendo, também já tomou um 7 a 2 para alemão nenhum botar defeito. Bem-vindo ao futebol europeu, 2020.

Se continuarmos jogando na quarta e depois no sábado às 12:30, não tenho certeza se terminaremos a temporada com 11 jogadores."
Juergen Klopp, técnico do Liverpool

Matt McNulty - Manchester City/Manchester City FC via Getty Images
Divulgação/Tottenham Hotspur FC

Menos tempo e mais jogos

O calendário apertado tem sido alvo de muita reclamação por parte de jogadores e treinadores europeus. Apenas um mês separou a última temporada da atual, o que praticamente extinguiu o período de férias dos atletas e reduziu a pré-temporada. Coincidência ou não, o número de contusões aumentou (veja mais abaixo).

Uma das causas pode ser a redução do tempo de preparo e a fadiga: normalmente os clubes europeus têm cerca de 90 dias de pausa entre o término de uma campanha e o início da outra. Neste ano, após a pandemia atrasar a temporada passada, o período foi cortado para cerca de 30 dias —e menos ainda para quem disputou as fases finais de Liga dos Campeões ou Liga Europa.

Como consequência, a agenda ficou mais cheia. O UOL Esporte fez as contas: os seis maiores clubes da Inglaterra combinam para 115 partidas disputadas nas 12 semanas que já passaram nesta temporada, um aumento de 15% em relação ao mesmo período da campanha passada (100). O líder Tottenham, por exemplo, disputa neste final de semana o 20º jogo em 84 dias.

A carga maior de jogos cobra seu preço. No Campeonato Inglês, por exemplo, um levantamento do site Premier Injuries aponta que o número de lesões musculares aumentou 42% em relação à temporada passada —considerando as nove rodadas iniciais.

MB Media/Getty Images

Epidemia de desfalques

Os campeonatos europeus têm sido assolados por desfalques, seja por lesões ou por surtos de contaminação pelo novo coronavírus —mais ou menos como o Brasileirão. Somadas, as cinco principais ligas do Velho Continente acumulam 364 desfalques até esta rodada.

Atualmente há 87 jogadores fora de combate no Campeonato Inglês, em seguida aparecem o Alemão (85 desfalques), o Espanhol (78), o Francês (61) e o Italiano (53). Das 98 equipes espalhadas pelas cinco principais ligas, somente sete estão com o departamento médico vazio neste final de semana. Em uma temporada atípica, quatro das cinco ligas estão permitindo cinco substituições por jogo —a inglesa não.

A lista de astros lesionados é grande e está em constante fluxo, já tendo incluído o talento —e os grandes salários de— Piqué (Barcelona); Alphonso Davies e Kimmich (Bayern); Van Dijk e Thiago Alcântara (Liverpool); Sergio Agüero (Manchester City); Pogba (Manchester United); Ibrahimovic (Milan, foto); Bernat e Draxler (PSG); Sergio Ramos e Hazard (Real Madrid) e muitos outros.

Michael Regan/Getty Images

Os prejuízos esportivos da pandemia

Aston Villa e Newcastle jogariam hoje (4) pelo Campeonato Inglês, mas a partida teve que ser adiada por causa de um surto de coronavírus no time visitante. Quatro jogadores testaram positivo no último final de semana, e a equipe está em isolamento desde então. O adiamento é uma novidade da Football Association (a federação local), que havia prometido em setembro só aceitar remarcar partidas em que o time contaminado tivesse menos de 14 atletas à disposição.

Este não é o primeiro surto de coronavírus desta temporada na Inglaterra. E as medidas diferentes tomadas a cada caso denunciam o prejuízo esportivo de manter o futebol profissional em meio a pandemia —igualzinho no Brasil. Na Copa da Liga Inglesa, na qual os bilionários clubes da elite se misturam à realidade das divisões inferiores, o Tottenham venceu um jogo por W. O. porque o adversário Leyton Orient teve surto de contaminação; já o West Ham foi liberado para entrar em campo mesmo após dois de seus atletas testarem positivo.

Casos do tipo têm acontecido não só na Inglaterra, mas em todos os países das grandes ligas europeias, o que desfalca equipes e influencia, direta ou indiretamente, nos placares da rodada. Neste sentido, o asterisco desta edição do Campeonato Espanhol ou do Italiano é idêntico a do Brasileirão, em que o Palmeiras já teve 18 desfalques por coronavírus em uma rodada, o Flamengo teve 16 em outra, e assim por diante.

Nem a Liga dos Campeões está livre dos prejuízos esportivos da pandemia. Neste mês o Dynamo de Kiev, por exemplo, enfrentou o Barcelona sem poder contar com nove infectados; enquanto o Ajax viajou para enfrentar o Midtjylland com apenas 17 jogadores, porque 11 atletas do elenco tinham coronavírus. Ainda em agosto, um time do Kosovo (o Drita) perdeu jogo da fase preliminar por W. O. porque dois atletas foram diagnosticados, o que obrigou o isolamento de todo o elenco para atender o protocolo da Suíça, onde a partida aconteceria.

Stanislav Vedmid/Soccrates/Getty Images Stanislav Vedmid/Soccrates/Getty Images

Jogadores e técnicos se queixam

Ninguém ouve os jogadores, então não estou surpreso [com os resultados atípicos]. Tivemos apenas sete dias de pré-temporada, eu joguei pela minha seleção após um único treino... Então, o que as pessoas estão esperando de nós? Se me sinto exausto? Sim, às vezes sim. É assim para todo o mundo."

Kevin De Bruyne, meia do Manchester City

A invenção dessas novas competições deixa claro que somos apenas marionetes da Fifa e da Uefa. Criam novos torneios, como a Liga das Nações ou a expansão do Mundial de Clubes, para aumentar o lucro. E fazendo isso estão simplesmente forçando os jogadores a novos limites físicos."

Toni Kroos, Meia do Real Madrid

Os jogadores estão no limite de sua carga de trabalho. Nunca tivemos uma temporada assim, e espero não ter de novo. Nos treinos, alguns exercícios são simplesmente impossíveis de fazer, porque depois dos jogos temos a recuperação, um pouco de tática e aí temos que jogar de novo."

Manuel Neuer, Goleiro do Bayern de Munique

Só penso na saúde dos jogadores, nada mais. Temos tido tantos jogos que eles não param nunca. Não falo só de meus jogadores, porque muitos times vivem a mesma coisa. Esta é minha opinião, mas os responsáveis seguem fazendo calendários assim... Estou preocupado, sim, com a frequência de jogos."

Zinedine Zidane, Técnico do Real Madrid

As televisões precisam conversar. Se continuarmos jogando na quarta-feira à noite e depois no sábado à tarde, não tenho certeza se terminaremos a temporada com 11 jogadores. Os contratos [de TV] não foram feitos para uma temporada com covid-19. Tudo mudou, menos estes contratos."

Jurgen Klopp, Técnico do Liverpool

Juan Manuel Serrano Arce/Getty Images

É ano de zebra?

O Campeonato Espanhol está diferente. Após anos de polarização entre Barcelona e Real Madrid, a liga desta vez começa bem mais equilibrada e imprevisível. Os dois maiores campeões têm jogos a menos, é verdade, mas a largada tímida, de futebol sem graça e cheio de problemas, dá moral para os coadjuvantes; e nesta brecha crescem a líder Real Sociedad, o Atlético de Madri e o Villarreal —os atuais três primeiros.

Por muito tempo a liga espanhola foi marcada pelas arrancadas, de Barça ou Real, que então precisavam administrar suas vantagens até o final para levantar mais um título sobre o rival. Nesta edição porém, cada um deles já perdeu três vezes —o número máximo de derrotas dos campeões das últimas quatro edições. Comparando este início com o da temporada passada, a pontuação dos merengues caiu quatro pontos e a dos catalães, cinco.

Na Inglaterra não é assim tão chocante que Tottenham e Liverpool dividam a liderança, mas não se engane: a Premier League está de pernas para o ar. O Manchester United é apenas o nono colocado; o City, de Guardiola, aparece ainda mais atrás, em 11º; e o Arsenal ocupa o 14º lugar, mais perto da zona de rebaixamento do que da ponta de cima da tabela.

Nicolò Campo/LightRocket via Getty Images

Hegemonia em xeque

A Juventus, de Cristiano Ronaldo e cia., vive situação pouco usual no Campeonato Italiano, tendo que olhar para cima na classificação. É verdade que a Juve ainda está invicta após nove rodadas, mas o começo avassalador do Milan sugere um pouco mais de emoção do que nas últimas edições —o líder rubro-negro tem seis pontos de vantagem para a atual eneacampeã.

Parece insulto tratar um clube do tamanho do Milan como azarão, mas o domínio recente da Juventus foi tão grande que chega a ser surpreendente vê-la atualmente no quarto lugar —atrás de Inter de Milão e Sassuolo, diga-se. A grande esperança milanista é Zlatan Ibrahimovic, que aos 39 anos parece tão jovem quanto sempre. Ele fez dez gols nas seis rodadas que disputou, mas a conta foi interrompida por uma lesão muscular na coxa, e ele deve demorar mais duas semanas para voltar a jogar.

Na França o Paris Saint-Germain lidera quase que por força do hábito, mas quase nada lembra o domínio dos anos anteriores. Em 12 rodadas, o time de Neymar já perdeu três vezes, o mesmo número de derrotas sofridas em 27 partidas da edição passada do campeonato —que ficou incompleta por causa da covid-19. Nesta edição, a diferença do líder para o quinto colocado está em dois pontos.

Na Alemanha o Bayern de Munique está bem, obrigado, mas não passa incólume pelas surpresas da temporada europeia. Tudo bem que o time só perdeu uma vez na temporada (a única derrota em quase 11 meses), mas esta única vez foi uma goleada por 4 a 1 para o Hoffenheim, há pouco mais de um mês.

Goleadas fora de lugar

O Bayern de Munique não foi o único clube grande a passar apuros e protagonizar resultados... inesperados. O Real Madrid também tomou um 4 a 1, do Valencia; o Manchester United tomou seis do Tottenham; e o grande recordista por enquanto é o badalado Liverpool, que apanhou de sete para o Aston Villa no começo da temporada.

Veja abaixo a lista de goleadas inesperadas:

Champions
21/outubro, Bayern 4 x 0 Atletico Madrid

Campeonato Alemão
27/setembro, Hoffenhein 4 x 1 Bayer

Campeonato Inglês
4/outubro, Manchester United 1 x 6 Tottenham
4/outubro, Aston Villa 7 x 2 Liverpool

Campeonato Italiano
17/outubro, Napoli 4 x 1 Atalanta

Campeonato Francês
25/outubro, Lyon 4 x 1 Mônaco

Campeonato espanhol
8/novembro, Valencia 4 x 1 Real Madrid

+ Especiais

Arquivo pessoal

Quem é a jogadora que protestou contra Maradona: "faria tudo de novo"

Ler mais
Gustavo Aleixo/Cruzeiro

Cruzeiro: presidente fala em prisão para ex-diretoria "servir de exemplo"

Ler mais
Thiago Ribeiro/AGIF

Surto e recorde: rodada do Brasileirão tem 60 desfalques por Covid-19

Ler mais
Domínio público

Futebol brasileiro foi moldado em racismo estrutural, que segue até hoje

Ler mais
Topo