Um simples vencedor

Primeiro no mundo a vencer as cinco grandes ligas da Europa, Ancelotti decolou após reunião em que foi xingado

Bruno Madrid e Marcello De Vico Do UOL, em São Paulo Getty Images
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Carlo Ancelotti era técnico do Parma no final de 1996 quando o time despencou para o 14º lugar na tabela da Série A da Itália. Em um campeonato de 18 clubes, era a última posição antes da zona de rebaixamento. Naquela época, o Parma era turbinado pelo dinheiro da Parmalat e o elenco tinha Buffon, Cannavaro, Thuran, Crespo e Chiesa, todos jovens que viriam a se tornar estrelas do futebol italiano. Ser o primeiro fora da degola não era suficiente.

O treinador, então, chamou seu time para uma reunião. Quem participou conta que Ancelotti foi ofendido e teve seu trabalho, suas decisões e seu conhecimento sobre o futebol atacados. "Foi uma reunião muito pesada, em que foram ditas palavras ofensivas para ele, contra ele", conta Zé Maria, lateral direito revelado pela Portuguesa que tinha chegado ao clube naquela temporada.

A resposta do ex-volante que estava apenas em sua segunda experiência como treinador, surpreendeu o vestiário: "Vocês estão certos, eu preciso da ajuda de vocês para sair dessa situação", teria dito Ancelotti. Podem não ter sido exatamente essas palavras, mas o espírito do que disse naquele dia marcou o elenco. E ele levou o Parma ao vice-campeonato italiano naquela temporada, a melhor classificação da história do time.

Ali ele ganhou o grupo. Conseguiu corrigir os erros que tinha cometido até então e nós chegamos a dois pontos da Juventus, foi uma coisa muito boa. A educação que ele demonstrou, o respeito que teve pela opinião dos jogadores, mesmo aqueles que estavam contra ele... ele encontrou uma saída daquela situação."

Zé Maria, lateral do Parma-1996

Ele falou: 'Se o resultado não está acontecendo, e eu entendo que a maior parte da culpa é minha, vocês têm que me ajudar nisso'. Demonstrou humildade sem perder a liderança, porque não chegou e falou: 'Vai lá e faz do jeito que vocês quiserem'. Não. Pediu a ajuda do grupo, mas nos momentos importantes, assumiu a bronca."

Adaílton, atacante do Parma-1996

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Da fazenda

Ancelotti é, também, Carletto, um filho de fazendeiros nascido em 1959 na comuna de Reggiolo, conhecida pela produção de queijo. A atividade, para ele, tem muito a ver com o futebol: "Pode parecer estranho, mas tem muitas coisas em comum com o futebol. O fazendeiro ordenha a vaca, faz queijo com o leite, depois tem que esperar um tempo até vender e, só no final, é pago pelo seu ano de trabalho. Calma, paciência, foco e planejamento são necessários também no futebol", disse o treinador em entrevista concedida em 2010 ao jornal La Repubblica.

Calmo, paciente, focado e planejado, o então garoto Carlo iniciou sua trajetória com a bola ainda adolescente, quando fez parte do time da pequena Reggiolo nos anos 70. Ao se destacar já como meio-campista, ele deixou as fazendas e viajou até Parma, a cerca de 50 km, para assinar o seu primeiro contrato profissional. Na época, tinha de 16 para 17 anos.

Em 1979, aos 20, deu o grande salto de sua carreira como jogador: destaque do acesso do Parma à Série B, foi contratado pela Roma, fazendo parte do elenco que se sagraria campeão da Copa Itália daquela temporada. Meio-campista marcador e de bom passe, foi convocado para servir a seleção nacional dois anos depois. Era a consolidação do melhor jogador que nasceu em Reggiolo.

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Susto e superação

O meio-campista, já perto do auge da carreira, sofreu uma lesão que o tirou do icônico elenco italiano campeão da Copa do Mundo de 1982, em campanha que teve como destaque a histórica virada sobre o Brasil de Cerezo, Sócrates, Zico e até mesmo Falcão, seu parceiro de clube na Roma.

"Ele sempre foi muito boa gente e trabalhador no que fazia. Teve lesões graves, mas era um cara muito forte fisicamente. Tinha muita disposição, e sempre foi muito disciplinado, treinava muito, gostava daquilo", relembrou Falcão.

Diante da frustração por não participar do título, Ancelotti se lembrou da rotina dos pais para dar a volta por cima: calma, paciência, foco e planejamento. Deu certo: nas Copas do Mundo de 1986 e 1990, estava no elenco da Azzurra. Foi assim, veterano de duas Copas e consolidado como um dos maiores meio-campistas italianos de sua geração, que ele recebeu o então jovem Élber, brasileiro que chegou a Milão vindo do Londrina, time do interior do Paraná.

Quando eu cheguei ao Milan, em 1991, já foi um sonho. Saí de Londrina direto para um grande clube. Encontrei Baresi, Maldini, Costacurta, os holandeses Van Basten, Gullit, Rijkaard... e tinha o Carlo Ancelotti. Pô, já dava pra ver que o Carletto era fera, um cara que tinha o respeito dentro do elenco. Ele, Baresi e Maldini eram os cabeças do grupo. Tudo o que eles faziam, os outros olhavam."

Élber, ex-colega de clube de Ancelotti

O fim da carreira de Ancelotti como atleta ocorreu em 1992, aos 33 anos. Já com o plano de virar treinador.

Elisenda Roig/Bongarts/Getty Images
Stanic nos tempos de Parma, quando trabalhou com Ancelotti

"Vai pra Croácia. Fica uns dias lá"

Em mais de 20 anos como treinador, Ancelotti trabalhou com anônimos e estrelas do futebol. Por suas mãos passaram Kaká, Seedorf, Lampard, Drogba, Cristiano Ronaldo e Lewandowski. Como lidar com diferentes tipos de jogadores sem perder a admiração e o respeito?

A experiência daquele Parma de 1996 sempre voltou para o treinador, que tornou a gestão compartilhada um de seus guias. A reportagem ouviu histórias em que Ancelotti pergunta a um comandado sobre sua opinião em relação às táticas do time. E até a descoberta de problemas familiares até então ocultos de um de seus atletas.

"Um dia, o Mario Stanic não se apresentou para treinar. Ninguém entendeu. Ancelotti reuniu o grupo e disse: 'Stanic está liberado porque tem que resolver problemas familiares'. Depois, conversando com o Stanic, vimos que não foi ele que pediu a liberação, mas o Ancelotti que descobriu que ele estava passando por problemas. Ancelotti disse: 'vai para a Croácia, fica uns dias e volta quando tiver 100% resolvido. Você é importante para nós'. Isso é incrível", conta o ex-atacante Adailton.

Esse comportamento fez Ancelotti ganhar a fama de "paizão" ao longo do tempo. "Ele sabe o momento em que tem que tratar os jogadores como amigos, como filhos, mas sem perder nunca o respeito. Às vezes, quando você fala que é amigo, o jogador perde o respeito pelo treinador. Ele deixa isso bem claro: 'sou amigo e sou pai quando tem que ser, mas sou o treinador em todos os momentos'. Isso acaba criando um ambiente muito bom", completa o ex-lateral Zé Maria.

Ele tem o lado brincalhão. É um cara simples. A hierarquia tem que acontecer, mas é um cara que conversa com os jogadores, que dá condições para o jogador falar. E escala os melhores, independentemente de nomes. Ele não tem sucesso à toa. Chegou aonde chegou porque é muito bom. É um cara maravilhoso, que merece, que sabe levar a boleirada, que não tenta ser mais importante que os jogadores. Os caras adoram ele."

Falcão, ex-colega de clube de Ancelotti

Getty Images Getty Images

Carlo é um cara que é amigo de todo mundo. É um treinador que tem, dentro do seu instinto, a ideia de acumular títulos. É vitorioso e um cara muito sério no trabalho, mas quando tem que ser divertido com todos, ele dá a liberdade e você pode brincar com ele. Ele tem, dentro do vestiário, um poder de fazer com que todos joguem pelo trabalho que está sendo feito. E é por este trabalho que ele se tornou o grande treinador que é."

Amoroso, ex-comandado de Ancelotti no Milan

Por que Ancelotti faz tanto sucesso?

É um cara que, quando tem o carinho dos atletas, vencerá onde estiver, tudo por ser um técnico que jogou com craques e por ter sido um grande atleta. Taticamente, ele tem, na sua essência, saber marcar e saber jogar. Se seu clube tiver os dois, você será campeão. Ele tem as duas coisas em seus times."

Amoroso, ex-comandado de Ancelotti no Milan

É um cara que deixa os jogadores à vontade, não é aquele treinador que fica gritando no campo toda hora para o atleta correr mais. Ele deixa com o jogador, que tem que ser profissional o suficiente e saber se deu tudo para a equipe ou não. Os jogadores têm muito respeito por ele, isso é nítido."

Élber, ex-colega de clube de Ancelotti

Acho que mais do que o discurso momentâneo que ele tem, ele faz você acreditar que você é um jogador de nível alto que pode sempre reverter os resultados. Que os resultados dependem do que você faz dentro do campo e que, a qualquer momento, as coisas vão acontecer se você continuar acreditando."

Adaílton, ex-comandado de Ancelotti no Parma

O primeiro técnico da história a vencer as cinco grandes ligas do mundo

  • Champions League (3)
  • Mundial de Clubes (2)
  • Campeonato Italiano (1)
  • Campeonato Inglês (1)
  • Campeonato Francês (1)
  • Campeonato Alemão (1)
  • Campeonato Espanhol (1)
  • Supercopa da Inglaterra (1)
  • Supercopa da Alemanha (2)
  • Supercopa da Itália (1)
  • Supercopa da Espanha (1)
  • Copa da Inglaterra (1)
Essa lista pode aumentar no sábado: Carlo Ancelotti é o técnico do Real Madrid que enfrenta o Liverpool na final da Liga dos Campeões às 16h (de Brasília), em Paris.
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