Carol seguiu os estudos, se formou fisioterapeuta, depois fez pós-graduação, mas não encontrava seu lugar. De dia apresentava-se como um homem afeminado, de perna depilada e sobrancelha feita. De noite, vestia-se com roupas de mulher para ir à balada.

"A representatividade que se via na TV era só de trans hipersensualizadas, prostitutas ou caracterizadas. Roberta Close, Rogéria, (Jorge) Lafond, Lacraia. Eu não me via representada. E eu tinha pavor de qualquer coisa ligada a prostituição, então isso me brecou. Eu queria pôr silicone, mas não queria aquilo, não queria ser marginalizada", explica.

Em busca de emprego, tentava manter um pé no personagem masculino. "Eu era uma figura andrógina, de cabelão grande. Aquilo era eu me enganando, eles me enganando. Eu ia entregar currículo, mas já ia pensando que se arrumasse emprego ia ter que ficar fingindo ser o que não sou", lembra Carol, que não usava esse nome no currículo. Rejeitada pelo mercado, entrou em depressão e foi salva pela mãe quando já estava prestes a se jogar da janela do 10º andar.

Relatos do tipo não são raros. A ONG norte-americana National Gay and Lesbian Task Force calculou que 41% das pessoas trans dos EUA já tentaram suicídio, contra 1,2% da população cis. No Brasil, a expectativa de vida para pessoas trans é de apenas 35 anos. A razão para esses números passa pelo sentimento de não pertencer ao mundo heterocisnormativo (quando se estabelece que norma é a heterossexualidade cisgênero) em que vivemos. "Eu me escondia para que a sociedade me aceitasse, e ela não me aceitava. Então eu decidi que eu tinha que ser eu, e que se dane todo mundo. Foi quando comecei a tomar hormônios", conta.

Caso você esteja pensando em cometer suicídio, procure ajuda especializada como o CVV e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV (https://www.cvv.org.br/) funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

Carol só adotou o nome Carol quando passou a seguir uma página no Facebook que faz curadoria de vagas de trabalho voltadas a pessoas trans, a TransEmpregos, iniciativa que reúne currículos de pessoas trans e facilita sua inclusão no mercado de trabalho.

"Refiz meu currículo, retifiquei meu nome, e até consegui um emprego". A vaga, temporária, em um hospital, não era exatamente para a área em que ela é especializada, mas foi sua estreia, com mais de 32 anos, na profissão para a qual se formara aos 22. Antes, sua carteira só havia sido assinada duas vezes, como profissional de telemarketing. Foram dez anos seguidos de porta na cara.

Durante a pandemia, Carol também se inscreveu para participar do Trans Convida, projeto que permitiu a Duda, do primeiro capítulo de nossa reportagem, conseguir seu primeiro emprego com carteira assinada. O incentivo do curso a fez aumentar o ímpeto na busca por um emprego como fisioterapeuta. Deu certo.

Em uma etapa do processo seletivo para uma vaga na rede de depilação a laser Espaço Laser, a facilitadora apresentou em um slide que a empresa tinha 90% de funcionárias mulheres e que, dessas, uma porcentagem era de mulheres negras. Quando chegou sua vez de se apresentar, Carol quebrou o gelo: "Quem sabe na próxima vez que vocês forem contratar não tenha um slide dizendo que a empresa tem 0,01% de mulheres trans?"

Concorrendo contra outras dezenas de profissionais em busca de uma vaga, Carol foi contratada. "Na entrevista, perguntaram se eu queria me apresentar como mulher trans, se eu queria que eles não dissessem nada, mas eu disse que queria que eles falassem, sim. Quero ter essa representatividade, mostrar que a gente pode ocupar cargos. Não quero ser ofuscada".

Especializada em fisioterapia dermato-funcional, Carolina Cahyan Grejo hoje assina como responsável por toda a equipe de fisioterapia da unidade do Shopping Boulevard Tatuapé.

No vôlei, esporte no qual defendeu Palmeiras e Hebraica nas categorias de base, a estreia de Carol foi em um campeonato em Campinas, no qual o Angels se inscreveu como time feminino. A levantadora, por necessidade, atuou como ponteira. "No primeiro ataque, ouvi alguém falando: 'Pode soltar o braço'. Ela achou que eu tinha atacado fraco de propósito, mas é só o que eu consigo mesmo", diz.

Desde a semana retrasada, está disputando, pela segunda vez na vida, aos 35 anos, um torneio feminino. Joga o 4º Torneio de Verão do Vôlei Dazmeninas. O time é inteiro formado por mulheres cis, exceto ela e outra das meninas trans do Angels, Luana.

"Eu consegui colocar mais uma trans no meu time", conta Carol, entusiasmada com a vitória extra-quadra. "É mais um campeonato que eu estou conseguindo jogar sem pedirem exame nem nada, nem para mim nem para a Luana".

A equipe delas joga na categoria master D. Uma regra não escrita do vôlei separa atletas em níveis. A e B são profissionais. C, amadores muito bons. D e E (e suas subdivisões D2, D3, D4, E2, E3, E4, etc), atletas de fim de semana. No Torneio Dazmeninas, se um time reclama que o outro tem uma jogadora no nível errado, esta é excluída.

"A gente tem jogadoras trans desde 2018 e nunca aconteceu de ser excluída", conta Fátima da Luz, uma das organizadoras. Segundo ela, na primeira vez que uma jogadora trans foi inscrita, houve chiadeira. "Eu era parada no corredor. Mas se a regra é ter o documento feminino e as atletas apresentam o documento feminino, a gente não questiona. O critério é a categoria. Se está na categoria, não tem o que contestar."

"Nosso papel é aceitar que existem as diferenças. Cada vez mais todos estão conquistando seus espaços. A vida delas já é uma luta, e a gente vai atrapalhar mais ainda?", questiona Fátima.

Mas os espaços são conquistados aos poucos. Para participar de um torneio amador da região do Vale do Paraíba, Ohara, personagem de outro capítulo desta reportagem, foi aconselhada a primeiro jogar como líbero. Na sua primeira participação, sem poder atacar, mostrou que seu voleibol não era nenhum bicho de sete cabeças. Nos torneios seguintes, com as rivais já convencidas, atuou na ponta, onde se sente confortável.

Mesmo nos torneios amadores ainda há resistência. A própria Ohara foi barrada em outro, tradicional, do ABC Paulista. Ali, pesou a pressão financeira. Times avisaram que, se a organização a aceitasse, não jogariam. Entre as taxas de inscrição desses times e admitir uma mulher trans, os organizadores optaram pela primeira opção.