“Senti na pele o medo”

Carol Solberg avalia que sua vitória no STJD é o início de debate sobre a postura de atletas na sociedade

Jamil Chade Colunista do UOL, em Genebra, na Suíça Fernando Young

Nada havia sido programado. A jogadora de vôlei de praia Carol Solberg voltava a uma competição depois de meses e, ao obter um bom resultado e subir ao pódio, daria uma entrevista sobre sua conquista. Mas, antes de concluir, suas angústias como cidadã explodiram na frase "Fora, Bolsonaro". O desabafo acabou a tornando mais conhecida do que os seus resultados profissionais.

O que ela viveria nos dias seguintes parecia sair da realidade de uma democracia e de uma sociedade livre. "Senti na pele o medo", afirmou Carol, que é filha de Isabel Salgado, ex-jogadora da seleção brasileira de vôlei.

Sua iniciativa foi denunciada pela procuradoria do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva), abrindo uma polêmica: atletas podem ou não se manifestar politicamente. Em primeira instância, ela foi multada em R$ 10 mil. A punição foi transformada em advertência. Ainda assim, ela optou por recorrer, justamente para defender seus direitos.

Nesta semana, Carol foi absolvida pelo STJD. Em entrevista ao UOL, ela garante que o que vive hoje é apenas o início de um processo maior de debate sobre a liberdade de expressão e sobre o papel do atleta na sociedade. Ainda assim, o fato de não ter sido punida não significa que ela se sente hoje totalmente livre para voltar a se pronunciar.

Fernando Young

Grito espontâneo

Carol afirma que nada do que ocorreu no dia 20 de setembro deste ano foi premeditado. Depois de conquista a medalha de bronze no Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia no circuito de Saquarema, no Rio de Janeiro, ela pegou o microfone das mãos da parceira Talita e gritou "Só para não esquecer, fora, Bolsonaro".

"Eu estava por seis meses quase sem jogar. Foi muito difícil me manter treinando durante a pandemia. De repete, estava disputando uma medalha de bronze e tinha acabo de conquistar o terceiro lugar. Eu estava muito feliz de estar no podia na primeira etapa ao votar a jogar", relembra a jogadora, que usava uniforme com o logo do patrocinador, o Banco do Brasil.

Mas algo maior do que aquela medalha no peito se fazia sentir. "Apesar de toda minha alegria, eu não poderia deixar de pensar em tudo o que está ocorrendo, no Brasil e no mundo, com tanta gente que morreu", disse.

"Eu acredito que muitas mortes poderiam ter sido evitadas se tivessem lidado com a pandemia de outra forma, respeitando a ciência, seguindo as medidas que eram sugeridas pela OMS", avaliou a atleta, lembrando ainda do desprezo com o qual os maiores artistas do Brasil são tratados e como a educação foi abandonada.

Temos um governo que trata as minorias sem qualquer política pública. O nosso presidente faz apologia a torturadores. Juntou tudo. Parecia-me muito estranho eu estar ali feliz, enquanto tantas pessoas estavam sofrendo, com o Pantanal em chamas, a Amazônia com recordes de incêndios. Ao longo de toda a competição, esse sentimento estava muito forte em mim. Na hora em que estava dando a entrevista, me veio um grito totalmente espontâneo de indignação e por tudo o que estamos vivendo.

Carol Solberg

Ricardo Borges/Folhapress

Medo: andava nas ruas com “olhos nas costas

A atleta revela que, após a sua fala, ficou impressionada como o apoio que recebeu e que, ao final do processo, se sentiu mais abraçada que atacada. Mas os primeiros dias foram diferentes.

"O que foi muito estranho foi sentir medo", contou. Carol revela que andava pelas ruas "com os olhos nas costas" e "ligada". "Por esse ser um governo que incita o ódio, por dar aval a essas pessoas falarem absurdos", explicou. "Esse é um governo que apoia que as pessoas estejam armadas e luta por isso. Isso tudo me deu um medo real e me senti exposta", contou.

Se os ataques que sofreu foram virtuais, o impacto em sua rotina foi real. Nos primeiros dias, ela trocou o local de treinamento e passou a usar um clube fechado. A praia foi evitada. "Fiquei preocupada com meus filhos", disse.

Carol conta que, com o passar do tempo, entendeu que não precisava manter essas medidas de cautela e que se sentiu fortalecida com pessoas que passavam por seu treino para dar apoio, além de uma ampla rede de atletas e personalidades da sociedade que declarou que estava ao seu lado.

Se estamos vivendo com esse medo é porque existe alguma coisa muito errada. Por isso foi importante eu me posicionar.

Carol Solberg

Fernando Young Fernando Young

Lei do século passado

Carol Solberg foi denunciada com base em dois artigos do Código Brasileiro de Justiça Desportiva: o 191 (deixar de cumprir o regulamento da competição) e o 258 (assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva não tipificada pelas demais regras do código). Além disso, o regulamento da competição, patrocinada pelo Banco do Brasil, previa o comprometimento do atleta em "não divulgar, através dos meios de comunicação, sua opinião pessoal ou informação que reflita críticas" contra Confederação Brasileira de Vôlei ou parceiros.

Carol Solberg avalia que seu caso revela que as leis do esporte não condizem com a realidade da sociedade, principalmente no que se refere à cidadania e à liberdade de expressão. "Está na hora de mudar. Essas regras precisam ser revistas e atualizadas. O atleta tem um lugar na sociedade muito maior do que tentam limitá-lo, diz.

"Essas regras foram feitas no início do século passado, por pessoas que tinham visões sexistas. Não dá para estarmos vivendo hoje, com tudo que está ocorrendo no mundo, com regras que foram feitas por essas figuras", diz. "Precisamos rever as regras. São outros tempos. Precisamos pensar no papel do atleta na sociedade atual", insiste.

Ricardo Borges/Folhapress

Papel social do atleta

Carol diz acreditar que o atleta tem um papel fundamental na sociedade e vê uma incoerência profunda na forma pela qual o esporte se insere. "Falam tanto que os atletas são exemplos para as crianças e jovens. Mas não podemos nos manifestar?", questiona. "Precisamos decidir: ou não somos exemplo para nada ou temos de ter o direito de falar o que pensamos", cobra.

Para ela, atletas deveriam ser inclusive incentivados a se manifestar sobre questões como meio ambiente, dos direitos humanos, causas antirracistas. "Atletas deveriam ser instigados a ser colocados nesses assuntos. São valores que condizem com a ética esportiva, com o lugar do atleta na sociedade", avalia.

"Tem pessoas que não gostam de se pronunciar politicamente e tudo bem. O que não pode é ter a neutralidade sendo imposta. Como cidadã, temos o direito de dar opinião, ser solidário a causas que acreditamos e mostrar indignação".

Tem pessoas que não gostam de se pronunciar politicamente e tudo bem. O que não pode é ter a neutralidade sendo imposta. Como cidadã, temos o direito de dar opinião, ser solidário a causas que acreditamos e mostrar indignação.

Carol Solberg

Se eu quiser falar só sobre o jogo, vou falar sobre o jogo. Não quer dizer que a cada entrevista vou falar de política. Não me sinto na obrigação de falar. Mas eu quero ter a liberdade para falar quando eu quiser falar

Carol Solberg

Fernando Young

Livre para falar o que quiser?

Carol conta que a forma como o primeiro julgamento no STJD foi realizada foi tão reveladora quanto a punição. "Foi um voto extremamente machista e desrespeitoso", acusa. Segundo ela, seu sentimento foi de ter sido censurada ao escutar que a punição havia sido um "puxão de orelha" e que a decisão tinha como objetivo dar um "susto" na atleta.

"O segundo julgamento mostrou como é importante usar nossa voz para causas que acreditamos", diz. "Espero agora que isso sirva de inspiração para próximas gerações de atletas. Espero que a decisão encoraje atletas a usar nossa voz", afirma.

Carol, porém, não tem ilusões sobre o que ainda pode ocorrer e vê riscos reais de que as regras sejam endurecidas para impedir que casos como o dela voltem às quadras e a palcos do esporte. "Precisamos ficar atentos. As regras podem ser alteradas para pior. Há um lado perigoso, e os atletas terão de estar atentos e unidos para o que pode correr", alerta.

"Foi uma vitória para todos. Mas eu não sinto que eu posso falar sobre o que eu quiser. O que sinto é que, se eu falar, posso causar isso tudo de novo", confessa a atleta que diz estar feliz com o resultado, apesar de admitir que não se trata de uma vitória definitiva. "Isso é o início de um grande debate que temos de mergulhar e refletir, tanto atletas como sociedade", defende Carol.

"O debate é que é importante e joga luz sobre a censura. O tema ter sido levantado é fundamental. Mas essa não é uma história que termina aqui", reconhece.

+ Especiais

Cristiano Andujar/Divulgação

Do sertão para o mundo: Teliana Pereira supera pobreza e vence no tênis

Ler mais
Estadão Conteúdo

Marlene Bento: a técnica que descobriu Hortência à beira de uma quadra

Ler mais
Marcus Steinmeyer/UOL

Alison, do vôlei: "Não consegui ressuscitar meu pai. Ele me tornou campeão"

Ler mais
Reprodução/Site Angelo

Vítima de racismo, Ângelo Assumpção vê portas fechadas na ginástica

Ler mais
Topo