Revoluções por minuto

Nos anos 80, Cilinho dizia o que até hoje poucos sabem. Estilo paternal e ofensivo fez história

Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Flavio Canalonga/Folhapress

"Treinador brasileiro que não joga no ataque não pode ser levado a sério."

Essa frase podia ser dita hoje, 29 de novembro de 2019, que soaria atual. Ainda mais no momento em que se discute o lugar deste ofensivo Flamengo campeão brasileiro e da Libertadores na história do futebol nacional. Só que a frase é de 1987, e seu autor morreu ontem (28), em Campinas, interior de São Paulo, aos 80 anos.

Otacílio Pires de Camargo, histórico treinador brasileiro mais conhecido pelo apelido Cilinho, foi por muito tempo visto como capaz de revolucionar a maior paixão do povo. E revolucionou, à sua maneira.

Lembrado especialmente pelos dois títulos do Campeonato Paulista pelo São Paulo, quando consagrou uma geração de jovens jogadores lembrada como "Menudos do Morumbi", ele chegou bem perto de comandar a seleção brasileira nos anos 80. O motivo da procura era justamente o fato de ser ofensivo em tempos de seca.

Seu perfeccionismo, porém, causou a desistência do acordo pela CBF. Além de um grande trabalho e de outro que nunca aconteceu, Cilinho acumula a fama de revelador de talentos, passagens por outros grandes do Estado como Santos e Corinthians, a marca de ser o treinador com mais jogos pela Ponte Preta e tantas outras histórias.

Foram quase 50 anos de atividade no futebol, em várias funções. O legado é incalculável.

Flavio Canalonga/Folhapress
Matuiti Mayezo/Folhapress

Lembrado na TV em agosto

Cilinho encarou sérios problemas de saúde nos últimos anos. Além de questões cardíacas, sofreu um AVC hemorrágico em abril de 2018 e carregou sequelas que cessaram suas aparições públicas nos últimos tempos. Mesmo fora da mídia, o ex-técnico aposentado há sete anos rende assunto. Em agosto, ele foi lembrado durante o programa "Bem, Amigos", do SporTV, pelo técnico Vanderlei Luxemburgo.

O tema da discussão era se o português Jorge Jesus e o argentino Jorge Sampaoli estavam "ensinando" os técnicos brasileiros a trabalhar graças ao sucesso de Flamengo e Santos em 2019. Luxa, então recém-chegado ao Vasco, discordou.

"Pega o DNA do futebol brasileiro, não é diferente do que o Sampaoli está fazendo. É que nós últimos tempos há tantos times que jogam por resultado, por uma bola, se defendendo, que esquecemos da essência do futebol brasileiro. Ele não está ensinando para nós, não é privilégio dele. Só pegar o Flamengo de 1981, o São Paulo da época do Cilinho com os Menudos, o Santos campeão de 2002 com o Leão. Brasileiros."

Por que Cilinho não treinou a seleção brasileira

O sucesso alcançado pelo São Paulo fez Cilinho ser procurado para dirigir a seleção brasileira em 1987. Depois de duas edições da Copa do Mundo perdidas com Telê Santana, o medo era que, na escolha do próximo técnico, o futebol de resultado falasse mais alto do que o futebol bonito. Até o humorista Jô Soares fazia elogios públicos e campanha pelo comandante dos Menudos do Morumbi.

Segundo o noticiário da época, foram oito encontros entre o treinador e a cúpula da CBF, que se dividia: o presidente, Otávio Pinto Guimarães, queria Carlos Alberto Parreira, de características mais pragmáticas. Um vice poderoso, Nabi Abi Chedid, era partidário de Cilinho. A negociação durou meses. Foi cogitado que Cilinho fosse testado no Pré-Olímpico da Bolívia e contratado de vez em caso de resultado positivo. Ele não aceitou, queria ser o treinador permanente.

Outras exigências de Cilinho ajudaram a complicar o acordo. Ele era crítico do calendário do futebol nacional e queria que a seleção se reunisse todo mês, como uma espécie de seleção permanente que iniciaria preparação para a Copa do Mundo de 1990. Também gostaria de comandar o trabalho de base, de formação, algo a que sempre foi afeito. A cisão interna da CBF e as dificuldades para topar os pedidos de Cilinho fizeram com que a seleção fosse o passo que faltou em sua carreira.

Carlos Alberto Silva acabou contratado, mas nem chegou à Copa. Foi Sebastião Lazaroni o técnico eliminado pela Argentina nas oitavas de final.

Matuiti Mayezo/Folhapress

Treinos com bola de tênis e futebol americano

Cilinho tinha métodos arrojados de treinamento para o seu tempo. Criativo, inventava atividades e maneiras de transmitir conceitos como nenhum outro treinador da época fazia. Era um tempo de empirismo, de confiança na arte e no talento natural do jogador brasileiro.

Há uma imagem famosa publicada pela "Revista Placar" em que ele explicava aos comandados do São Paulo a disposição tática do time em uma mesa de futebol de botão. Uma das prioridades do trabalho com esse instrumento era mostrar o posicionamento do time sem bola - um conceito que até hoje muitos treinadores ignoram. Cilinho também trabalhava com bolinhas de tênis e de borracha para que os jogadores melhorassem o controle de bola e a habilidade.

Já usou até a bola oval do futebol americano para estimular reflexos e improviso. "Você quer que a bola venha de um jeito e ela vem de outro", citou um jogador do América-SP em uma matéria da TV Globo da época.

Outro apetrecho já visto nos treinos que dirigia era uma viseira grudada na bochecha dos jogadores e que atrapalhava que olhassem para baixo. A ideia era que jogassem sempre de cabeça erguida. Como ele dizia, em sua filosofia popular: "Nunca confie em garçom ou centroavante de cabeça baixa."

O Cilinho foi um mestre taticamente. Na época do São Paulo ele fazia muito treino técnico, tático, usava bolinha de tênis, bolinha oval, fazia aqueles treinos de aproximação que hoje fazem, mas ele fazia em 1984, aproximação de 11 contra 11. Para mim foi um dos melhores com que trabalhei e muito inteligente nas suas substituições

Pita, Ex-meia, coordenador de captação da base do São Paulo

Ele já enxergava futebol na frente. A gente ganhava de quatro gols e ele falava que na próxima partida íamos ganhar de cinco. O Cilinho era um amante do gol, do futebol para frente, não gostava de jogar para trás e nem para os lados e isso ele inseriu na nossa cabeça. Ele era um perfeccionista, levou vários jogadores para a seleção

Silas, Ex-meia, treinador de futebol

Teatro, circo, palestras e livros: as revoluções fora de campo

As revoluções de Cilinho não se limitaram aos aspectos técnicos e táticos, de campo. O treinador tinha um lado psicólogo muito desenvolvido e gostava de ajudar os jogadores na vida pessoal.

Certa vez, o então Ministro do Trabalho do Brasil, Almir Pazzianotto Pinto, deu uma palestra para jogadores do São Paulo sobre vida financeira. Alex Dias Ribeiro, piloto brasileiro de Fórmula 1, foi outro a conversar com o elenco sobre motivação. Também eram frequentes visitas ao circo e ao teatro em véspera de jogos, para relaxar. O pai de Gabriel Puopolo de Almeida, atual psicólogo do São Paulo, era ator, e os jogadores iam ver suas peças. Cilinho achava o tédio improdutivo, repudiava sinuca e baralho e fazia com que os atletas saíssem do mundo fechado do futebol para abrir a cabeça.

Um dos exemplos mais claros dessa interferência é a criação de bibliotecas no vestiário dos clubes por onde passava, especialmente os menores, no interior de São Paulo. As obras, especialmente de autoajuda, ficavam lá, à disposição dos jogadores, para estimular o gosto pela leitura e reflexão. Também havia bilhetes com orientações ou palavras motivacionais colocados no sapato dos jogadores, frases espalhadas pelo vestiário e preleções com "Eye Of The Tiger" (a música do Rocky Balboa) na caixa de som.

Outra passagem curiosa foi protagonizada por Careca. O atacante vivia um jejum de gols no São Paulo quando Cilinho reuniu o grupo e anunciou que sua má fase faria o clube contratar outro jogador para a posição. A notícia causou comoção no elenco. No dia seguinte, o treinador entregou um embrulho ao centroavante antes do treino começar. Era um espelho. "Está vendo? O centroavante que eu quero está na sua frente", disse a Careca. Psicologia pura.

Cilinho tirou das próprias experiências de vida a inspiração para fazer a diferença na trajetória de seus comandados. Ele é herdeiro de uma família de pecuaristas da região de Campinas, teve boa e rica criação. Na maturidade, estudava arte e música, tocava instrumentos como o tamborim e era muito interessado por gastronomia. Não queria apenas passar pelo futebol, queria deixar uma marca. Conseguiu.

Fernando Santos/Folha Imagem Fernando Santos/Folha Imagem

Formador de talentos

O lado psicólogo talvez tenha sido responsável pelo desenvolvimento de uma das características mais marcantes do trabalho de Cilinho. Ele ficou muito famoso ao longo dos 46 anos de carreira por formar e revelar jogadores relevantes do cenário nacional, como Carlos, Oscar, Dicá, Biro-Biro, Chicão, Silas, Muller e Sidney.

Além de desenvolver aspectos mentais e táticos, o treinador tinha preocupações na evolução técnica das promessas. Era comum trabalhar individualmente com talentos que acreditava serem brutos, fincando estacas no campo e orientando movimentos e passes. Ele chamava esse processo de "correção de defeitos".

O tino para descobrir talentos levou Cilinho a trabalhar em categorias de base no próprio São Paulo, entre outros clubes. Nos anos 90 e 2000, inclusive, o técnico de sucesso da década anterior saiu de cena para trabalhar na formação.

Folhapres Folhapres

Quando o Rei de Roma foi para o banco

É muito famosa uma passagem da carreira de Cilinho em 1985, no comando do São Paulo. O clube pagou 500 mil dólares (o equivalente a R$ 6,5 milhões na cotação atual) pela contratação do meia Paulo Roberto Falcão, que havia jogado no futebol italiano por cinco temporadas e virou "Rei de Roma". Era um dos principais jogadores do futebol brasileiro naquele tempo. E não jogou com Cilinho.

Ou, como contou a "Revista Placar" na época: "(...) colocou - sem a menor cerimônia - o bumbum real sentadinho no banco de reservas."

Falcão começou o Campeonato Paulista de 1985 como reserva do volante Márcio Araújo, que era um jogador desconhecido, de características mais defensivas e aposta do treinador para dar solidez defensiva ao São Paulo. Basicamente, a ideia era não desfigurar o time por causa da contratação de uma estrela.

Aos poucos, o Rei de Roma foi ganhando espaço e passou a jogar com mais frequência. No fim, ambos tiveram uma relação de respeito: Cilinho soube entender o momento de acionar o experiente jogador e Falcão soube respeitar as decisões de seu técnico. O São Paulo foi campeão paulista.

Pavio curto

À beira do campo, Cilinho era intenso, agitado e inquieto. O lado paternal dos bastidores se transformava em um estilo personalista e autoritário durante os jogos. De pavio curto, às vezes derrapou em atitudes violentas - principalmente com árbitros e jornalistas.

Há registros de um dia em que o técnico do São Paulo desceu o braço num repórter da TV Campinas depois de uma pergunta e precisou ser contido por policiais. Ele foi chamado de cafajeste na TV depois desse episódio.

Matuiti Mayezo/Folhapress

Quando Cilinho não se encaixou mais

Cilinho tentou jogar profissionalmente. Era zagueiro, mas uma lesão no joelho e o gosto pela vida boêmia abreviaram a carreira. Ele começou a trajetória como técnico em 1966, aos 27 anos, na Ferroviária. E rodou: Ponte Preta, Portuguesa, Sport, Paulista de Jundiaí, Guarani, Comercial, XV de Jaú, Santos (em 1982), Corinthians (em 1991), Bragantino, América-SP, Rio Branco...

O perfeccionismo e a personalidade difícil impediram voos mais altos, inclusive na seleção. E, quando o futebol mudou para a lógica superprofissional dos tempos atuais, ele não se encaixou mais. Em 2007, foi contratado como diretor das categorias de base do Corinthians. Na primeira semana quis mandar embora 20 jogadores do time B que tinham salários altos e poucas projeções no futebol profissional. Não conseguiu. Denunciou outros problemas na gestão. E no fim durou só quatro meses na função.

Em 2011 ele tentou voltar ao futebol e assumiu o Rio Branco na Série A3 do Campeonato Paulista como treinador. Dirigiu três jogos, duas vitórias e um empate, e pediu demissão alegando ingerência da diretoria em seu trabalho. O último desafio da carreira acabou em fevereiro de 2012. Decepcionado com o fim do futebol romântico, ele não cabia mais.

O que dizem os blogueiros?

  • Juca Kfouri

    Cilinho tinha uma grande qualidade: incentivou o talento, insistiu no sentido de aprimorar os fundamentos do jogador. E gostava de futebol bem jogado, era ousado. Curiosamente, ele misturou métodos paternalistas com posturas vanguardistas.

  • Menon

    Cilinho foi genial, praticando e ensinando um futebol ofensivo e de muita velocidade. Esse seria seu legado, se os treinadores de hoje não fossem tão pragmáticos e covardes. Quando foi cogitado na seleção, em 1986, dizia que ela tinha de fazer o povo feliz. E, não fez, né? Há muito tempo.

  • Marcel Rizzo

    Um gigante, um cara que trabalhava algo que hoje é deixado de lado, inclusive nas categorias de base: fundamento. Se um técnico na história do futebol brasileiro pode ser chamado de professor, esse cara é o Cilinho.

  • Perrone

    Cilinho foi um dos últimos representantes da era romântica dos treinadores brasileiros. Fazia um trabalho artesanal, pois dedicava atenção especial a cada jogador, dava livros, conselhos e broncas. Um paizão que era bom também de tática e gostava do futebol bem jogado. Seus principais legados são exatamente o cuidado que o treinador deve ter com o jogador também como pessoa, fora do trabalho, e a atenção às categorias de base. Segundo seus amigos de churrasco, ele não teria acertado com a CBF para treinar a seleção brasileira porque jogou na mesa um calhamaço de exigências para aceitar o cargo, gerando repulsa dos cartolas. Se de fato isso ocorreu, é outro exemplo deixado por Cilinho.

  • André Rocha

    Quando ele apareceu em 1985, eu tinha 12 anos, faixa etária do ápice do encantamento com o futebol para a minha geração. Cilinho foi o primeiro que vi espalhando botões em um campinho para falar de futebol e também o primeiro a falar do jogador como um ser humano. Isso me marcou para a vida toda. Guardiola já disse que o valor de um treinador está na capacidade de fazer suas equipes provocarem emoções nas pessoas. Cilinho conseguiu, ao menos com aquele São Paulo, agora tão lembrado por conta da partida dele. Essa foi sua revolução.

  • PVC

    Revolucionário, não. Era um apaixonado. Montava times que gostavam de jogar. Bem. Simples e lindamente.

Cilinho viveu os últimos anos entre Campinas e Jaguariúna. Teve sequelas de um AVC sofrido no ano passado, que somado a cirurgias cardíacas debilitou seu estado de saúde. Até a morte, ontem (28), confirmada pela Setec (Serviços Técnicos Gerais), entidade responsável pelos serviços funerários de Campinas.

Ele morreu em casa, com velório até 14h30 de hoje no salão nobre do estádio Moisés Lucarelli. O sepultamento ocorre às 15h, no Cemitério da Saudade, também em Campinas.

Ele deixa a viúva Priscila, quatro filhos e seis netos de dois diferentes casamentos. Isso além de um legado revolucionário no futebol brasileiro.

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