Avanti, Abel

Como o técnico português recuperou talentos e pôs o Palmeiras para disputar mais três títulos

Eder Traskini e Thiago Ferri Do UOL, em Santos e São Paulo Alexandre Schneider/Getty Images

Funcionários e jogadores estavam reunidos num gramado da Academia de Futebol do Palmeiras. Ao centro, o recém-chegado português Abel Ferreira falava. O encontro fora um pedido do treinador e as palavras ali ditas ajudariam a colocar o Palmeiras no rumo certo. Era 3 de novembro, com a temporada já bastante avançada.

Abel havia chegado ao Brasil no dia anterior e teve um contato rápido com o elenco após a vitória sobre o Atlético-MG, por 3 a 0, no Allianz Parque. O português, então, se apresentou de forma oficial e explicou: não há fórmula mágica para o sucesso, mas há o trabalho para chegar lá.

Mais que mero discurso, Abel explicou que cada um ali presente seria importante para o Palmeiras pensar grande. Cada funcionário tinha sua responsabilidade para dar as melhores condições para o time jogar em alto nível, enquanto os jogadores, como forma de retribuição por toda a estrutura ao redor, teriam de dar o seu melhor em campo. Como repete o técnico: "não tem eu, tudo aqui é nós".

Para Abel, todos os setores do clube são interdependentes e entender isso é fundamental para o sucesso. Esse lema foi a primeira amostra de um treinador que, em pouco tempo, recuperou o melhor futebol de cada atleta e transformou, finalmente, um elenco qualificado em um verdadeiro time competitivo. Como prêmio, vai disputar as finais da Libertadores e da Copa do Brasil, além de estar na briga pelo título do Brasileirão, também. O confronto direto com o Flamengo hoje (21) , em Brasília, é mais uma prova disso.

Se esse texto fosse um discurso de Abel Ferreira antes do jogo, ele terminaria com um grito de "Avanti, Palestra". O torcedor, em casa, se uniria ao grito, mas poderia muito bem acrescentar: "Avanti, Abel". Em apenas pouco mais de dois meses, o português já caiu nas graças do palmeirense e tem a possibilidade de entrar para a história do clube.

Alexandre Schneider/Getty Images

Do banco às manchetes

Abel chegou a um Palmeiras que esboçava a recuperação de sua confiança, é verdade. Uma esperança que havia sido dilacerada pela crise no fim da passagem de Vanderlei Luxemburgo, a despeito da conquista do Campeonato Paulista. O desempenho preocupante do time não sustentou o veterano treinador, que acabou demitido em 14 de outubro. A transição feita pelo auxiliar Andrey Lopes recolocou o time nos trilhos, e coube ao português dar sequência ao trabalho. Algo não muito simples de fazer, considerando que era seu primeiro trabalho no país e que o calendário seria apertado e havia todo um relacionamento a ser construído com dezenas de pessoas.

Talvez, exatamente por isso, sem muito tempo para treino, que o técnico tenha trabalhado bastante à base de conversas e estudos e explanações em vídeo. O meia Gustavo Scarpa, por exemplo, já tinha "desencanado" de jogar, como ele mesmo definiu, mas se ofereceu para atuar improvisado na lateral esquerda e ouviu que merecia até uma chance na seleção brasileira. Assim, recuperou seu espaço.

O volante Patrick de Paula, autor do pênalti que garantiu a conquista do título paulista, vinha em baixa e foi um dos primeiros jogadores a ouvir um discurso mais duro de Abel, pedindo maior entrega nos treinos. O garoto respondeu e ressurgiu em uma posição diferente, atuando mais adiantado no meio-campo. Lucas Lima, Raphael Veiga... há tantos seguindo esta linha.

Outro exemplo emblemático é o do zagueiro Emerson Santos. Com apenas sete jogos pelo clube entre 2018 e 2020, ele não fez nenhuma partida oficial com Luxemburgo e cogitava ir para os Estados Unidos. Pois o técnico português não apenas voltou a usá-lo, como transformou o camisa 3 até num volante, por conta dos desfalques que teve de contornar. Hoje, Emerson já tem 17 partidas com a atual comissão técnica.

Para o português, é simples: se o jogador está no elenco, tem capacidade para atuar no Palmeiras. Em pouco mais de dois meses, já foram usados 32 atletas ao longo do Brasileiro e da Libertadores e Copa do Brasil. O truque, digamos, para manter todos em alto nível de competitividade está nos treinos: titulares e reservas trabalham da mesma forma a cada coletivo, a cada trabalho tático. Quem entra, então, sabe o que se espera, o que tem de fazer.

AFP

"O Palmeiras é tudo que o Abel sempre sonhou"

Conversamos com o ex-atacante brasileiro, hoje aos 45, que jogou por América-RN e Guarani antes de ser campeão europeu pelo Porto em 2004. Depois, em sua sequência de carreira pelo futebol português, foi companheiro de time de Abel Ferreira pelo Sporting

UOL: Nos dois anos que você jogou com o Abel no Sporting, entre 2007 e 2009, já via nele um interesse para estudar futebol?

Derlei: O Abel sempre foi muito antenado, ele era jovem, um lateral direito que sempre trabalhou muito bem, excelente profissional, nunca faltou a treinos, teve poucas lesões. Ele sempre gostou de prestar atenção em questões táticas, e ser treinador é uma questão de perfil, que ele tem. Ele gosta de estudar, já tinha naquela altura este perfil de líder.

Na época, você, Abel, Tonel e Marco Caneira, outros jogadores do Sporting, reuniam-se para analisar os métodos de treino. Pode contar como isto funcionava?

O Abel, Tonel e Caneira eram os portugueses mais experientes daquele plantel, junto com o goleiro Tiago, que já não estava jogando. Junto comigo, Liedson e Anderson Polga, também, éramos o grupo mais velho da equipe, com maior responsabilidade, e acontecia de nos reunirmos e conversamos sobre a sessão de treinos e sobre os jogos. O treinador faz a parte dele, monta a estratégia e temos de analisar, não o trabalho do treinador, mas saber o que vamos fazer como atleta para ajudar o técnico no que ele queria. Não era no sentido de querer mudar, porque aí o treinador Paulo Bento sabia o que estava fazendo. Era para saber o que poderíamos fazer de melhor para encaixar naquele sistema que já conhecíamos. Futebol é feito de detalhes, que muitas vezes fazem a diferença.

Quando o Palmeiras anunciou sua contratação, você já imaginava que ele teria um sucesso tão rápido? Por quê?

Sou suspeito para falar de treinadores portugueses, por serem os que mais evoluíram nos últimos 15 anos. Isto é fruto de um trabalho que cresceu, com estudo, principalmente depois do José Mourinho. Ele levou do Barcelona e da escola holandesa detalhes para Portugal e teve seu sucesso. Cada um com seu estilo procurou evoluir, e fruto disso foi o trabalho do Jorge Jesus no Flamengo. Teve o Paulo Bento e o Jesualdo Ferreira, que não tiveram o mesmo sucesso, mas há que se ter em conta o plantel com que trabalharam. O Abel estava preparadíssimo para assumir o Palmeiras, mesmo trabalhando na Grécia, brigando por títulos. Ele é um jovem com a cabeça focada em evolução. E o futebol é isso. Deu certo, ele falou a linguagem dos jogadores, eles entenderam o que ele queria e o sucesso está aí.

Como vê o momento do Abel no Palmeiras, chegando a duas finais importantes em menos de três meses no Brasil?

É uma oportunidade grande, ele sabe que o Palmeiras é tudo aquilo que ele sempre sonhou. Trabalhar em clubes grandes, tops, que brigam por título, independente do país. Ainda mais no Brasil, que basicamente um título nacional, com todo respeito, vale mais do que de muitos outros lugares. E está brigando por títulos internacionais, a Libertadores, que equivale à Champions League na Europa. Então tendo esta oportunidade de fazer este trabalho, ele pensou nisso e só tem de dar parabéns pela decisão de vir ao Palmeiras. Com certeza o excelente trabalho dele naturalmente vai sempre trilhando o próprio caminho para regressar à Europa em clubes maiores, se decidir voltar, como o Jorge Jesus. Mas acredito que o Abel pode até ficar um tempo maior, não só pelo trabalho que desempenha no Palmeiras, mas é natural que o clube possa valorizar o seu trabalho.

Paulo Paiva/AGIF Paulo Paiva/AGIF

Futebol à vista

O Palmeiras de Abel Ferreira é diferente. Para ter o bom desempenho que vem mostrando em campo, a preparação de sua comissão técnica começa na sala de análise, passa pelos treinamentos táticos bem detalhados, que se repetem até mesmo nos dias de jogos. Por fim, não menos importante passa pela parte mental.

O português acredita que o emocional do atleta é um fator tão relevante quanto o aspecto tático. Ele dá especial atenção a isso. Uma das medidas adotadas por Abel nessa linha é o grito "Avanti, Palestra" após a última conversa antes de o time subir ao gramado.

As palavras foram cuidadosamente escolhidas pelo treinador após ele ter estudado bastante a história do Palmeiras antes de aceitar o convite do clube. Abel acredita que os jogadores precisam sentir e entender os valores da equipe.

Em campo, o resultado é um dos melhores dos últimos anos no clube. O português bate muito na tecla da importância do jogo coletivo e diversos gols do Palmeiras nascem de grandes trocas de passes entre os atletas. A regularidade e consciência tática têm chamado atenção até dos próprios atletas.

Talvez seja a primeira vez que eu e a grande maioria entra em campo e sabe literalmente tudo que tem de fazer. Como atacar, como defender, bola parada. E por mais que a estratégia não dê certo, que a parte tática acabe dando errado, a gente tem um estilo de jogo consistente, estamos vencendo bem as partidas. E colocar a bola no chão, tentar jogar, com a qualidade dos jogadores que têm aqui é primordial."
Gustavo Scarpa, ao UOL Esporte

Nelson Allmeida/Pool/Getty Images Nelson Allmeida/Pool/Getty Images

Não há fórmula perfeita?

Abel considera que o papel do treinador é ensinar ao jogador, com argumentos, por que é preciso fazer, por exemplo a pressão alta em um determinado momento do jogo. Ou por que o time precisa realizar a saída com três jogadores de sua defesa. Tudo tem motivo, e o português trabalha para ser o mais didático possível no dia a dia.

Este é um ensinamento que ele aprendeu no convívio com Jesualdo Ferreira, demitido em agosto pelo Santos, que foi seu comandante no Braga. Na visão de Abel, o jogador tem melhor desempenho quando sabe o que está fazendo, e no Palmeiras a partilha de conhecimento é considerada um grande mérito no trabalho.

Apesar desta importante característica, Abel não se considera um discípulo de Jesualdo. Ele argumenta que foi acumulando referências em seus estudos e nas experiências como jogador. No Sporting (POR), por exemplo, tinha como costume discutir e analisar os métodos de treinos com outros atletas, como Derlei, aqui entrevistado.

É por isso que Abel não se define em um estilo. O técnico gosta de analisar o que tem de mais atual no esporte e se adaptar. O Palmeiras com ele já jogou com linha de cinco na defesa, fazendo marcação alta, baixa, construindo desde os zagueiros ou usando bola longa. Tudo depende do adversário.

Não há fórmula perfeita. Não há plano de jogo perfeito. Há apenas aquele em que você acredita. Você pode preferir o meu estilo, do Guardiola ou do Simeone. O importante é ser capaz de explicar o que você deseja aos seus atletas. Isto é ser um bom técnico",
Abel Ferreira, em entrevista ao The Coaches' Voice.

Cesar Greco

Vida em São Paulo é o trabalho

Abel disse depois da goleada sobre o Corinthians que dedica mais tempo a sua profissão do que nunca. Quem o conhece conta que a vida em São Paulo pode ser resumida ao trabalho. Ainda morando no hotel da Academia de Futebol, o treinador tem poucos momentos de lazer, em jantares com membros de sua comissão ou quando seus empresários estão na cidade.

Como os jogos não pararam no fim do ano, sua esposa e filhas vieram ao Brasil apenas para passar o Natal com ele. Mas o tempo juntos foi curto, vejamos: no dia 23, o time enfrentou o América-MG pela semifinal da Copa do Brasil e, no dia 27, encarou o Red Bull Bragantino, pelo Brasileirão. O único dia de folga neste intervalo foi o dia 25 —houve treino até na manhã do dia 24.

Funcionários do Palmeiras veem em Abel Ferreira um interesse aparentemente inesgotável em aprender a rotina e os costumes do clube. Por isso, a imersão dele e de seus auxiliares de forma tão profunda no dia a dia dentro do Centro de Excelência. Ele aproveitou o fato de não ter praticamente nenhum tempo livre para ficar 100% focado em seu início no Palmeiras.

Cesar Greco

Amor à segunda vista

Sim, o Palmeiras tentou contratar o espanhol Miguel Ángel Ramírez e não teve sucesso. O Verdão chegou a sondar outros nomes, mas a segunda conversa oficial para a vaga de comandante do clube foi com o português Abel Ferreira. E o "match" foi instantâneo. Após a diretoria ter recebido uma indicação, seu núcleo de análise de mercado avaliou o técnico, e as conversas com seu empresário foram iniciadas pelo vice-presidente Alexandre Zanotta.

Houve um contato contínuto com seus agentes antes de a primeira conversa por vídeo Abel, também realizada por Zanotta, ser agendada. O nível de conhecimento que o treinador, na época comandando o PAOK (GRE), demonstrou sobre o Palmeiras deixou os dirigentes encantados. A impressão só se confirmou em nova reunião no dia seguinte, com todo o departamento de futebol.

O português reunia todas as qualidades que o clube buscava naquele momento: um conceito de jogo moderno, estilo de jogo agressivo, cabeça aberta ao trabalho com as categorias de base e capacidade de recuperar atletas em baixa. A partir daí, o trabalho foi conseguir sua liberação do clube grego.

O Verdão não quis esperar Miguel Ángel Ramírez, pois acreditava que o time tinha possibilidades de títulos ainda nesta temporada, mas tinha como prioridade, ao trazer Abel, solidificar o projeto de maior utilização da base e novos conceitos de jogo. Internamente, o clube admitia ter mais paciência com o português recém-chegado ao Brasil e não esperava tamanho sucesso em tão pouco tempo.

Paulo Paiva/AGIF Paulo Paiva/AGIF

Homem sem medo

Ao demitir Luxemburgo, o Palmeiras entendeu que não adiantava mais olhar para o mercado nacional. Restava buscar um substituto no exterior. O clube estava disposto a ir atrás de um gringo, mesmo em meio de temporada e com um calendário espremido após a pandemia do novo coronavírus.

Abel agradou, mas ainda tinha contrato com o PAOK. O técnico havia criado uma boa relação com o novo diretor do clube, o alemão Olaf Rebbe, e estava em sua segunda temporada na Grécia revelando garotos, como acontece hoje no Palmeiras. As críticas da imprensa é que geravam um desgaste e incômodo no comandante, mas ainda assim ele gostava da vida no país.

A troca de clubes só aconteceria mediante algo muito vantajoso. A proposta financeira do Palmeiras era semelhante (salário de 120 mil euros por mês —quase R$ 800 mil), mas restava a Abel analisar o projeto esportivo. O fato de assumir um elenco já pronto, sem que tivesse necessariamente sua digital e com pouco tempo de trabalho, chegou a ser avaliado como um possível problema.

Contudo, após um minucioso estudo sobre o Verdão, Abel Ferreira aceitou a oferta. Pessoas próximas dizem que ele não é "um homem de medo" e que gosta de desafios. Desde que chegou, todos os relatos são de que o português está encantando, tanto com a estrutura quanto com a força do grupo que recebeu. O resultado, consequentemente, tem aparecido.

Nathalia Aguilar - Pool/Getty Images

Não é só ele: quem são os escudeiros de Abel

Abel Ferreira chegou ao Palmeiras com quatro membros de sua comissão: os auxiliares Vitor Castanheira, João Martins e Carlos Martinho, além do analista de desempenho Tiago Costa. O comandante já disse que todos são treinadores na sua equipe e complementam o trabalho.

A vantagem do quinteto é a multidisciplinaridade: João Martins (na foto, dirigindo o time contra o Libertad, pela Libertadores), por exemplo, era preparador físico, e hoje é um dos comandantes no banco, junto de Castanheira. A equipe também trabalha de forma muita próxima com os departamentos de análise de desempenho e análise de mercado. Nos treinos, cada um cuida de um setor: defensivo e ofensivo.

"O mais legal na comissão dele é que vai para a bola parada, algumas estratégias e ele [Abel Ferreira] às vezes não participa, mas os auxiliares vêm e falam a mesma coisa. Chega o João (Martins), dá uma dica, e cinco ou 10 minutos depois, o outro vem falar literalmente a mesma coisa. Então dá para ver que são muito entrosados e isso facilita demais nosso dia a dia, para todos os jogadores entenderem o que eles querem que a gente faça", explicou Gustavo Scarpa.

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