Revolução

Há três anos, skate feminino tinha poucas atletas. Hoje, meninas de nove anos brilham e sonham com Olimpíadas

Demétrio Vecchioli Do Olhar Olímpico, em São Paulo Fernando Moraes/UOL

Em 2018, um torneio de skate realizado em Itajaí (SC) virou assunto nacional. Enquanto o campeão masculino ganhou R$ 18 mil, a vencedora do feminino levou R$ 5 mil. A discrepância gerou críticas que extrapolaram a bolha da modalidade.

Os organizadores argumentaram que a premiação refletia uma "realidade" discrepante: 23 homens se inscreveram no torneio, 22 deles profissionais, enquanto o feminino tinha apenas dez atletas, a maioria amadoras —e metade dessas mulheres não tinha nível técnico para um evento daquele porte.

Na arquibancada, em meio a um público essencialmente masculino, Maitê Demantova, então com sete anos, tinha seu primeiro contato com o skate. Ali ela viu, de perto, Yndiara Asp, Dora Varella e Isadora Pacheco, que viriam a defender o Brasil no skate park em Tóquio-2020. "Estavam as meninas ali e eu pensei: eu também posso chegar no nível delas", conta.

A estrutura do evento foi desmontada, mas Maitê continuou indo diariamente à pista recém-inaugurada. Aprendeu a andar, depois a dropar e passou a arriscar manobras. Treinava todos os dias por várias horas. Tinha encontrado sua tribo.

Maitê tem hoje 11 anos e foi uma das 30 meninas a participar da etapa de São Paulo da nova Liga Amadora de Bowl (LAB). Antes de ser possível medir o impacto gerado pela participalção de Rayssa Leal nas Olimpíadas de Tóquio, outros fatores já mudaram a realidade do skate feminino da água para o vinho. Ou para suco de uva, já que (quase) todo mundo aqui é menor de idade.

Fernando Moraes/UOL
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Sofia Curi durante sua apresentação no LAB

O locutor pede barulho, Sofia Curi responde batendo com o skate na borda da pista. O som sai baixo. Aos nove anos, Sofia ainda não tem músculos para bater com muita força. De pé, o skate bate em seu umbigo. O que importa, contudo, é o que ela sabe fazer em cima do shape.

Sossô é sempre a primeira a abraçar quem termina uma apresentação, seja para festejar junto ou dar uma palavra de consolo. Além de carisma, talento também há de sobra: fez um terceiro e um quarto lugares nas duas primeiras etapas da LAB. Antes dos dez anos, já é o expoente de uma nova fase do skate feminino.

"O nível melhorou 500%. É surreal", conta Nilo Peçanha, skatista profissional e organizador da LAB, circuito que envolve as melhores amadoras de um país que tem quatro profissionais no park. "Nos últimos eventos antes da pandemia, a gente tinha dificuldade de achar menina. O masculino tinha 40 pessoas, o feminino dava dez e era: 'Caramba, pelo menos tem dez meninas'."

Hoje há mais interessadas em se inscrever do que há vagas nos torneios.

A melhora quantitativa acompanha uma evolução qualitativa —com Sofia como exemplo: "Tem menina de nove anos que eu nunca tinha visto e tá andando mais do que menina com quem eu andei a vida toda. Acho que como tem muita pista particular, a galera ficou internada nessas na pandemia, andando o dia inteiro, e evoluiu muito", aposta.

O diagnóstico é correto.

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Sofia Godoy (esquerda) e Fernanda Tonissi

Fernanda Tonissi e Sofia Godoy não se conheciam até um mês atrás, quando competiram juntas no Rio de Janeiro. Três semanas depois, a gaúcha Sofia, de 12 anos, e seu pai foram acolhidos na casa da família da paulistana Fernanda. As duas competiram em São Paulo.

"O skate é um esporte que une. Eu era muito envergonhada, não conseguia conversar com ninguém, e o skate me ajudou muito. Você está na pista, alguém vai te ajudar, e começa a conversar. É um esporte individual, mas que junta", diz Sofia.

A garota de cabelo esverdeado subiu pela primeira vez em um skate há dois anos. Gostou tanto e passou a ir tantas vezes a uma pista particular em Portão (RS) que seus pais foram convidados para trabalharem no local. "A gente mudou nossa vida de cabeça para baixo por causa do sonho dela", conta o pai, Douglas.

Aos 14, Nanda é outro fenômeno. Vice-campeã nacional nos saltos ornamentais, conheceu o skate também há dois anos, no Pinheiros, clube da alta sociedade paulistana. Com estilo técnico e uma valiosa capacidade de girar sobre o próprio eixo do corpo, legado da carreira de saltadora, estreou no skate com duas pratas na LAB.

"Eu gosto de saltos ornamentais, me ajudou muito em muitos aspectos, mas o skate é o que está me dando mais oportunidade e me incentivando mais. Quando você acerta uma manobra é muito bom, você fica com vontade de aprender mais coisa nova. Fazer saltos é mais certinho, aqui é mais descontraído, faz diferença", explica ela, que quer brigar por vaga em Paris-2024.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

"No skate é tudo muito rápido. O skate te torna competitivo muito cedo, aproximando idades. Em outras modalidades, é impossível ter uma criança de dez anos competindo com um adulto", opina Cristiano Laurino, médico no atletismo em três Olimpíadas e pai de Helena Laurino, a Heleninha —na foto acima.

Aos 9 anos, ela tem cara, corpo e idade de criança. Com dois anos no esporte, já tem dois quintos lugares na LAB. "Um dia, fui andar de patins na pista do clube [Pinheiros] e não deixaram porque só podia andar de skate. Aí eu falei: 'Então eu quero andar de skate'", conta a garota, que se diz apaixonada por "voar" sobre quatro rodinhas.

Apesar da pouca idade, sua rotina no esporte é intensa. Heleninha treina ao menos cinco dias por semana, com sessões de 3 horas. Aos sábados e domingo, tem jornada dupla, passando por um total de quatro pistas. "É nato dela, ela gosta disso, ela quer treinar, também faz aula de tênis. O objetivo é se desenvolver, mas se divertir. Ela gosta muito, tem amigos, não tem a sensação de pressão", fala Cristiano.

Médico responsável pelo Estádio Olímpico na Rio-2016, ele defende a imposição de um limite de idade no skate olímpico e acredita que a linha de corte para Paris será 13 anos. A se confirmar, Heleninha terá que treinar mais sete anos para estrear nos Jogos em Los Angeles, aos 16.

Meninas competem na Liga Amadora de Bowl na Layback Park / Fotos: Fernando Moraes/UOL
Maitê Demantova

Menos marginalizado depois de se tornar esporte olímpico, o skate atrai um novo público. Agora, há brinquedos infantis [os favoritos são os "pop Its", fidgets anti-stress coloridos], pais carregando skates protegidos por cases semelhantes aos de violino e treinadores profissionais.

Um deles é Celso Galani, um skatista old school que criou um método de iniciação. Há 12 anos nessa função, ele vê o skate feminino em plena expansão". "Esse processo tem uns cinco anos. A gente deve tudo para a Fadinha, por toda essa onda, mas a mudança vem desde a geração da Yndiara, da Dora. Elas inspiraram essas meninas que iniciaram no skate de cinco anos para cá."

Celso diz que as meninas costumam aprender as manobras mais rápido que os meninos, mas tinham mais medo na pista. Ao verem outras garotas, ganharam coragem. "Agora elas estão querendo participar mais", avalia, antes de reconhecer um problema: inspiradas em Rayssa e na britânica Sky Brown, pulam etapas. "Elas já querem participar da seletiva olímpica, não de campeonatos de iniciantes. Tentam se adiantar demais e acabam se frustrando".

Ele treina, entre outras, Nanda, Heleninha e Sossô, skatistas que refletem também uma transformação social. As três são sócias do Pinheiros, principal clube "olímpico" do país, e vêm de famílias envolvidas em modalidades tradicionais. Os pais de Nanda são ex-atletas de saltos ornamentais. Sofia foi à Olimpíada de Londres quando tinha 3 meses, acompanhando a mãe, técnica da seleção de nado artístico.

"No skate, o lazer acaba sendo o esporte, sempre de uma forma divertida. Ele é muito diferente, tem esse diferencial em relação aos outros esportes, fica muito mais leve. No nado eu repito mil vezes o movimento, a piscina é sempre igual. No skate cada pista é diferente", compara Andrea Curi, mãe da primeira Sofia citada na matéria. A família tem uma mini rampa em casa, construída pelo pai de Sofia, que é marceneiro.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Essa mudança de perfil social no skate park está associada ao acesso a pistas. Quem tem dinheiro, e pais com disponibilidade, pode treinar cada dia da semana em um local diferente, ampliando o leque de manobras. Nas pistas públicas, com mais gente, é preciso esperar vários minutos entre uma linha e outra até chegar de novo a sua vez.

Campeã em São Paulo e tida como forte concorrente a uma vaga em Paris, Raicca Ventura (na foto acima), de 14 anos, tem livre acesso a uma pista onde o pai trabalha em São Caetano do Sul (SP). "No início da pandemia, as pistas fecharam. Quando reabriu, dava para andar bastante", diz ela. "Tem dias que chego na pista depois do almoço e saio tipo 22h."

Campeã paulista e brasileira em 2019 aos 12, a skatista nunca competiu no exterior pelo alto custo de uma viagem, enquanto outras atletas mais novas já foram mais de uma vez aos Estados Unidos. Para furar essa barreira, só entrando na seleção que deverá ser formada pela CBSk em janeiro, com critérios ainda desconhecidos.

Fernando Moraes/UOL
Júlia Ventura

No ciclo para Tóquio, as vagas no park foram ocupadas por Dora Varella, Yndiara Asp, Isadora Pacheco e Victoria Bassi, de 14 anos, única que segue como amadora. A tendência é que, até Paris, a briga inclua Raicca, Nanda, Maitê e, talvez, Heleninha, Sossô e Marina Lima, todas de 9 anos.

Em meio a tantas crianças, adolescentes e pré-adolescentes, uma veterana ainda sonha. Aos 22 anos, cinco anos mais velha que qualquer adversária, Julia Ventura, de Lorena (SP), era a única adulta competindo em São Paulo —é ela na foto abaixo. "Eu moro sozinha, pago minhas contas, trabalho. Quando comecei, o auge era chegar na parte funda da pista. Hoje, as minas mandam tudo na parte funda. Se eu conseguisse ter o acesso que as meninas têm, de vir todo dia, ficar até mais tarde, meu rolê seria outro. Meu tempo de skate é o tempo de vida das meninas. Se elas conseguem, eu consigo. Então não vou desistir. Eu vou chegar lá".

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL
Meninas competem na Liga Amadora de Bowl na Layback Park / Fotos: Fernando Moraes/UOL
Maitê Demantova

"Eu acertei a minha linha, então eu estou feliz", responde Maitê Demantova à pergunta sobre sua participação nas eliminatórias em São Paulo. Caçula da seleção júnior (sub-16) de park convocada no ano passado, a catarinense de 11 anos não conseguiu vaga em uma final que teve três meninas de nove anos.

"Esse resultado vai fazer ela ganhar um novo gás, sair da zona de conforto", aposta o pai, Junior. Tida como promessa, a garota de óculos de armação rosa e lente grossa já tem assessoria de imprensa e "apoio" de diversas empresas — no Brasil, mesmo quem já recebe dinheiro de patrocinadores só pode se declarar profissional à confederação depois dos 14 anos.

Fora da final, Maitê se ofereceu para estar no pódio mesmo assim, para entregar o troféu à vencedora. Ela é, afinal, a líder da turma. "Quando você está em cima do skate é alegria, felicidade. Você acerta a manobra, todo mundo está ali junto com você. É muito irado essa vibe do skate, e quanto mais gente andando de skate, melhor."

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