Prazer, Ary Borges

Como essência questionadora transformou a maranhense Ariadina na titular da seleção feminina

Carolina Alberti e Luiza Sá Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro Roland Krivec/DeFodi Images via Getty Images

Autora de três gols na estreia da seleção brasileira na Copa do Mundo da Austrália e Nova Zelândia, Ariadina Alves Borges teve um longo caminho antes de se tornar Ary Borges. Nascida em São Luís, no Maranhão, a meio-campista de personalidade forte desde a infância foi o grande nome do Brasil na goleada de 4 a 0 sobre o Panamá.

Criada pela avó até os 11 anos, Ary conviveu com os pais apenas quando se mudou para São Paulo. A então pré-adolescente sequer sonhava em ser jogadora de futebol, mas os olhares atentos do tio e do pai guiaram Ary rumo à Copa da Austrália e Nova Zelândia.

"Acho que você vai pensando, durante o processo, em tudo que fez para estar ali. Lembra de onde veio. Fico pensando, 'poxa cara, olha de onde eu saí, onde eu estou agora, morando em um outro país, podendo fazer principalmente o que eu amo'. Não tem nada melhor do que isso, viver a vida inteira fazendo algo que realmente gosta, viver disso, respirar futebol", falou Ary ao UOL.

A maranhense de 23 anos se inspira nas craques e revolucionárias Marta e Megan Rapinoe, da seleção dos EUA. Ao mesmo tempo em que vê a seleção mentalmente forte para a Copa, cobra melhorias no futebol brasileiro e ainda não decidiu se apoiará, ou não, a candidatura verde-amarela para receber o Mundial de 2027.

Roland Krivec/DeFodi Images via Getty Images

Ary Borges não tem medo de se posicionar

Titular da seleção feminina não liga para haters e entende a força de seu papel no futebol brasileiro

'Entendo o meu papel'

"Sempre fui a menina que gostava de tomar a frente para falar as coisas na escola, tive opinião sobre as coisas e sempre quis expô-las para as pessoas. A carreira como jogadora de futebol apenas aumentou o grau de alcance".

Ary Borges se posicionou, por exemplo, após a contratação de Cuca como técnico do Corinthians e sobre os casos de racismo envolvendo Vinicius Jr, atacante do Real Madrid e da seleção brasileira. No primeiro caso, se mostrou incrédula quando os jogadores do clube paulista correram até o treinador para abraçá-lo após a vitória sobre o Remo nos pênaltis.

"Sempre quis que pessoas que me representassem falassem sobre os assuntos que me representam. Então hoje, tendo um pouco de influência, eu busco ser esse tipo de pessoa. Você vai criando maturidade, sabe o que falar, o momento, sobre o que falar, isso é natural do ser humano. Mas me sinto muito confortável para falar aquilo que penso".

E o hate nas redes sociais? Ary não é daquelas que fica procurando repercussão daquilo que fala e se nega a procurar eventuais críticas. Afinal, muito antes da Ary Borges, existe a Ariadina.

"Óbvio que a minha rede social é compartilhada com a Ary Borges, mas muitas das vezes quem está falando é só a Ariadina. É difícil as pessoas também entenderem isso. Vai para um lado muito humano, como eu, como mulher, não vou falar de um caso de violência contra a mulher? No caso do Vini Jr, eu sou uma pessoa negra, como que eu não vou, no mínimo, me solidarizar?"

Não vou falar só sobre pautas que falam sobre o que eu sou, porque aí também é ser muito hipócrita. Quando é algo que puxa muito do lado humano, vem à tona Ariadina e não a Ary Borges, jogadora. São momentos em que eu me sinto confortável"

Ary Borges

JMP/Getty Images JMP/Getty Images

As marcas de Ary

A caminhada para se tornar a Ary Borges também passou por dois momentos importantes dentro e fora do futebol. Ela precisou de dois anos com a amarelinha para ser pilar na conquista da Copa América e nome certo na lista do Mundial, mas o começo não foi tão simples. No campo, uma conversa com a técnica Pia Sundhage mudou tudo para a jogadora. Em outubro de 2021, na segunda lista em que foi chamada, a seleção se reuniu para jogos contra a Austrália. A meio-campista teve ali a primeira chance como titular, mas foi pega de surpresa.

"Eu não me sentia bem, não me sentia confortável dentro da seleção, não conseguia jogar. Estava jogando bem no Palmeiras, mas não conseguia jogar bem na seleção, não me sentia confiante, não sentia até que eu merecia estar lá. Acabei chegando um pouco antes do grupo, e tive uma conversa com a Pia em que ela me mostrou alguns vídeos e falou: 'olha, eu quero que você faça isso, isso e isso, porque você consegue fazer'".

"Ela chegou para mim e falou: 'se prepara, porque no jogo você vai começar como titular'. Minha cabeça parecia que ia explodir: 'Como eu não estou jogando bem, ela estava me mostrando um monte de vídeos com coisas que eu preciso melhorar, que são erros, e eu vou ser titular em um jogo contra a Austrália na casa delas?' E eu pensei: 'ou você vai para a próxima partida e se afunda ainda mais ou muda a sua cabeça?'", completou.

Foi nesse momento que a cabeça de Ary mudou. Ela considera que foi uma das melhores partidas dela dentro da seleção e a confiança a ajudou a se consolidar. "Me senti mais confiante. A partir dali as coisas realmente começaram a mudar, me senti cada vez melhor. Até me senti realmente bem comigo mesma, sabe?"

Já na construção da Ariadina, o ponto fundamental foi a ida para São Paulo. A nova vida, o futebol e os sonhos moldaram os próximos passos da maranhense, mas deixar a avó em São Luís foi a parte mais difícil.

"Foi um momento muito difícil de ter deixado minha avó, eu sentia que eu estava abandonando ela, que tinha me criado. Mas tive um apoio muito grande dela de falar para viver com meus pais. Eles também foram super compreensivos nesse processo comigo, de uma criança que viveu a vida inteira com a avó e estava vindo morar com pessoas que ela praticamente não conhecia. Deu muito certo."

Reprodução/Instagram

Base forte

Ary não esconde que o pai foi uma referência na parte do futebol, principalmente por ter corrido atrás de um lugar onde ela pudesse jogar. Mas é a avó quem representa a maior inspiração para a mulher que Ariadina se tornou.

"Tenho como referência minha avó, que me criou durante um momento muito difícil, em que meus pais saíram da minha cidade por necessidade, por querer algo melhor para mim, trabalhar, enfim, para poder criar a filha pequena. Tenho minha avó como uma inspiração de vida mesmo, de ter topado a aventura de cuidar de uma criança, que ela já era uma senhora e topou isso. Tem meus pais também, meu pai e minha mãe. Com certeza não deve ter sido nem um pouco fácil pra eles ter deixado a filha pequena".

Tive todo suporte da minha família. Minha avó era a pessoa mais difícil, falava que futebol não dava dinheiro para ninguém. Mas ela nunca foi uma pessoa que me impediu de jogar"

Ary Borges

Meu pai foi a figura mais importante na minha carreira, porque ele foi atrás para eu começar a jogar com os meninos. Ele me apoiou e fez de tudo pra eu poder buscar meus sonhos"

Ary Borges

Juan BARRETO / AFP

Futebol não era sonho

Assim como muitas meninas que decidem ser jogadoras, os primeiros contatos de Ary com o futebol foram jogando ao lado dos meninos. Mas ela admite que nem sempre se tornar profissional era um sonho: "Falo que futebol entrou na minha vida muito por questão de destino".

"Meu desejo de ser jogadora não começou na minha infância, para ser bem sincera. Atrás da casa da minha avó tem um campo de futebol. Meu tio - que foi o maior exemplo de pai que tive na vida -, durante a minha infância, tinha um time de várzea. Sempre ia assistir com meus primos e tínhamos acesso fácil ao campo. Nossa brincadeira favorita era jogar futebol. Foi aí que comecei a gostar um pouquinho do esporte, mas nunca sonhei em ser jogadora", conta.

A história mudou quando Ary foi para São Paulo morar com os pais, que foram informados pelo tio dela sobre o talento. "Meu pai até falava no começo que não deu muita fé de que eu sabia jogar, mas um dia eu estava em uma quadra perto de casa e ele me viu. Voltei para casa e ele chegou falando: "pô, Ary, você joga bem, a gente pode procurar algum lugar para você jogar".

O início foi na escolinha do Meninos da Vila, perto da casa dela. Mas foi no Centro Olímpico, onde chegou aos 11 anos, que Ary desenvolveu o sonho. No Brasil, Ary defendeu o Sport, o São Paulo e o Palmeiras. Atualmente está no Racing Louisville (EUA).

E a seleção brasileira?

Ary é um dos rostos da renovação da seleção feminina nos últimos anos. Se ela está em sua primeira Copa do Mundo, Marta está na sexta e última. Formiga já se despediu, Cristiane não faz parte dos planos de Pia Sundhage. Para a jogadora, porém, era um processo necessário.

"Me sinto muito honrada de fazer parte desse processo, era algo que todo mundo pedia e que a seleção precisava passar. É óbvio, todo processo é difícil e quando eu cheguei na seleção tive um tempo para amadurecer. Hoje me sinto muito mais preparada para falar que jogo na seleção e tenho um papel importante. Mas foi difícil esse começo de reconstrução, de novas caras. A seleção vinha numa constante de nomes até as Olimpíadas, e hoje são seis, sete meninas que são remanescentes dos últimos grupos."

Depois da queda nas quartas de final das Olimpíadas e a decepção, a seleção chega ao Mundial na Austrália e Nova Zelândia com mais "casca", como diz Ary. Além de mudanças físicas e técnicas, o lado mental foi um dos principais focos da preparação.

"Eu acho que a gente tem um espírito muito de querer vencer. A Pia fala muito isso. Temos que fazer coisas diferentes para obter resultados diferentes. Uma das coisas que ela implanta muito é essa mentalidade vencedora. E eu também acredito muito nisso, acho que o que você fala, você atrai. Temos falado muito sobre isso, temos um grupo muito forte, principalmente na parte mental. É algo que a gente sentia que precisava melhorar e temos feito isso. Passa muito por olhar uma para outra e sentir que pode e consegue."

Título para Marta é motivação extra para o Brasil na Copa

Ary diz que campanha da Argentina no Qatar-2022 mostra que uma seleção pode jogar pela sua craque

O exemplo da Argentina [na Copa de 2022] é bom. Você via que era um time com objetivos individuais, mas que tinha um líder [Messi] que precisava disso [título]. A gente trabalha para, quem sabe, poder dar alegria para alguém que já trouxe tantas alegrias para a seleção, mas que ainda infelizmente não tem esse título de mais expressão"

Ary Borges

Os problemas do futebol feminino no Brasil

Ary construiu grande parte de sua carreira no Brasil e, apesar de ter passado os últimos meses nos Estados Unidos, acompanha de perto o futebol feminino de sua terra. Mas nem sempre com um sorriso no rosto.

Jogos sem transmissão: "Estou aqui nos Estados Unidos, mas gosto de acompanhar e não troco nenhum jogo do Brasileirão feminino por outro, mas acho absurdo que em diversos momentos a gente não tem nem transmissão. Aqui todos os jogos têm transmissão, você vê uma comoção muito grande também das pessoas para assistir, apoiar, comercializar o futebol feminino".

E os clubes?: "Eles também têm uma certa responsabilidade. Como muitas meninas falaram, tem esse processo de o dinheiro chegar no clube e não ser repassado para as atletas, para viagens, uma alimentação melhor, alojamento melhor, para um campo melhor. Então passa também por esse processo dos clubes terem interesse em cuidar do futebol feminino e ter de fato uma equipe competitiva".

Vejo que aqui é uma liga (NWSL) muito bem organizada. Para isso acontecer no Brasil, a gente precisa de uma entidade muito mais forte e interessada em cuidar do futebol feminino"

Ary Borges, sobre o carinho de entidades com o futebol feminino

Até alguns anos atrás a gente era proibida de jogar futebol. Como um esporte se desenvolve de um dia para o outro e vai ser igual ao masculino? São lutas completamente diferentes"

Ary Borges, sobre comparações com o futebol masculino

Temos buscado cada vez mais nosso espaço, mas acho que todo mundo hoje luta muito para fazer as coisas serem melhores para a modalidade. Não só pensar no seu próprio bolso"

Ary Borges, sobre a busca por equidade e boas condições na modalidade

Mariana Greif/Reuters

Quer uma Copa feminina no Brasil?

O Brasil concorre com a África do Sul, a parceria entre Estados Unidos e México, e a candidatura tripla de Alemanha, Bélgica e Holanda para receber a Copa do Mundo feminina de 2027.

Acostumada a falar o que pensa, Ary ainda está em cima do muro quando o assunto é o interesse verde-amarelo em receber o próximo Mundial.

"Já refleti sobre isso, mas fico um pouco em cima do muro. Ao mesmo tempo que acho que seria animal e extraordinário ter uma Copa do Mundo no Brasil, porque é um evento que vai atrair os olhos de todos para o nosso país, para a modalidade, ao mesmo tempo rola aquilo de você ver um Campeonato Brasileiro hoje que não tem nem transmissões em partidas. Não consigo dizer 'a Ary quer' ou 'não quer', porque existem os prós e os contras", disse.

Como a gente quer sediar um Mundial se não conseguimos ter ne um campeonato legal para isso, sabe?"

Ary Borges

Thais Magalhães/CBF Thais Magalhães/CBF

Agradecimento ao passado, e apoio para o futuro

Ary está na Copa do Mundo da Austrália e na Nova Zelândia, e carrega na bagagem a persistência da pequena Ariadina, o apoio da família. Já na ponta da chuteira, ela manda no ângulo um "recado" para o futuro.

Para a menina que sequer imaginava ser um dos pilares do time de Pia, "agradeceria muito por ter saído da zona de conforto para viver algo que, no começo não era o seu sonho ainda. Só agradeceria a ela por não ter desistido, por ter lutado e abdicado de muita coisa para poder viver o que eu consigo hoje. Falaria para ela que, se voltasse no tempo, faria tudo o que ela fez por mim".

Ary ainda mandou a frase clichê de "não desistir do seu sonho" e destacou a importância de ter uma base de apoio desde a infância.

No que diz respeito ao futuro, ela convocou amigos e familiares de jovens jogadoras a viver este sonho com elas: "Não vai ter nada mais prazeroso do que ver a pessoa que você gosta vivendo daquilo que ela ama fazer".

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