A última fronteira

Como Mourinho, Guardiola e até o Brexit encurtaram a distância entre os brasileiros e a Premier League

Thiago Arantes Do UOL, em Londres (ING) Mark Leech/Getty Images

Alisson; Emerson Royal, Thiago Silva, Gabriel Magalhães e Renan Lodi; Casemiro, Bruno Guimarães e Lucas Paquetá; Antony, Richarlison e Gabriel Martinelli.

O time acima nunca jogou junto. Mas os 11 jogadores foram chamados pela seleção brasileira no ciclo preparatório para a Copa de 2022. Além das convocações, eles têm uma outra coisa em comum: todos jogam atualmente na Premier League, a elite do futebol inglês. Três décadas depois de sua criação, a liga nacional mais rica do futebol europeu finalmente foi conquistada pelos brasileiros.

De acordo com dados da própria liga, são 33 jogadores brasileiros atualmente no torneio. Daria para escalar mais dois times inteiros, incluindo nomes como Ederson, Fabinho, Gabriel Jesus, Andreas Pereira, Danilo, João Gomes, Philippe Coutinho e Gustavo Scarpa. O número seria ainda maior caso fossem contados brasileiros de nascimento, como Jorginho e Emerson, naturalizados italianos, ou os espanhóis Rodrigo e Thiago Alcântara.

Um feito desta temporada é que pela primeira vez na história o Brasil é o país estrangeiro com mais jogadores na Premier, superando França e Espanha, tradicionais fornecedores de atletas para o futebol inglês. Das 20 equipes da elite, 15 têm brasileiros no elenco, incluindo os cinco primeiros colocados.

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Juninho Paulista fez sucesso no Middlesbrough na década de 90

Stop waffling about!

(Chega de enrolação)

A caminhada dos brasileiros no futebol inglês nem sempre foi fácil. Nos três primeiros anos da Premier League (a competição surgiu com este nome na temporada 1992-93), não havia brasileiros. Os três pioneiros chegaram na temporada 1995-96: Juninho Paulista e Branco, no Middlesbrough, e Isaías, no Coventry City.

A presença continuou tímida até a temporada 2007/08, quando finalmente o número de brasileiros na Inglaterra chegou a dois dígitos. Um ano antes, em 2006/07, o Campeonato Inglês tinha 7 jogadores do país - o Espanhol tinha 40, o Italiano, 35, e o Alemão, 30.

Os números levam a duas grandes perguntas. Por que os brasileiros invadiram a Premier League nos últimos anos? E por que essa invasão demorou tanto tempo para acontecer?

As respostas a essas perguntas passam por diversos fatores: de campos enlameados à legislação europeia. Do feijão doce ao Brexit. De José Mourinho a Pep Guardiola.

Brasileiros na Premier League 22/23

Shaun Botterill /Allsport
Kenny Dalglish, técnico escocês famoso por suas conquistas, comandou o Blackburn na temporada 1992/93

Sorry, we are closed

(Desculpe, estamos fechados)

Na busca por entender a relação entre os brasileiros e a Premier League, é preciso viajar a 1992/93. O campeonato nasceu com uma alma essencialmente britânica. No torneio inaugural, a Escócia liderava a lista de estrangeiros, seguida pelo País de Gales e pela Irlanda - que não forma parte do Reino Unido, mas é a vizinha mais próxima.

Os treinadores seguiam a tendência: no fim da temporada inaugural, eram 16 ingleses, 4 escoceses, um galês e um irlandês. O mesmo valia para auxiliares técnicos, preparadores físicos e diretores de futebol. Além, é claro, dos proprietários dos clubes. Era um torneio de britânico, com britânicos e para britânicos.

Enquanto os clubes das grandes ligas europeias faziam malabarismos para acomodar jogadores estrangeiros já nos anos 1980, obedecendo aos limites impostos pelas regras, a Inglaterra vivia em outro contexto.

Quando as leis da União Europeia chegaram ao futebol - transformando o limite de estrangeiros em um limite de jogadores de fora do bloco europeu -, os gigantes de Espanha, Itália, França e Alemanha foram às compras dentro do continente, mas também na América do Sul e na África. Os ingleses demoraram um pouco mais.

"Primeiro, a Premier League passou por um processo de europeização. Isso aos poucos foi tornando o ambiente mais internacional e começou a facilitar a adaptação de jogadores de outros países", explica Oliver Seitz, diretor da United World, empresa controladora do Sheffield United.

Os primeiros países da Europa continental a ganharem mais espaço foram França, Holanda e Noruega. A seleção nórdica que venceu o Brasil na Copa de 1998 tinha metade de seus convocados atuando no futebol inglês; entre os brasileiros daquele Mundial, nenhum jogava na Premier League.

GLYN KIRK/AFP Joelinton, atacante do Newcastle, festeja um gol na Premier League

Joelinton, atacante do Newcastle, festeja um gol na Premier League

Full English Breakfast

(Café da manhã inglês)

O atacante Joelinton, do Newcastle, é um dos 33 brasileiros que disputam a temporada 2022/23 do Campeonato Inglês. Às vésperas da final da Copa da Liga Inglesa, contra o Manchester United, em fevereiro, ele deu uma entrevista que foi publicada no programa oficial da partida.

Em suas respostas, o brasileiro menciona duas vezes o feijão inglês, para dizer, de forma bem-humorada, que o feijão brasileiro é "muito melhor". O que hoje parece brincadeira ou provocação, em outros tempos era o símbolo da distância entre atletas brasileiros e a Premier League.

O Full English - tradicional café da manhã britânico com ovos fritos, bacon, cogumelo, linguiça preta e feijão doce - é apenas um exemplo de diferenças que separam o Brasil da Inglaterra. O idioma, o frio, o clima e o estilo de jogo são outros fatores que também contribuíram para que os brasileiros não entrassem no radar dos ingleses na mesma proporção de outros países.

"Leva um tempo para testar a aptidão de uma determinada cultura em um ambiente local", explica Oliver Seitz. Com mais diferenças do que semelhanças entre o futebol inglês e o brasileiro, era natural que os jogadores do país fossem colocados do meio para o fim da fila de contratações.

Acho que eu tive uma parcela de contribuição para que isso pudesse acontecer: abrir portas para outros brasileiros. A Premier League é uma liga especial. Todo mundo sonha em jogar na Premier League hoje em dia. Todo brasileiro que pensa em jogar na Europa, pensa na Premier. Para mim é a melhor liga do mundo já há alguns anos"

Willian, meia do Fulham

John Peters/Manchester United via Getty Images
O português José Mourinho comandou o Chelsea em duas oportunidades e conquistou oito títulos

That's wicked!

(É fantástico)

A aproximação entre os dois mundos aconteceu de forma lenta e foi acelerada pelo desempenho de jogadores que viraram ídolos, como Juninho Paulista, no Middlesbrough, e Gilberto Silva, no Arsenal. Mas estrangeiros - concretamente portugueses e espanhóis - também ajudaram no processo.

As chegadas de José Mourinho ao Chelsea e Rafa Benítez ao Liverpool foram um marco. O sucesso de ambos abriu portas para uma "latinização" da Premier League, que se intensificou nas temporadas seguintes. "Isso significa que os clubes passaram a ter ambientes mais internacionais, e se tornaram mais preparados para ajudar na adaptação de jogadores", explica Seitz.

Outro marco foi a chegada de Pep Guardiola ao Manchester City, em 2016. O catalão mudou a forma de jogar dos Citizens e sua revolução tática teve influência em toda a liga. O futebol inglês, antes tão diferente quanto o café da manhã britânico, começou a se encontrar com o estilo brasileiro em muitos pontos.

ADRIAN DENNIS/AFP Willian, do Fulham, considera a Premier League o melhor campeonato nacional do mundo

Willian, do Fulham, considera a Premier League o melhor campeonato nacional do mundo

Mind the Gap

(Cuidado com o vão)

"Antes a gente falava em futebol inglês e pensava em lançamentos longos. Hoje muitas equipes jogam tocando a bola desde o goleiro, que saem jogando. Isso vem mudando bastante, os treinadores vêm colocando isso em prática", afirma o meio-campista Willian, hoje no Fulham, em entrevista ao UOL.

Aos 34 anos, ele é o brasileiro com mais jogos na história da Premier League. Um exemplo de sucesso que, em uma liga mais internacional - tanto em campo quanto no comando dos clubes -, encorajou a aposta em jogadores brasileiros.

"Acho que eu tenho uma parcela de contribuição para que isso pudesse acontecer: abrir portas para outros brasileiros. A Premier League é uma liga especial. Todo mundo sonha em jogar na Premier League hoje em dia. Todo brasileiro que pensa em jogar na Europa, pensa na Premier. Para mim é a melhor liga do mundo já há alguns anos", acrescenta o meia, que chegou ao Chelsea em 2013 e defendeu o clube por sete temporadas.

O êxito de brasileiros como Willian durante a fase em que a Premier League mais cresceu esportiva e economicamente teve um impacto grande na política de contratação dos clubes. Com a mudança tática, gramados melhores e equipes mais globalizadas, a busca por jogadores mais técnicos tornou-se um caminho natural.

"Eles reconhecem o talento do jogador brasileiro e vão atrás. Se o atleta conseguir se adequar ao estilo de jogo com mais contato, dá para fazer sobressair a parte técnica. Acho que a parte técnica é o que mais agrada ao pessoal da Premier League", avalia Gustavo Scarpa, em entrevista ao UOL.

Além de uma adaptação mais fácil ao "novo" estilo de jogo da Premier League, o perfil da atual geração de atletas brasileiros também ajuda: se antes os jogadores do país eram vistos com ressalvas por causa do comportamento fora de campo, agora eles se tornaram exemplos dentro dos clubes.

É o caso, por exemplo, de Bruno Guimarães, maior ídolo atual da torcida do Newcastle. O meio-campista já teve propostas para sair da equipe do norte da Inglaterra - inclusive do Real Madrid -, mas a diretoria bancou a permanência. Outro exemplo é Casemiro, líder do Manchester United em campo e considerado exemplo de comprometimento pelo clube inglês.

"O jogador brasileiro está mudando. Os mais novos estão chegando e se adaptando com mais facilidade ao futebol europeu, os próprios clubes estão ajudando nisso. O brasileiro está mudando a mentalidade, percebeu que precisa ser mais profissional, pensar mais na carreira", afirma o lateral-direito Vitinho, do Burnley, líder da Championship, a segunda divisão inglesa, e que já garantiu o acesso à Premier League. Na próxima temporada, ele deve engrossar a lista de representantes brasileiros na competição.

John Hobley/MI News/NurPhoto via Getty Images

What is Brexit?

(O que é Brexit?)

24 de junho de 2016. Um dia depois da votação que aprovou a saída da Inglaterra da União Europeia, a frase mais procurada no Google em território inglês foi "O que é Brexit?". Sem saber exatamente no que votavam, os habitantes do país decidiram dar ao governo a permissão para começar a rota de saída do bloco econômico.

A decisão dos ingleses nas urnas teve uma série de efeitos econômicos, políticos, sociais... E esportivos. A mudança das regras para contratação de jogadores europeus acabou por facilitar a ida de jogadores brasileiros para a Premier League.

Enquanto o Reino Unido era membro da União Europeia, a entrada de europeus obedecia às leis do bloco econômico; já para contratar jogadores latino-americanos, era necessário superar uma rígida política de imigração. O processo de obtenção do visto de trabalho sempre foi visto como um empecilho.

Com o Brexit, foi criado um novo sistema de pontuação para a obtenção do visto de trabalho, que passou a ser obrigatório também para os europeus. No sistema, o Campeonato Brasileiro foi colocado como uma liga de nível 3, ao lado das ligas de México, Argentina, Rússia e Escócia. Os jogadores precisam obter 15 pontos, que são conquistados pela participação em competições e via jogos da seleção nacional.

Na prática, essa classificação favorece que os clubes da Premier League contratem jogadores diretamente de clubes brasileiros, como aconteceu nos casos de Gustavo Scarpa e Danilo, ambos ex-Palmeiras, João Gomes, ex-Flamengo, e Andrey, destaque do Vasco em 2022. Entre todos eles, apenas Andrey não tem pontuação para estrear na Liga Inglesa e, por isso, foi emprestado pelo Chelsea ao próprio Vasco até o meio deste ano.

Com regras mais maleáveis e equipes confiantes no talento brasileiro, a tendência é que o número de representantes do país na liga aumente. "Conforme os jogadores vão dando certo, esse tipo de contratação direta de times do Brasil deve ser mais frequente", afirma Oliver Seitz.

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