Os reis da Copa

Como o Boca Juniors de Bianchi e Riquelme se transformou em pesadelo para brasileiros na Libertadores

Bruno Grossi Colaboração para o UOL, em São Paulo El Grafico/Getty Images

A camisa azul com faixa horizontal amarela no centro. Um estádio abarrotado de gente e hostil para os adversários. Um técnico esguio, com seu terno impecável e seus cabelos brancos cacheados na nuca resistindo à calvície. Um camisa 10 mágico, capaz de romper as fronteiras de uma das maiores rivalidades mundiais.

Houve um tempo em que eram poucos os brasileiros que não tinham pesadelos ao pensar no Boca Juniors e nessa mística que cercava o time treinado por Carlos Bianchi e estrelado por Juan Román Riquelme. Afinal, com os dois juntos ou em carreira solo, o Boca levantou quatro títulos de Copa Libertadores da América entre 2000 e 2007, sempre deixando sonhos brasileiros para trás.

Mas os feitos desse período histórico, que deram ao Boca a imagem de bicho-papão sul-americano, estão cada vez mais distantes. A realidade do clube hoje tem muito mais a ver com polêmicas, times contestados e uma duradoura freguesia para o arquirrival River Plate.

O Boca Juniors, por ser cabeça de chave do Grupo E, vai fazer os dois últimos jogos da fase de grupos dessa Libertadores em casa, justamente contra os dois principais rivais da chave. Hoje, contra o Corinthians, e dia 26 deste mês contra os colombianos do Deportivo Cali. Tropeçar nesses jogos em La Bombonera pode ser fatal, já que os adversários ainda encaram o frágil Always Ready, da Bolívia, como mandantes. Por enquanto, o Corinthians é líder com sete pontos, contra seis do Boca, cinco do Cali e quatro dos bolivianos.

El Grafico/Getty Images

Mas o que havia de especial naquele Boca dos anos 2000?

Houve quem preferisse culpar a arbitragem ou os tempos de "terra de ninguém" da Libertadores. Houve quem atribuísse as conquistas à genialidade de Riquelme e nada mais. Mas o que o Boca Juniors da era de ouro tinha de tão especial para conquistar quatro Libertadores em sete anos? O jornalista Roberto Leto, que cobriu o dia a dia do clube por 34 anos consecutivos e hoje é uma das caras da ESPN na Argentina, tenta explicar.

"Bianchi assumiu o Boca na época da Copa do Mundo na França, em 1998. O time vinha de dois vices por um ponto para o River e foi com ele que veio a transformação. Bianchi montou um time que detém até hoje o recorde de partidas invictas na Argentina. Foram 40 jogos, pegando duas campanhas de título nacional. Mas pelos regulamentos da época eles só chegaram à Libertadores em 2000. E isso foi bom, porque o time já estava mais consolidado e com mais personalidade", relembra Leto.

Além de Riquelme, alguns nomes se tornaram lendas em La Bombonera: o goleiro Córdoba, o lateral Ibarra, o zagueiro Samuel e os atacantes Schelotto e Palermo. Todos foram apostas de Bianchi, que se mostrava extremamente inventivo para mudar o time diante de lesões ou negociações de seus protagonistas.

"Foi com o corpo de 1998, em seu 4-3-1-2, que ele ganhou o Mundial de 2000 na que é considerada a maior partida da história do Boca, contra o Real Madrid. Em 2003, perdeu Riquelme, mas juntou Tévez e Delgado a Schelotto para ganhar de um Santos de Diego e Robinho e depois ganhar o Mundial de novo contra o Milan. Era um time super copeiro, com o maior jogador da história do Boca e o maior técnico da história do Boca, que já tinha conquistado a América e o mundo pelo Vélez, algo que nunca mais deve acontecer", completa o jornalista argentino.

Uma breve história das lendas

Alejandro Pagni/AFP

Carlos Bianchi

Antes de se tornar uma lenda como técnico, Bianchi construiu uma carreira sólida como atacante ao ser três vezes artilheiro do Campeonato Argentino pelo Vélez Sarsfield e cinco vezes do Campeonato Francês, três pelo Stade de Reims e duas pelo Paris Saint-Germain. Na França, também jogou pelo Estrasburgo e, no Reims, encerrou a vida de atleta e teve a primeira oportunidade como treinador. Na nova função, venceu uma Libertadores, um Mundial e três edições do Campeonato Argentino pelo Vélez Sarsfield, onde é considerado ídolo e recebeu o apelido de Virrey, em alusão ao bairro de Liniers, onde fica o clube, já que Liniers fora um vice-rei argentino no século 19. No Boca Juniors, foram três passagens, quatro títulos argentinos, três da Libertadores e dois mundiais.

Gabriel Rossi/LatinContent via Getty Images

Juan Román Riquelme

Riquelme também ganhou três Libertadores pelo Boca Juniors, além de cinco edições do Campeonato Argentino, uma da Copa Argentina, uma da Recopa Sul-Americana e uma do antigo formato do Mundial de Clubes. A carreira como atleta começou e terminou no Argentinos Juniors, clube que também revelou Diego Maradona. Riquelme ganhou ainda um Sul-Americano e um Mundial pela seleção argentina sub-20 e fez parte do time medalhista de ouro na Olimpíada de 2008, em Pequim. Na Europa, esteve no Barcelona por breves 42 partidas, mas fez história ao levar o modesto Villarreal a uma semifinal de Liga dos Campeões em 2006, quando perdeu um pênalti no último minuto do jogo de volta contra o Arsenal. Ao todo, foram 46 gols e 51 assistências em 143 jogos.

Coleção de vítimas brasileiras na era de ouro do Boca

  • 2000

    O reinado de Bianchi e Riquelme começou com a vitória na final da Libertadores de 2000 sobre o Palmeiras. Empates por 2 a 2, em La Bombonera, e por 0 a 0, no Morumbi, levaram o Boca à vitória nos pênaltis por 4 a 2.

  • 2001

    Para chegar ao bicampeonato consecutivo, o Boca deixou o Vasco para trás nas quartas de final com vitórias por 1 a 0 e 3 a 0. Nas semis, novo empate duplo com o Palmeiras (dois 2 a 2), nova vitória nos pênaltis: 3 a 2.

  • 2003

    Nas oitavas, o Boca foi surpreendido em casa pelo modesto Paysandu, mas se vingou no Pará com goleada por 4 a 2 para avançar. O tri veio diante do Santos, que sucumbiu com um doloroso 5 a 1 no agregado.

  • 2004

    A campanha do vice para o surpreendente Once Caldas teve como ponto alto eliminar o rival River Plate na semi. Antes, porém, mais uma vítima brasileira: 4 a 3 sobre o São Caetano nos pênaltis, nas quartas.

  • 2007

    Já sem Carlos Bianchi como técnico, mas com a volta de Riquelme, o Boca Juniors encontrou um brasileiro somente na final. E atropelou o Grêmio ao vencer por 3 a 0 em La Bombonera e 2 a 0 no Olímpico.

O Boca sempre tirou os times brasileiros na Libertadores, inclusive na primeira que conquistou, nos anos 70. E Bianchi marcou época por ter um domínio sobre o que os brasileiros tentavam fazer

Roberto Leto, jornalista argentino que acompanhou o Boca por 34 anos seguidos

A cada jogada, a cada carrinho, os jogadores olhavam para e ele estava vibrando junto. Isso faz a diferença

Elano , meia do Santos na Libertadores de 2003, sobre a figura de Carlos Bianchi

El Grafico/Getty Images
Riquelme chora ao conquistar título da Libertadores em 2000

As batalhas contra o Palmeiras

O Palmeiras ficou marcado por ser a principal vítima do Boca de Bianchi e Riquelme, mesmo sem perder nenhum jogo no tempo normal. O Verdão, que havia vencido a Libertadores de 1999 sob comando de Luiz Felipe Scolari, chegava confiante para o bi. Naquela altura, Bianchi também já tinha conquistado a América uma vez, em 1994, quando fez o Vélez calar o Morumbi contra o mágico São Paulo de Telê Santana e impedir um tricampeonato consecutivo ainda inédito para times brasileiros. Além da tensão óbvia da decisão, havia outra grande expectativa para a final de 2000.

"A preocupação maior era com o Riquelme e havia comparações entre ele e o Alex", lembra o jornalista Giovane Martinelli, que acompanhava o dia a dia do Palmeiras à época: "O Palmeiras foi bem melhor no primeiro jogo, sofreu com os erros da arbitragem e ficou com a sensação de que poderia ter conseguido mais (o jogo foi 2 a 2), mas que o título estava perto. A volta no Morumbi (0 a 0) foi muito ruim. O Palmeiras não conseguiu jogar. Nos pênaltis ainda tinha aquela confiança no Marcos, mas o Boca foi mais eficiente".

Em 2001, já sem Felipão, o Palmeiras reencontrou o Boca na semifinal e novamente decidiu seu destino nos pênaltis após dois empates por 2 a 2. O jogo de ida, em La Bombonera, ficou marcado por reclamações palmeirenses contra o árbitro Ubaldo Aquino. Na volta, um lance de Riquelme driblando o então zagueiro Argel Fucks seguidamente coroou o brilho do camisa 10 do Boca. E Alex, que havia marcado na ida, acabou errando o primeiro pênalti.

Sem piedade com Corinthians e suspeitas na arbitragem

A torcida do Corinthians, que hoje vai encarar um clima nada receptivo em La Bombonera, se uniu à do Boca Juniors para torcer contra o Palmeiras nas Libertadores de 2000 e 2001, a ponto de se tornarem populares camisas divididas ao meio dos dois clubes. Anos depois, o Corinthians contrataria Carlitos Tévez para compartilhar também um ídolo com o Boca. E, em 2012, coube ao time argentino ser o vice da conquista inédita dos alvinegros na Libertadores, encerrando uma longa piada dos torcedores rivais.

O Boca parecia ter nascido para o Corinthians, mas bastou Bianchi e Riquelme serem reunidos novamente para uma última dança para que o Timão entrasse na lista de vítimas xeneizes. Na Libertadores de 2013, oitavas de final, um duelo marcado por três erros graves do árbitro Carlos Amarilla e sua equipe e um golaço de Riquelme em Cássio tiraram do Corinthians o sonho do bicampeonato.

Arbitragem, aliás, sempre esteve no holofote na era dourada do Boca. O Palmeiras tem registrado até mesmo em seu site oficial a indignação contra o paraguaio Ubaldo Aquino pela semifinal de 2001. Os alviverdes reclamam de um pênalti inexistente marcado para o Boca, um ignorado para o Palmeiras e uma expulsão injusta. A raiva da torcida se transformou até em agressões à arbitragem do jogo de volta.

O Santos, vítima do Boca na final de 2003, reclamou de um pênalti em Diego, hoje no Flamengo, nos primeiros minutos do jogo de volta no Morumbi. O Grêmio, vice em 2007, viu um gol de Rodrigo Palacio ser validado mesmo com impedimento, além de contestar a expulsão do volante Sandro Goiano. No último ato de Bianchi e Riquelme juntos, já em 2013, houve o episódio Amarilla na vida do Corinthians

Hoje a Libertadores mudou muito, ficou mais saudável. Antes eram batalhas, desde a logística ruim na chegada do estádio, com torcedores acessando áreas nossas, árbitros sem câmeras? Jogar fora de casa era enfrentar mais que só o adversário

Elano, meia do Santos na Libertadores de 2003, em entrevista ao UOL Esporte

Eu credito a eliminação a ele, porque nós fizemos um jogo muito bom lá e merecíamos o resultado positivo

Celso Roth, técnico do Palmeiras em 2001, desabafou sobre o árbitro Ubaldo Aquino em entrevista ao UOL Esporte em 2018

Moacyr Lopes Junior-Folhapress
Time do Santos perfilado antes da final da Libertadores de 2003 em La Bombonera

Relato de uma 'vitima'

Elano era um dos principais jogadores do Santos vice-campeão da Libertadores em 2003

Aquele Boca era um time marcante. Não eram os melhores em tudo, mas conseguiam jogar a Libertadores de uma forma melhor, mais adaptada que os demais. Eles mesclavam experiência com raça. Era um time duro de ser batido, com treinador muito bom, atmosfera absurda no estádio. O que mais me marcou foi ver como uniam qualidade com espírito.

Na final de 2003, o Santos tinha um time muito bom, mas eles também eram muito fortes e nos impuseram muitas dificuldades. O Ricardo Oliveira não estava inteiro, eu não joguei, então o contexto foi favorável a eles. Em condições normais, seria mais de igual para igual.

O Carlos Bianchi desafiou muita gente e ganhou de técnicos experientes, como Telê e Felipão. Ele trouxe benefícios táticos para o Boca e alcançou marcas importantíssimas. Posso dizer que me tornei treinador pelo que aprendi com os técnicos com quem trabalhei junto, mas também pelos adversários que lidei. E a alma que o Bianchi impunha, além da qualidade, era bonita de se ver

Os filhos da Riquelmemania

Riquelme se tornou um jogador tão popular no Brasil, pela fama de carrasco dos times daqui, que seu nome deixou de ser apenas usado por crianças e adolescentes que brincavam de jogar futebol no começo dos anos 2000. Desde o ápice do craque no Boca Juniors até hoje, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística já registrou quase 15 mil pessoas batizadas como Riquelme, ou suas variações e estilizações, como Rikelme, ou Ryquelme.

Isso, naturalmente, tem reflexo no universo dos jogadores de futebol. Em recente matéria do UOL Esporte, foram identificados 49 atletas com nomes que homenageiam o ídolo argentino, com média de 18 anos de idade e presentes em clubes como Vasco da Gama, Corinthians, Botafogo, Cruzeiro, Flamengo e Fortaleza.

Rodrigo Valle/Getty Images Rodrigo Valle/Getty Images
AFP PHOTO / DANIEL GARCIA

Riquelme ainda vive o Boca; Bianchi quer 'anonimato futebolístico'

Passados oito anos de sua despedida do Boca Juniors como jogador, Riquelme segue presente no dia a dia do clube. No fim de 2019, a chapa que o ex-craque resolveu apoiar nas eleições presidenciais acabou vitoriosa e foi dado a ele o cargo de vice-presidente segundo. Ou, mais precisamente, responsável pelo departamento de futebol do Boca. Desde então, ganhou três títulos: um Campeonato Argentino, uma Copa Argentina e uma Copa da Liga. Riquelme mostra um perfil provocativo e personalidade forte em suas entrevistas e atitudes como cartola.

Enquanto Riquelme segue ligado ao futebol e ao Boca, Carlos Bianchi optou por um desligamento total do esporte. O ex-treinador agora só pensar em ficar com a família, dificilmente é visto em público e evita conceder entrevistas. Para esta reportagem, por exemplo, recusou educadamente o convite ao dizer que prefere manter seu "anonimato futebolístico".

Em abril de 2022, apareceu em fotos de uma reunião de sua antiga comissão técnica e, logo em seguida, foi visto em uma visita guiada pelo prédio do congresso argentino. Durante o passeio, segundo registrou o diário Olé, Bianchi brincou com os fãs, disse que não pensa em voltar a ser técnico e que o Boca deve dar tempo a Battaglia, além de comentar a frustrante temporada do PSG, clube que defendeu nos anos 1970, após a chegada de Lionel Messi.

Divulgação CARP
Palavecino comemora gol do River contra o Boca na Bombonera

Antes poderoso, hoje correndo atrás do maior rival

Carlos Bianchi e Juan Román Riquelme, os principais personagens deste especial, estiveram juntos no Boca pela última vez em 2014. Coincidentemente, o ano marca o início da era Marcelo Gallardo no River Plate e de temporadas de freguesia e crise para os xeneizes. No período, o Boca ganhou o Campeonato Argentino quatro vezes, uma Copa Argentina, uma Copa da Liga e uma Supercopa Argentina. A última conquista internacional do clube foi a Recopa Sul-Americana de 2008.

Nos tempos de Bianchi, o Boca se orgulhava de classificações épicas sobre o River nas Libertadores de 2000 e 2003, com momentos históricos como o "caño de espaldas" (ou caneta de costas) de Riquelme no zagueiro colombiano Yepes ou a comemoração de Tévez imitando uma galinha no Monumental de Núñez. Nos últimos oito anos, porém, a realidade é outra. O River ganhou uma Copa Sul-Americana, duas Libertadores e foi vice uma vez, sempre derrubando o Boca pelo caminho.

Os últimos anos no Boca têm sido bastante conturbados. Além de contratações badaladas sem resultado esportivo, como o italiano Daniele De Rossi, o clube tem precisado lidar com problemas extra-campo de seus atletas. O colombiano Sebastián Villa e o argentino Eduardo "Toto" Salvio, por exemplo, já receberam acusações de violência doméstica. Já o jovem Agustín Almendra, que brigou com o técnico Sebastián Battaglia - uma das figuras do Boca histórico de Bianchi, inclusive -, sofre pela exposição de sua família: a esposa é acusada de traficar pílulas abortivas e os tios, de comandar esquema de tráfico de drogas.

Jorge Blanco / Correspondente Jorge Blanco / Correspondente

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