A capital da bola

Conheça a cidade do Paquistão, país figurante no futebol, que costura 60% das bolas que nós usamos

Emanuel Colombari Do UOL, em São Paulo Warrick Page/Getty Images

O futebol ainda não era um esporte mundialmente popular na segunda metade do século 19, quando territórios de Índia, Paquistão, Bangladesh e Mianmar formavam a Índia Britânica na Ásia meridional.

Foi durante este período colonial que, em 1889, um militar britânico baseado na cidade de Sialkot percebeu que sua bola estava furada. Como levaria cerca de oito meses para uma peça de reposição chegar da Europa, ele optou por uma solução local: pediu a um costureiro, chamado Fazal Elahi, consertá-la.

Quando a bola estragou de vez, o mesmo costureiro o surpreendeu, confeccionando uma nova unidade. O militar gostou tanto do resultado que encomendou outras seis para seu regimento. No fim, recomendou os serviços do costureiro para outros militares que queriam bolas na região.

A partir daí, a produção de couro de Sialkot ganhou um novo destino: as selas de montaria foram substuídas. Passados 130 anos, a cidade com cerca de 650 mil habitantes na província do Punjabe se tornou simplesmente essencial para o futebol mundial. Sem exageros.

"Cerca de 60% de todas as bolas de futebol (feitas manualmente) são costuradas na cidade de Sialkot, nordeste do Paquistão. Os trabalhadores ganham, em média, o equivalente a 700 libras por ano, o dobro do salário médio no país. Algumas das bolas de futebol podem custar até 100 libras cada na Europa", relata o antropólogo norueguês Thomas Hylland Eriksen no livro "Globalization: the key concepts" ("Globalização: os conceitos-chave"), lançado em 2007.

"Ironicamente", lembra Eriksen no livro, "o Paquistão, viciado em críquete, é um dos países onde o futebol não é o principal esporte."

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O impulso da Primeira Guerra Mundial

O pedido de um militar a um costureiro local não basta para explicar como uma cidade no Paquistão virou o epicentro mundial das bolas de futebol. Para entender o cenário atual, é preciso percorrer todo o século 20.

Em 1904, o costureiro Fazal Elahi chamou Alla Ditta Sandal, filho de um primo, para trabalhar como seu aprendiz. Ele aprendeu tão bem que abriu sua própria oficina de costura de bolas com o pai. Então, Elahi contratou novos aprendizes, que também iniciariam negócios próprios no mesmo ramo.

Durante a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), com as fábricas britânicas produzindo poucas bolas de futebol, a produção de Sialkot começou a ser exportada para outros países. Não apenas para a Inglaterra, mas para países como Egito, Austrália, Canadá e África do Sul.

Assim, na metade da década de 1950, o Paquistão já exportava cerca de US$ 10 milhões em materiais esportivos. A cifra chegou a US$ 20 milhões na metade da década de 1960 e a US$ 90 milhões dez anos mais tarde.

No auge, entre 1997 e 1998, o Paquistão faturou US$ 547 milhões em exportações de materiais esportivos. Daí em diante, frente à concorrência do Leste Asiático, os números começaram a cair —mais ainda beiravam os US$ 350 milhões no início da década de 2010.

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A indústria local ganhou o mundo, mas a China virou uma ameaça

Como ocorreu essa explosão da indústria de bolas de futebol em Sialkot nas últimas décadas?

Segundo o artigo "On the Origins and Development of Pakistan's Soccer-Ball Cluster" ("Sobre as origens e o desenvolvimento do aglomerado das bolas de futebol do Paquistão"), lançado em 2016 pela World Bank Economic Review, uma publicação do Banco Mundial, boa parte do fenômeno pode ser explicado por políticas locais de fomento industrial.

No início da década de 1960, por exemplo, governantes paquistaneses elaboraram uma área industrial específica em Sialkot, com terrenos à venda por metade do preço original. Na década de 1970, as autoridades locais adotaram um esquema de descontos para exportações de produtos manufaturados, permitindo que fabricantes reivindicassem diversos impostos.

Criou-se, então, um cenário para um grande volume de exportações, em uma região que já tinha uma sólida cultura industrial —o que resultou, ainda de acordo com o artigo, no "boom das exportações das bolas de futebol nas décadas de 1980 e 1990".

Até 2016, o número de empresas que fabricavam bolas de futebol costuradas à mão na cidade era de pelo menos 130. "Entre as empresas em atividade em 2010, mais da metade foram criadas entre as décadas de 1980 e 1990, quando o programa de subsídios para exportação estava em vigor", diz o texto.

"Desde a metade da década de 1990, o aglomerado industrial de bolas de futebol de Sialkot tem enfrentado uma contração gradual (...). Embora mantenha uma posição de liderança entre as bolas de futebol costuradas à mão, o segmento tem perdido mercado para as bolas de futebol costuradas mecanicamente, que tendem a ter menos qualidade e são tipicamente fabricadas na China", explica.

Eric Verhoogen/Acervo pessoal Eric Verhoogen/Acervo pessoal
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Mais perto do que parece

Responda rápido: o que têm em comum Cristiano Ronaldo, Thiago Silva, Kevin de Bruyne, Paul Pogba, Mario Balotelli, Jorge Valdivia, Keisuke Honda e Edinson Cavani? A resposta: todos eles marcaram apenas um gol cada na Copa do Mundo de 2014, no Brasil, e todos com bolas de futebol feitas no Sialkot.

A empresa responsável pela fabricação da bola, que ganhou o nome de "Brazuca", foi a Forward Sports, uma das três empresas paquistanesas parceiras da Adidas para aquele torneio, todas com sede em Sialkot. Na Copa de 2018, a tabelinha entre Adidas e Forward Sports se repetiu.

"Foi uma honra termos sido selecionados para eventos tão prestigiosos", celebrou a fabricante paquistanesa, em contato com a reportagem.

Além da parceria com a Adidas, iniciada em 1994, a Forward Sports alega fornecer também para marcas como Puma, Diadora, Kappa, Lotto e Admiral, entre outras. Sem entrar em detalhes, porém, a Puma —que fornece bolas paras as ligas de Espanha e EUA— negou vínculo com a Forward Sports.

"Temos produzido bolas costuradas à mão, que é o nosso forte, nas últimas três décadas. Com o tempo, a tecnologia está evoluindo, portanto, a preferência também está mudando para bolas costuradas por máquinas e termicamente coladas. No entanto, a costura manual ainda permanece com a qualidade e a preferência de alguns de nossos clientes."

Procurada pelo UOL, a Adidas informou trabalhar atualmente com 16 fornecedoras do Paquistão, sendo seis de Sialkot —incluindo a própria Forward Sports.

A marca alemã não divulga números sobre produtos específicos, mas afirma que cerca de 127 milhões de produtos, como bolas e bolsas esportivas, foram adquiridas em 2019. O Paquistão é o segundo maior fornecedor deste total, com 22%, atrás da China (37%) e à frente da Turquia (18%). A Forward Sport também não divulgou dados, informando apenas poder fabricar até 750 mil bolas de futebol por mês.

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Trabalho infantil e escravo

Nem tudo é brilho nas décadas de história da indústria do futebol no Paquistão. Em 1996, uma reportagem da revista Life sobre o tema mostrava a foto de um menino de 12 anos identificado como Tariq costurando bolas de futebol. O registro não foi feito em Sialkot, mas em um vilarejo chamado Mahotra; mesmo assim, teve grande impacto internacional.

Dois pontos chamaram especial atenção. Primeiro: a baixa remuneração e a pouca idade de muitos funcionários de pequenas oficinas de costura. Segundo: a abrangência do problema. Era muito comum que as fábricas de Sialkot terceirizassem parte da produção, enviando peças para serem montadas por crianças em oficinas menos visadas pela fiscalização.

"A própria Comissão de Direitos Humanos do Paquistão estima que 11 milhões de crianças menores de 14 anos trabalhem seis dias por semana, nove a dez horas por dia, em insalubres trabalhos de moagem em galpões, fábricas de tijolos e ensolaradas lavouras. Elas representam um quarto da força de trabalho servil do país e seus números continuam aumentando. Há dois anos, a idade média das crianças que ingressavam na força de trabalho era de oito anos. Agora é de sete", dizia a reportagem da revista.

Grandes empresas precisaram se mexer a partir dali. A Nike, cuja marca tinha grande exposição em duas das bolas na fotografia que mostrava o trabalho de Tariq, se tornou protagonista do caso. Desde então, a empresa rompeu com fornecedores locais e levou adiante uma série de medidas alinhadas com a OIT (Organização Internacional do Trabalho, agência da ONU).

"A Nike se dedica a fabricar todos os seus produtos de forma ética, sustentável e a promover a transparência em sua cadeia de suprimentos. Todas as expectativas em relação aos fornecedores estão descritas no Código de Conduta e no Código de Padrões de Liderança da Nike", explicou a marca em contato com o UOL. "Desenvolvemos regularmente o nosso Código para aprimorar nossos padrões, que atendem ou excedem as diretrizes da Organização Internacional do Trabalho. Nós também rastreamos e auditamos cuidadosamente a conformidade dos fornecedores, compartilhando informações detalhadas sobre seu desempenho no Relatório anual de impacto da Nike."

Desde 2005, a Nike compartilha publicamente sua lista internacional de fornecedores, em um mapa que pode ser pesquisado por país, tipo de produto e nome do fornecedor. Além disso, a Nike é integrante da Fair Labour Association, uma ONG internacional que promove leis trabalhistas, e membro de várias outras organizações da área, como como o Grupo de Liderança para Recrutamento Responsável (LGRR) do Instituto de Direitos Humanos e Negócios e a Iniciativa Trabalhista da Aliança de Negócios Responsáveis (RLI).

Atualmente, a Nike trabalha com seis fabricantes no Paquistão, todas na província do Punjabe. São quatro em Lahore, uma em Faisalabad e apenas uma em Sialkot: a Silver Star Enterprises, empresa que fabrica bolas de futebol, luvas de goleiro, mochilas e roupas esportivas.

Hoje, a OIT avalia de maneira positiva a indústria esportiva local. Segundo Syed Saghir Bukhari, que encabeça o escritório da agência no Paquistão, a SCCI (Câmara de Comércio e Indústria de Sialkot) "alega que não há trabalho infantil ou trabalhos forçados na indústria de artigos esportivos de Sialkot".

"(O escritório da OIT no Paquistão) está trabalhando em estreita colaboração com os constituintes tripartite e está apoiando seus esforços para promover práticas comerciais sustentáveis ??e responsáveis ??na indústria de artigos esportivos de Sialkot", informou Saghir por e-mail. A SCCI, por sua vez, não retornou os contatos.

Em seu site, a OIT lembra o lançamento, em agosto de 2015, de uma iniciativa financiada pelo Japão com o apoio da Federação dos Empregados do Paquistão (EFP) para fomentar práticas de responsabilidade social na indústria do país. Desde 2016, diversos eventos têm reunido indústrias e autoridades locais para assegurar determinados parâmetros trabalhistas e sanitários na produção esportiva local.

"Os esforços em Sialkot serão aprimorados no contexto de um acordo de parceria único entre o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Tóquio 2020 e a OIT. A parceria busca promover o trabalho decente, promovendo práticas trabalhistas socialmente responsáveis ??entre os parceiros de entrega dos Jogos, com base nas orientações fornecidas pela Declaração de Empresas Multinacionais da OIT. A parceria incentivará as empresas a desempenhar um papel positivo na promoção do trabalho decente para alcançar o desenvolvimento sustentável até 2020", informa o site da OIT.

Ben Radford/Getty Images Ben Radford/Getty Images

E o futebol, mesmo?

Apesar da importância de Sialkot para o futebol mundial, a cidade tem pouco destaque no futebol local —que, como dito, não é exatamente uma modalidade que mexa com os sonhos dos paquistaneses.

Sialkot não conta com time na primeira divisão local (os mais próximos estão em Lahore, cidade a cerca de 120 km ao sul), ou mesmo com um estádio de futebol. A principal referência cultural do esporte mais popular do mundo na cidade é um monumento em uma rotatória, com uma bola sobre uma coluna, como que imitando um troféu. Mas a homenagem tem outro tipo de simbolismo, como conta Eric Verhoogen, professor do departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade de Columbia (EUA):

Aindústria das bolas de futebol é, definitivamente, uma das maiores indústrias da cidade, ao lado da de materiais cirúrgicos. Todo mundo reconhece isso. Há uma estátua de uma bola de futebol em uma importante via da cidade."

Verhoogen é um dos autores do artigo publicado pelo Banco Mundial em 2016 sobre a economia de Sialkot aqui citado. Após algumas visitas à cidade, ele conta que a indústria local do futebol não foi capaz até hoje de fomentar a modalidade na região.

As pessoas não acompanham futebol em Sialkot. Elas acompanham o críquete. As crianças jogam críquete na rua, as pessoas se aglomeram ao redor de TVs em vitrines para ver críquete."

A reportagem tentou contato com a Federação de Futebol do Paquistão (PFF), mas não obteve retorno. Em seu contato, por sua vez, a Forward Sports vê margem para o crescimento da modalidade."As pessoas estão mais inclinadas ao críquete e ao hóquei, mas ainda existe uma enorme base de fãs de futebol no Paquistão", acredita a empresa. "Trabalhamos a nível regional para apoiar o jogo. (Mas) há mais a ser feito em termos de instalações para engajar os jovens no futebol a nível provincial."

Em 2020, o Paquistão não teve equipes na Liga dos Campeões da Ásia ou na Copa da AFC (uma competição intercontinental secundária de clubes asiáticos). No ranking da Fifa divulgado em 17 de junho, o país ocupava a posição de número 200. Detalhe: a entidade tem apenas 210 seleções nessa lista.

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