"Eu quero ouvir o Olodum"

Supersticioso, Galvão Bueno transformou aparições do Olodum em amuleto de sorte do Brasil nas Copas do Mundo

Beatriz Cesarini e Talyta Vespa Do UOL, em São Paulo Raul Spinassé / Folhapress

Dez pessoas se reuniram em frente à televisão que a diretoria do Olodum colocou no Largo do Pelourinho, em Salvador, para assistir à estreia do Brasil na Copa do Mundo de 1990. O ritual se repetiu quatro anos depois. E nos quatro seguintes. Por aí, foi, até se repetir mais uma vez nesta quinta-feira (24), na estreia do Brasil na Copa do Mundo, torneio que vai marcar, ainda, a última Copa de Galvão Bueno.

Logo, a tevê virou telão, e aqueles primeiros dez gatos pingados se transformaram numa multidão. Foi com um empurrão da TV Globo —mais precisamente de Galvão Bueno— que se essa turma se transformou na torcida Brasil-Olodum. Os encontros de torcedores no ponto turístico da capital baiana se tornaram tradicionais. A projeção para valer veio, entretanto, em 2002, quando apareceram pela primeira vez na transmissão da Globo. O que era para ser um projeto nacional da emissora durante jogos, com atrações locais de cada região, fincou o Olodum na programação da Copa. Desde então, "eu quero ouvir o Olodum" é bordão de Galvão Bueno.

Galvão é supersticioso. Começou a narrar Copas do Mundo em 1974 e, até a conquista do tetra, acreditava ser culpa dele a ausência de vitórias brasileiras nos mundiais. Foi por isso o aliviado e abafado grito de "É tetra". Quando o penta veio em 2002, coincidentemente na Copa que deu palco à primeira aparição do Olodum em rede nacional, o narrador decidiu que o grupo se apresentaria ao vivo a cada quatro anos.

A torcida Brasil-Olodum do Pelourinho foi a primeira -e por muito tempo, a única- torcida organizada da seleção brasileira. Formada por um exército de percussão -são 120 percussionistas, além de cantores-, o grupo embala os lances de jogos do Brasil a cada Copa. No intervalo, são chamados por Galvão para uma aparição ao vivo. Com o narrador, firmaram laços fortes. A relação Globo-Olodum é duradoura, é uma marca da programação. Já a relação Galvão-Olodum se tornou pessoal faz tempo.

Arte UOL / Raul Spinassé / Folhapress
Arte UOL / Reprodução

A TV e a Copa

A partir do dia 20 de novembro, o mundo inteiro estará com os olhares voltados para a Copa do Mundo, que será realizada no Qatar. A maioria dos brasileiros acompanhará o maior evento de futebol do universo pela televisão.

É justamente esse aparelho que, ao longo dos anos, moldou a forma de o brasileiro torcer. Nesta série, o UOL Esporte relembra e conta a história de grandes momentos da televisão brasileira em Copas do Mundo, desde personagens icônicos e imprescindíveis no Mundial a simples frases que todos entoamos ao longo dos anos.

Mauro Akin Nassor / Folhapress / Foto arena Mauro Akin Nassor / Folhapress / Foto arena

A primeira vez

Galvão Bueno queria uma atração local de cada região do Brasil nos intervalos dos jogos da seleção em 2002. Pediu ajuda às afiliadas da TV Globo -uma delas, a TV Bahia, onde ouvia-se pelos corredores da editoria de esporte a discussão da pauta. A jornalista Wanda Chase sugeriu, então, que os produtores procurassem o Olodum.

Explicou que o grupo se reunia para assistir aos jogos no Pelourinho e que, de repente, poderiam topar criar algo a mais para Galvão. Wanda conta ao UOL que a ideia foi rapidamente aprovada pela chefia, que pediu que ela fizesse a mediação com os músicos. A jornalista militante do movimento negro, já conhecia o presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues, e já tinha sido conselheira do grupo.

Wanda fez a ponte. Deu certo. O jogo entre Brasil e Turquia começaria às 6h. Às 4h, os músicos deveriam estar a postos para testes de luz e som. Por precaução, a jornalista deixou em stand by, também, o grupo feminino Didá: "Precisava de um plano B para caso tivesse algum imprevisto com o Olodum". Parecia premonição.

Didá é um grupo de samba reggae criado por Neguinho do Samba, mas, hoje, formado apenas por mulheres. As moças toparam ficar de sobreaviso, e foram necessárias. Pouco antes do jogo, alguns músicos do Olodum ainda não tinham chegado, e Wanda precisou correr até as meninas. "Quando cheguei na sede da Didá, todas já estavam arrumadas, maquiadas, com o cabelo impecável. Estavam prontas".

Eduardo Knapp / Folhapress Eduardo Knapp / Folhapress

A primeira que virou última

A Didá começou a batucada na primeira entrada chamada por Galvão. À medida que os percussionistas do Olodum foram chegando, se juntaram às mulheres, e os dois grupos entraram juntos ao vivo depois do segundo tempo. Maestrina da Didá, Ivone Cruz, 35, diz que o entusiasmo do grupo foi tanto, naquele dia, que só faltavam jogar o instrumento para cima. "A vontade de querer passar nosso axé ficou maior".

"Foi bonito", diz Wanda. A mudança repentina, ela conta, faz com que o grupo, até hoje, seja equivocadamente chamado de "banda feminina do Olodum".

Para as transmissões seguintes, Wanda teria sugerido aos produtores da TV Bahia que Didá e Olodum permanecessem tocando juntos, devido ao sucesso da primeira transmissão -e do galhaço que as meninas quebraram aquele dia. Ivone diz, no entanto, que não aconteceu. Aquela aparição foi a primeira e única da Didá na Copa. O Olodum continua.

Raul Spinassé / Folhapress Raul Spinassé / Folhapress

O amuleto

A permanência do grupo nas transmissões chamadas por Galvão Bueno fazem parte de uma das tantas superstições do narrador. Se o penta veio com Olodum, não dá para contar com a sorte para o hexa. É o que explica João Jorge ao UOL:

"Galvão viu o Olodum como um pé quente, algo positivo, ao mesmo tempo em que explica Salvador, o Pelourinho, a comunidade e a cultura negra. Havia uma espera de muitos anos, e ele anotou isso como um padrão. Ele associa a cultura negra a algo positivo para a seleção brasileira. Isso é muito bom."

A transmissão fez com que o público se animasse a assistir às partidas no Pelô junto do Olodum na torcida. No primeiro jogo, não havia nem 15 pessoas. Depois da transmissão, o segundo jogo reuniu quase 100, segundo João Jorge.

"No terceiro jogo do Brasil em 2002, já tinha 2 mil pessoas na nossa torcida. À medida que o Brasil foi ganhando, o número foi crescendo, e a gente precisou criar uma estrutura: palco, som, luz, LED, telão. Virou um evento ver o jogo no Pelourinho", diz.

O Olodum foi um acaso. O Galvão sempre falava: 'vai ter que ter Olodum, hein? Vamos encurtar os outros para ter o Olodum'. Virou uma coisa meio de superstição mesmo.

Arnaldo Cezar Coelho

O Olodum é o grito da negritude. É um grito antirracismo. O Olodum conta a história do nosso país.

Galvão Bueno

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Relação benéfica para ambos

O Olodum, há 20 anos, vê as aparições na televisão aberta como uma relação entre cultura e esporte. Seis meses antes de os jogos começarem, começam os ensaios. Músicos, organizadores, produtores. Todos se reúnem para a festa, que, como de praxe, será transmitida a milhões de brasileiros país afora.

O grupo não recebe qualquer quantia pelas transmissões, de acordo com João Jorge, que descreve os eventos como "uma ação conjunta sem ganhos financeiros". "Galvão não nos cobra, nós não o cobramos, mas emprestamos o prestígio do Olodum à seleção brasileira; assim como a seleção nos empresta seu prestígio de supercampeã. É um contraste de símbolos. De um lado, o futebol. Do outro, a cultura negra. Tudo se relaciona. É bonito de ver".

A partir de 2002, o Olodum começou a ter mais visibilidade; o grupo ganhou dimensão fora das grandes capitais brasileiras. É, também, a esse benefício que João Jorge se refere. "Rola uma publicidade indireta fantástica para o Olodum, e temos sabido aproveitar isso trazendo apoio para a escola, para as atividades educativas e musicais e, ao mesmo tempo, conseguindo apoio de grandes empresas".

Raul Spinassé / Folhapress Raul Spinassé / Folhapress

Será o fim?

João Jorge descreve a relação entre Olodum e Galvão como algo mais humano -até mesmo no aniversário do narrador o grupo já esteve, convidado pessoalmente pela esposa de Galvão, Desirée. O narrador recebeu, da Bahia, o título de cidadão soteropolitano.

Existe algo que transcende a Rede Globo, "uma relação fraterna", como descreve o presidente do Olodum. "Ele vê no Olodum algo positivo no Brasil, e nós vemos no Galvão a voz, o coração e a alma do futebol brasileiro".

Será, no entanto, a Copa do Qatar a última a ser narrada por Galvão Bueno. Fim de um ciclo para uma geração de apaixonados por futebol e pelo Brasil. Será o fim de um ciclo para o Olodum também? João Jorge acredita que não, e se diz pronto para 2026.

"Cada vez mais, a pauta sobre racismo no futebol está em alta. Então, mais do que nunca, acho que o Olodum deve fazer parte disso. Pensamos para 2026 uma ação nessa pegada, antirracista, a favor da cultura, em prol da identidade brasileira plural e entendendo o futebol como o mais democrático dos esportes".

Aprendemos, então, a abrir os jogos tocando o hino nacional com a percussão do Olodum. O samba-reggae se apropriou do hino para dar a ele a dignidade de todos os brasileiros.

João Jorge Rodrigues, presidente do Olodum

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