Pura bagunça

Com regulamento esdrúxulo e virada de mesa, Copa João Havelange levou Brasileirão ao caos e iniciou nova era

Marcel Rizzo, Pedro Lopes e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Allsport UK/ALLSPORT

"Esse campeonato foi um assombro... uma coisa, assim, horrorosa de se ver. A forma como foi conduzida a competição, como foi feita, porque foi feita. Não é o ideal", diz Euller, pensativo, ao conceder entrevista ao UOL Esporte. "Mas tivemos que passar por tudo isso, a equipe dentro de campo foi provando o seu valor e o título veio com a imensa satisfação".

O assombro ao qual o ex-atacante se refere é a Copa João Havelange, uma edição alternativa do Campeonato Brasileiro, única e esdrúxula, que deu seu pontapé inicial há 20 anos, no dia 29 de julho de 2000. Um timaço do Vasco da Gama que, além de Euller, tinha também Romário e dois Juninhos —o Paulista e o Pernambucano—, levantou a taça, mas a caminhada rumo ao título virou apenas uma das várias histórias que cercaram a polêmica competição.

Duas décadas depois, a João Havelange sobrevive ao tempo, imponente como um farol, um brilhante lembrete dos limites da falta de organização do futebol brasileiro, e um testamento sobre o quão insólitas podem ser as soluções criadas para enfrentá-la. Um feito que, desde então, não foi igualado, ainda que o Brasileirão tenha tido outros momentos de turbulência nos anos que se seguiram.

Considerado por muitos o maior tapetão já costurado e puxado pela Confederação Brasileira de Futebol e seus filiados, o torneio reuniu 116 clubes de várias divisões, divididos em quatro módulos, com grandes diferenças de regras e formatos entre cada um deles. Se por um lado consagrou o Vasco cheio de estrelas, a disputa foi palco de trajetórias de contos de fadas de equipes menos tradicionais e adicionou várias novas páginas ao folclore do futebol brasileiro.

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Brasileirão: nome novo e uma salada de mais de 100 times

Para que se possa tentar entender como surgiu a João Havelange, é necessário olhar para 1999, o ano que a antecedeu. A competição foi simplesmente uma solução mirabolante e desesperada para um caldeirão de problemas que atingiu o Brasileirão. A receita teve uma transferência irregular, intervenções do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) e uma enorme batalha judicial que acabaria impedindo a CBF de organizar a edição de 2000 do campeonato nacional nos moldes habituais.

Tudo começou com o atacante Sandro Hiroshi, que defendia o São Paulo, mas teve seu passe bloqueado por irregularidades na transferência entre seus dois clubes anteriores, o Tocantinopólis e o Rio Branco-SP. O clube do Morumbi, entretanto, escalou o jogador em dois confrontos enquanto o bloqueio estava vigente, contra Botafogo e Internacional.

Os dois clubes estavam envolvidos na luta contra o rebaixamento, e acionaram o STJD alegando que Hiroshi teria sido escalado de forma irregular. A Justiça Desportiva deu ganho de causa a ambos, transferindo os três pontos do jogo ao Botafogo (que tinha sido derrotado), e dois ao Internacional (tinha empatado a sua partida).

A mudança livrou o Botafogo da queda e passou a rebaixar o Gama que, inconformado, recorreu à Justiça Comum. Os tribunais adotaram uma visão diferente da Justiça Desportiva e deram ganho de causa ao clube do Distrito Federal, determinando sua manutenção na Série A. A CBF, então, se viu entre duas decisões conflitantes e impossibilitada de elaborar um regulamento que atendesse a ambas.

A solução foi fechar um acordo e transferir a organização do Brasileiro de 2000 para o Clube dos 13, entidade que reunia os maiores times do país. A ideia era fazer uma competição com divisões, sem a presença do Gama na elite, mas o time do DF conseguiu, também na Justiça, assegurar sua participação. Temendo um efeito cascata e o aprofundamento de uma guerra judicial, a CBF finalmente ratificou a realização da João Havelange com 116 clubes e quatro módulos, mas sem as tradicionais divisões.

Tinha tanto módulo, que, quando vi, falei: 'Caraca, como é que a gente vai chegar a título aí? É módulo não sei o quê, e vem Palmeiras, e vem não sei quem'. A gente não chegava nunca a título. Então, campeonato de dois turnos está bom demais: pra mim o melhor tipo. Campeão, ganhou. Porque você dá condições de fazer um planejamento diferente. Agora, módulos? Eu pensava: vai aparecer módulo cor de abóbora, tinha de tudo quanto era cor

Jair Picerni, técnico vice-campeão da Copa JH pelo São Caetano

Tente entender a lógica da JH

  • O torneio reuniu 116 clubes -- apenas 12 a menos em relação aos 128 que hoje são distribuídos pelas Séries A, B, C e D do Brasileirão.
  • Em vez de clubes divididos por divisões, o Clube dos 13 usou a terminologia de "módulos": Azul, Amarelo, Verde e Branco -- os dois últimos, na prática, eram um só módulo com divisão regional.
  • Na fase final, times dos quatro módulos tinham chance de ficar com o título, com 12 classificados do módulo azul, 3 do Amarelo e 1 do Verde e Branco classificados para o grande mata-mata.

O módulo Azul

O módulo azul acomodou 25 clubes: os 17 remanescentes da Série A do ano anterior, dois clubes que subiriam da Série B, Botafogo (mantido na elite por decisão do STJD), Gama e Juventude (que não foram rebaixados) e mais três clubes (praticamente convidados, beneficiando Bahia e Fluminense).

Formato:

Oos clubes jogaram um turno único e os 12 primeiros se classificaram para a fase final.

O módulo Amarelo

O módulo Amarelo tinha 36 clubes, sendo 15 que jogariam originalmente a Série B e mais 21 convidados.

Formato:

Os clubes foram separados em dois grupos, com todos jogando contra todos em turno único. Os oito primeiros de cada grupo avançaram para um mata-mata à parte. Os finalistas se classificaram para a fase decisiva, assim como o vencedor de uma disputa pelo terceiro lugar.

Houve ainda a definição de um campeão para o módulo, que, na prática, não valia nada.

Os módulos Verde e Branco

O módulo Verde tinha 28 clubes que jogariam a Série C das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O módulo Branco, 27 clubes que jogariam a Série C das regiões Sul e Sudeste.

Formato:

Os clubes do Verde foram divididos em quatro grupos de sete (Fase 1 na imagem). Os do Branco, em três grupos de sete e um de seis (Fase 1). Os times se enfrentaram dentro de seus grupos em turno e returno e os três primeiros passaram para uma segunda fase.

Foram formados, então, seis grupos de quatro times, ainda divididos em módulos (Fase 2). Novamente, jogaram em turno e returno, classificando o primeiro de cada grupo, mais os dois melhores segundos colocados.

Numa terceira fase, houve uma fusão dos dois módulos, com oito clubes divididos em dois grupos de quatro (Fase 3), de novo com confrontos em turno e returno.

Os dois primeiros colocados de cada grupo, então, disputaram uma final em ida e volta para definir o último classificado para a fase final da Copa JH.

A fase final

Na fase final, os times que se classificaram dos quatro módulos tinham chance de ficar com o título: os 12 classificados do módulo Azul, os três do Amarelo e o sobrevivente dos módulos Verde e Branco. Os times foram chaveados em um grande mata-mata.

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Grandes foram beneficiados e João Havelange deixou legado de memes e provocações

No pacote da João Havelange, clubes tradicionais, que não tinham nada a ver com a guerra jurídica, foram beneficiados. O Fluminense, que tinha disputado a Série C do Brasileirão em 1999 e obtido a promoção para a Série B, foi incluído no Módulo Azul da nova competição, onde estava a elite do futebol brasileiro, sem ter que passar pela segunda divisão.

A imagem entre rivais do Fluminense de um clube costumeiramente beneficiado pelo tapetão, assim como a brincadeira do "paguem a Série B" que se repete até hoje, são cria da Copa João Havelange. O Flu fez boa campanha no peculiar torneio, ficando na terceira colocação do Módulo Azul. No ano seguinte, com o retorno do Brasileirão tradicional, foi incluído diretamente de volta na primeira divisão.

O clube das Laranjeiras sempre se defendeu alegando que não foi ele, afinal, que entrou com as ações pela escalação de Sandro Hiroshi, que defendeu a inclusão do Gama na elite do futebol brasileiro ou que acionou a Justiça.

No mesmo movimento veio o Bahia, que havia jogado a Série B em 99 e não conseguiu obter a promoção dentro das quatro linhas. Na João Havelange, os baianos foram também colocados no Azul, ao lado dos principais clubes do país.

Os clubes grandes do Brasil têm de ser preservados, pois têm 100 anos de tradição. Vamos trabalhar para que os fundadores do Clube dos 13 estejam livres de qualquer regra de rebaixamento

Eurico Miranda, dirigente do Vasco, que foi um dos principais idealizadores da Copa JH, em declaração à época. Ele morreu no ano passado

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Dentre os pequenos, surge o São Caetano

Nenhuma história de ascensão de um clube sem tradição neste século se compara à do São Caetano. A Copa João Havelange marcou o primeiro passo da fase inesquecível do time que ficou conhecido como Azulão, e que chegaria à final da Libertadores em 2002. A escalação com Sílvio Luiz; Japinha, Daniel, Serginho e César; Adãozinho, Claudecir, Aílton e Esquerdinha; Adhemar e Wágner, sob o comando de Jair Picerni, está fresca na cabeça de vários brasileiros 20 anos depois.

O clube paulista chegou à João Havelange com apenas dez anos de "idade", tendo feito sua primeira partida oficial em 1990. O elenco da disputa em 2000 era impulsionado por um patrocínio da Cônsul, e uma relação não assumida com o investidor Saul Klein, um dos donos das Casas Bahia. A campanha começou no Módulo Amarelo, onde se concentraram os times que haviam disputado a Série B no ano anterior.

O São Caetano foi finalista do Modulo Amarelo, e com isso se classificou para a fase final, de mata-mata, da competição. Ali, teve uma trajetória histórica: eliminou, em sequência, Fluminense, Palmeiras e Grêmio, para fazer a final com o Vasco. A Copa João Havelange terminou, então, da mesma forma que começou, com polêmicas e interferências de fora das quatro linhas. Em três partidas, uma delas interrompida pela queda do alambrado de São Januário, o Azulão teve sua ascensão interrompida.

Interrompida não significa, entretanto, encerrada. Os próximos anos mostraram que a campanha histórica não foi acidente, e o São Caetano ameaçou se tornar uma potência do futebol brasileiro. Em 2001, foi vice-campeão brasileiro. Em 2002, quase chegou no topo da América, perdendo a final da Libertadores para o Olimpia, do Paraguai, nos pênaltis. Em 2004, sagrou-se campeão paulista.

No mesmo ano do título estadual, abateu-se sobre o clube sensação do futebol nacional a tragédia que viria a ser um divisor de águas. No dia 27 de outubro, o zagueiro Serginho, de apenas 30 anos e um pilar na curta e vitoriosa história do São Caetano, teve uma parada cardíaca durante o confronto contra o São Paulo, no Morumbi, e faleceu. Nos anos seguintes, os bons resultados foram, aos poucos, rareando. Dez anos após a tragédia, em 2014, o São Caetano ficou de fora de todas as divisões do Brasileiro pela primeira vez. Atualmente, o clube disputa a Série D do Brasileirão e a A2 do Paulista.

Almeida Rocha/Folhapress

Um bate-bola com Adhemar, artilheiro da João Havelange

UOL: Um intruso após a "virada de mesa"?

Adhemar: Para não colocar "Campeonato Brasileiro" a CBF colocou João Havelange para disfarçar. Na verdade aproveitou o momento pra dar uma virada de mesa, trazer o Fluminense pra primeira divisão, trazer o Bahia para a primeira divisão. Não contavam que um time do Módulo Amarelo [o São Caetano] fosse chegar numa final, eles achavam que nas oitavas de final os times do Módulo Azul eliminariam todos do Amarelo, e aí ficaria todo mundo feliz".

Nem a 'família Azulão' podia imaginar aquela arrancada?

"Por mais que houvesse otimistas dentro do grupo, não acreditaria que a gente ia chegar numa final. O time, quando eu cheguei em 1997, tinha brigado pra não cair para a Série B do paulista, estava na série A-3, e, de repente, você está em 2000 numa final de Brasileiro. Ali exitiu a familia Azulão, porque além de a gente estar todos os dias dentro do campo, treinamento, viagens, hotéis e tudo, a gente saía do treino e ia para o shopping juntos, as crianças ficavam juntas, então tinha alguns grupinhos, cinco ou seis de um lado, cinco ou seis do outro que eram todos ligados. Você chegava no campo e ajudava o seu amigo. Eu olhava meu companheiro no olho e sabia como ele estava sem ele falar uma palavra.

A artilharia da João Havelange: à frente de Romário, mesmo?

Eu fui o artilheiro em 2000, com 22 gols, fui o artilheiro principal. Passei o Romário, passei o Dill, do Goiás e o Magno Alves, do Fluminense. Ser o artilheiro principal foi o reconhecimento de uma carreira toda ter valido a pena, porque as vezes você passa no esquecimento dentro do futebol, você joga em vários clubes, mas ninguém te conhece porque você não pega um clube certo no momento certo ou um campeonato certo. Eu vinha no banco porque o Tulio Maravilha era o titular. O São Caetano tinha condições de contratar um centroavante de nível de seleção brasileira, porque o Túlio foi pra lá ganhando quase R$ 100 mil em 2000. O Jair Picerni chegou para mim e falou: 'Ô, bicho do mato, ô, caipirão, eu não vou contratar ninguém pra essa Copa João Havelange.

As zebras motivaram a adesão aos pontos corridos?

É uma situação inusitada. Ali um time da série C poderia ter se tornado campeão brasileiro. Todos os paises têm divisões, série A, B, C. Como eu estou na terceira divisão eu sou campeão brasileiro? Então foi uma coisa atípica, mas tem um detalhe. Naquele ano de 2000, foi um papelão: começou errado e terminou mais errado ainda. E aí chegou-se à conclusão de que tinha que moralizar o futebol brasileiro. Acho que a partir daquele campeonato começou-se a pensar em pontos corridos e a moralizar o campeonato: 2002 foi o último campeonato de mata-mata, depois vieram os de pontos corridos em 2003, com aquele timaço do Cruzeiro.

Meu time era muito guerreiro, nós não tínhamos um centro de treinamento, essas coisas assim. Tinha treino de sábado, que eu ia lá fazer os meus escanteios, umas faltas, nada mais do que isso. O jogo era domingo, e os associados do clube eram poucos, mas eles queriam o campo pra fazer as peladinhas deles, tomar a cervejinha e nadar [risos], e era o nosso treino de apronto. Pô, valia título...

Jair Pircerni

Tinha que ser mágico, e isso aconteceu na Copa João Havelange. Eu tive proposta do Japão, não fui. Tive proposta do Inter, e não fui, porque no São Caetano.. Tem umas coisas que veem na cabeça: eu queria ser o cara diferente, tinha muita gente boa na época, bons técnicos, mas eu queria ser o melhor e ganhar tudo, dinheiro à parte, nada a ver o quanto ganhava Luiz Felipe (Scolari) Luxemburgo, esse pessoal todo

Jair Picerni

Abrindo as portas para o futebol brasileiro profundo

Para além do formato dificil de entender, das inúmeras polêmicas fora de campo e do Vasco liderado por Romário, a Copa João Havelange foi território fértil para histórias de superação de clubes menores. O São Caetano, finalista, mereceu seu próprio capítulo. Além dele, entretanto, houve quem tenha escrito no bizarro campeonato algumas das páginas mais importantes de sua história:

Reprodução

Malutrom-PR

O Malutrom entrou no torneio pouco conhecido pelo seu futebol. As poucas linhas dedicadas ao clube paranaense na imprensa nacional tinham outro foco: era uma rara equipe constituída como empresa. O Malutrom foi campeão dos Módulos Verde e Branco, garantindo vaga na fase final. Foi eliminado pelo Cruzeiro. Do elenco saiu uma revelação: Tcheco, que vestiria as camisas de Santos, Coritiba, Grêmio e Corinthians. O clube depois mudaria de nome (para JMalucelli) e hoje está inativo.

Reprodução

Paraná Clube

O regulamento não chamava nem de título nem de Série B, mas a torcida do Paraná Clube encarou a conquista do Módulo Amarelo como título da Segundona -- já que os rivais eram, de fato, os principais clubes do segundo escalão do futebol brasileiro. A principal revelação era o meia Lúcio Flávio. O Paraná ainda chegou às quartas da fase final após eliminar o Goiás nos mata-matas. O time caiu diante do campeão Vasco por placar agregado de 3 a 2, após vencer o jogo de volta por 1 a 0.

Reprodução

Uberlândia-MG

O Atlético-MG disputou a JH com praticamente dois times: o principal, no Módulo Azul, e o Uberlândia, com nove atleticanos emprestados com salários pagos pelo Galo. Seis deles foram titulares (Bosco, Braulio, Carlão, Genalvo, Sandrinho e Paulinho Guará). A "filial" perdeu a final dos Módulos Verde e Branco para o Malutrom. Hoje, a Fifa proíbe dois clubes do mesmo grupo disputando a mesma competição -- de todo modo, a parceria Galo e Uberlândia era apenas "informal".

Ormuzd Alves/Folhapress

Copa terminou como começou: com polêmica, queda de alambrado e final em três jogos

O relógio marcava 23 minutos do primeiro tempo do segundo jogo entre Vasco e São Caetano, pela final da Copa João Havelange —o primeiro, três dias antes, terminara com um empate em 1 a 1 no Palestra Itália, em São Paulo— quando Romário sentiu um desconforto muscular, e o placar de São Januário anunciou que ele seria substituído por Viola. A reação nas arquibancadas foi de revolta, e uma briga entre torcedores vascaínos eclodiu.

Poucos instantes depois, uma avalanche humana derrubou o alambrado do estádio do Vasco, e centenas de torcedores feridos começaram a despencar em várias partes do gramado. A partida de futebol deu lugar à uma operação de resgate com ambulâncias e helicópteros. Não houve mortes, mas uma conta de feridos superou os 150 e significou que o torneio não conheceria seu campeão naquela tarde de 30 de dezembro.

Passados quase 20 anos, ainda há quem questione o que aconteceu naquele dia. "João Havelange foi o jogo contra o Vasco? Aquela armação lá que derrubaram o alambrado?", questiona Jair Picerni, técnico do São Caetano na partida. "Lógico que foi [armação]. Teve gente que caiu dentro do campo e não levantava, eu falava 'amigo, levanta aí, não fica deitado aí não [risos]. Não podia cair só um pedacinho ali no canto, né? Não aqui criticando o Vasco, cada um na sua, mas não poderia cair, né? 12 mil pessoas são 12 mil pessoas. Não teve problema nenhum, a solução foi parar o jogo mesmo. Foi pior para nós [São Caetano] porque estávamos bem preparados. Parece que o Romário teve uma lesão, entrou o Viola, que também era um bom jogador, mas não era igual ao Romário. Dava para a gente dar um jeitinho no Vasco ali".

O confronto foi interrompido, e remarcado apenas para o dia 18 de janeiro. Alguns jogadores do São Caetano já entraram em campo negociados com outros clubes, e o que quer que tenha afligido Romário já era passado. O Baixinho, aliás, fez o que sabia fazer de melhor, marcando um dos três gols na vitória por 3 a 1 que garantiu o título do Vasco em São Januário.

Sem receber um real sequer de Sílvio Santos, o Vasco colocou mais lenha na fogueira ao entrar em campo com a marca do SBT estampada em seu uniforme. Tudo foi parte de uma estratégia que tinha como solitário objetivo alfinetar a Globo: Eurico Miranda havia ficado ofendido com a cobertura da emissora sobre o incidente em São Januário. O mandatário vascaíno não gostou de ser retratado como alguém que defendia a retomada a partida, e sempre disse que estava preocupado em socorrer as vítimas e os feridos. A peripécia levaria à criação de novas regras para a exposição de marcas nos uniformes do futebol brasileiro.

Um dos Campeonatos Brasileiros que são inesquecíveis e dentre os mais fáceis de vir a memória é o de 2000. João Havelange, São Januário e São Caetano: esses três nomes são os mais lembrados

Adhemar, artilheiro do São Caetano e do campeonato nacional

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O campeão Vasco tinha timaço com brigas internas e trocou técnico a dez dias da final

É impossível negar a qualidade do time do Vasco que venceu a Copa João Havelange —o quarteto ofensivo com Juninho Pernambucano, Juninho Paulista, Euller e Romário, por si só, era capaz de provocar pânico em qualquer defesa. Nos bastidores, entretanto, o estilo centralizador do folclórico Eurico Miranda criou um conflito que resultou em demissão de treinador a dez dias da final.

Oswaldo de Oliveira fazia um trabalho quase livre de questionamentos: semifinalista da João Havelange e classificado para a final da Copa Mercosul, para enfrentar o Palmeiras. A derrocada de Oswaldo começou quando o comandante vascaíno simplesmente decidiu abraçar o técnico do Cruzeiro, Luiz Felipe Scolari, antes do início da primeira partida da semifinal nacional, em São Januário. Felipão era um desafeto de Eurico.

O Vasco abriu 2 a 0, mas acabou cedendo o empate. Depois do confronto, Oswaldo queria dar o domingo de folga aos atletas e marcar a reapresentação para 16h da segunda-feira. Eurico, entretanto, estava revoltado com o resultado, e exigiu o retorno para às 9h da segunda. "Não gostei desse abraço e não tem sentido o time ficar sem atividade durante 48 horas quando vai decidir um título. Ordenei a mudança para a parte da manhã até porque tinha jogadores viajando para Salvador, Curitiba e São Paulo", disse o então presidente.

Oswaldo não concordou, e acabou demitido ainda no vestiário. Joel Santana assumiu o cargo, e o Vasco bateu o Cruzeiro por 3 a 1 no Mineirão. Um mês depois de assumir o cargo, Joel Santana se sagrava multicampeão, faturando as taças da João Havelange e da Mercosul.

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O ano de Romário

Romário já poderia ser chamado de veterano em 2000: tinha, afinal, 34 anos. A idade, entretanto, não o impediu de fazer a melhor temporada de sua carreira no futebol brasileiro. O Baixinho fez 66 gols em todas as competições, 21 deles na Copa João Havelange, da qual foi vice-artilheiro.

"Jogar com o Romário foi um sonho realizado. Quando o meu contrato tinha acabado com o Palmeiras, eu recebi a proposta de ir para o Vasco da Gama e não pensei duas vezes. Recusei grandes propostas, inclusive a chance de jogar na Europa pra atuar ao lado do Baixinho, porque era o meu sonho formar essa dupla. Eu tinha comigo que a minha característica poderia casar com a do Romário, e isso foi provado nesses dois anos e meio que estivemos juntos", relembra o companheiro de ataque Euller.

Apesar dos 21 gols, a João Havelange foi uma das únicas competições disputadas por Romário que não o tiveram como artilheiro O atacante foi o maior goleador da Mercosul, do Mundial de Clubes, do Campeonato Carioca e também do Rio-São Paulo.

Pela seleção brasileira, marcou sete gols e supriu a ausência de Ronaldo, que vivia o auge do tormendo causado pelas lesões. Com 36 anos, Romário poderia, inclusive, ter sido parte da delegação brasileira na Copa de 2002. Como em outros momentos da carreira, ficou de fora muito mais por divergências extra-campo com o técnico Luiz Felipe Scolari do que pelo que produzia dentro das quatro linhas.

O fim da avacalhação e a transição para nova era

Os mais de 100 clubes participantes, a final só ocorrendo no ano seguinte e ainda por cima uma provocação do campeão Vasco, com a marca do canal rival SBT estampada na camisa, levaram a Globo a entender que era a hora de dar um basta. A partir de 2001, era preciso criar um Campeonato Brasileiro mais organizado para tentar rentabilizar melhor o produto. É o que escutou o UOL em contato com executivos da TV e dirigentes de clubes que estavam envolvidos com o torneio ou ficaram encarregados, depois, de resolver aquela confusão toda .

O Brasileiro com pontos corridos e mais enxuto só nasceria em 2003, mas foi esboçado na temporada seguinte à da Copa JH, com a participação direta de executivos da emissora que já era a principal detentora dos direitos de transmissão em um calendário ainda caótico. A ideia teve o apoio do Clubes dos 13, que negociava coletivamente os direitos de transmissão à época.

"Entendemos que 24 clubes na primeira divisão do campeonato é um número razoável, que garante uma boa representação geográfica do futebol no Brasil", declarou à época Marcelo Campos Pinto, como registrou a Folha de S. Paulo de 11 de fevereiro de 2001. Pinto, por anos o principal executivo da Globo para compra dos direitos de campeonatos, era próximo de Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, a ponto de em mais de uma ocasião amigos de Teixeira ouvirem que Pinto poderia no futuro até substituí-lo na cadeira da confederação brasileira. Nunca aconteceu, como bem sabemos.

Para 2001 a ideia de 24 times não deu certo, e a CBF acabou organizando um torneio com 28 e em sistema misto, terminando em jogos eliminatórios —a redução do número de participantes no Brasileirão foi conduzida de modo gradativo, chegando em 2005 aos 20 atuais.

Na época, a Globo já entendia que esse regulamento, apesar de ter um apelo forte na reta final com jogos mata-mata decisivos, fazia com que o torneio ficasse muito instável porque abria brecha para mudanças radicais e aumento expressivo de times de ano para ano, sem seguir critérios. Por isso, passou a defender o formato de pontos corridos, mesmo com a possibilidade de rodadas finais menos atrativas se o campeão já estivesse decidido.

Havia também uma certeza pela emissora e pela CBF: era preciso uma Série B organizada, de preferência com o mesmo regulamento e número de participantes da Primeira para evitar viradas de mesa, tradicionais à época e que protegiam times mais populares. O dinheiro de anunciantes na Segundona, também, só entraria com estabilidade. A Série B passou a ser por pontos corridos em 2006, três anos depois da Série A.

EFE/Agência Brasil

João Havelange: relíquia do passado, ou risco de se repetir

A impressão que fica é de que a Copa João Havelange extrapolou os limites da desorganização e, digamos, flexibilização das regras do futebol brasileiro, como um elástico esticado para além do limite. O efeito rebote liderado pela Globo e pela CBF, que levaria à uniformização da fórmula de disputa dos pontos corridos foi, sem dúvida, a principal consequência do bizarro torneio para o esporte nacional.

Fora do institucional, a edição única dessa competição diferente conseguiu encontrar uma posição de destaque no focllore dos torcedores, dificilmente atingida por um Brasileirão típico, feijão com arroz. "Paguem a Série B" é uma provocação repetida 20 anos depois. A João Havelange, em sua origem, salvou o Botafogo do rebaixamento em 1999 e simultaneamente promoveu o Fluminense diretamente da Série C para a Série A do campeonato nacional.

O Bahia também foi beneficiado, é importante lembrar, mas a manobra solidificou no imaginário de torcedores de outros estados, principalmente de São Paulo, a visão de que clubes no Rio de Janeiro teriam uma tendência de envolvimento em episódios de tapetão. A narrativa seria reforçada por episódios nos anos seguintes, o mais emblemático deles o caso Heverton, em 2013, no qual a Portuguesa foi rebaixada, beneficiando Flamengo e Fluminense em uma guerra de ações na Justiça Desportiva e na Justiça Comum.

Para além do legado que ele deixou no futebol Brasileiro, a João Havelange é um símbolo de uma época do futebol brasileiro que não dá sinais de se repetir. Uma época na qual grandes estrelas entravam em seus auges atuando no Brasil, e formavam equipes que poderiam fazer frente aos principais clubes europeus. Se, por um lado, isso pode provocar tristeza e nostalgia, por outro, há o consolo de que toda a instabilidade política e jurídica que criou a competição esdrúxula também, aos poucos, vai ficando na memória junto com os gols de Romário e Adhemar.

Nos últimos 20 anos, houve turbulência, como o já mencionado caso Heverton. O Brasileirão, entretanto, já acumula 17 anos no formato de pontos corridos. Em 2020, o futebol brasileiro enfrenta uma das maiores crises de sua história, com a pandemia do novo coronavírus —entrando em agosto, a maioria dos estaduais não foi concluída e o campeonato nacional ainda não recomeçou.

Mesmo diante dos desafios, não há sinais de soluções mirabolantes, com regulamentos que não rebaixam, mudanças drásticas de formato de disputa ou times pulando de divisões. Aos poucos, o esporte nacional vem retomando as suas atividades, embora o país ainda não dê sinais de controlar a pandemia. Nessa equação, o futebol brasileiro enfrenta o seu maior desafio desde a Copa João Havelange. Os próximos meses serão decisivos e mostrarão se ela é de fato uma relíquia do passado, ou se ainda vivemos algum risco de repeti-la.

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