A coragem de dançar

Do isolamento da pandemia a um Neymar que dá broncas: UOL conta para você os bastidores da seleção no Qatar

Danilo Lavieri, Gabriel Carneiro e Igor Siqueira Do UOL, em Doha Francois Nel/Getty Images

"Mãozinha pra frente, pra frente
Ombrinho, cabeça, birimbola
Oi, toma, toma
Oi, toma, toma."

Os passos de dança dos jogadores na goleada sobre a Coreia do Sul que classificou a seleção brasileira para as quartas de final da Copa do Mundo irritaram ex-jogadores estrangeiros, mas são muito mais do que alegria ou irreverência.

Em um mundo em que todos imitam e gravam a si mesmos imitando dancinhas do TikTok, dançar virou uma forma de comunicação universal. É o símbolo da união de grupo da seleção construída ao longo dos últimos anos e consolidada no Qatar. Ter coragem de dançar virou argumento para justificar a força interna dos atletas brasileiros na busca pelo hexacampeonato mundial.

À espera do jogo contra a Croácia na próxima sexta-feira (9), às 12h (de Brasília), valendo vaga na semifinal da Copa para um possível confronto contra a Argentina, o UOL Esporte conta os bastidores de episódios da montagem do quebra-cabeça que favorece o ambiente interno e amenizou a pressão sobre os jogadores na caminhada rumo ao hexa da seleção na Copa.

Francois Nel/Getty Images
Peter Byrne/PA Images

Como nascem as dancinhas

Boa parte dos jogadores da seleção brasileira tem perfis no TikTok. É de lá que chegam as comemorações. Esquecidas durante a tensão da primeira fase, elas apareceram contra a Coreia do Sul.

O primeiro gol foi comemorado com os passinhos do "Pagodão do Birimbola", um ritmo que mistura funk e pagodão baiano e é um dos maiores virais do país da atualidade. Os jogadores já conheciam a música e a coreografia, então a decisão de fazer a dancinha foi natural.

Existem outros hits com esse alcance dentro do elenco e que também estão na fila para os próximos jogos, se houver chance. Espere jogadores dançando as coreografias de "Aquecimento Senta Senta Suave", "Reverso" e "Atura o Baile", que tem na letra quase um recado: "Nada me para, comemoro dançando."

Neymar é quem puxa as coreografias, mas Paquetá, Vini Jr e Raphinha são os dançarinos mais frequentes. Há troca de vídeos entre os jogadores e ensaios no vestiário.

Tite estimula. Ele considera as dancinhas um símbolo da identidade do país e da liberdade de expressão dos jogadores. Tanto que entrou nessa ao fazer os passinhos da "Dança do Pombo" com Richarlison. O técnico tentou se esconder porque temia que sua dança fosse vista como desrespeito.

Acho que a dança simboliza a alegria de marcar o gol. A gente não faz para desrespeitar, não vai na frente de adversário. É o nosso momento. Se ele não gosta, não tenho o que fazer."

Lucas Paquetá, sobre as declarações de Roy Keane

É importante ter essa alegria, isso nos contagia. Importante ele [Tite] estar com a gente na comemoração. Está de parabéns. Está um pouco travadinho, mas o que importa é ele estar feliz."

Richarlison, sobre a dança de Tite

Tentamos nos adaptar às características do grupo e dos atletas. Eu me adapto à linguagem deles, que é de dança e de brincadeira."

Tite, o dançarino da rodada

Casagrande: "Dança do Pombo com Tite mostra união na seleção"; veja

Lucas Figueiredo/CBF

Racismo a Vini e Richarlison fez seleção se unir

Recentemente, dois episódios mobilizaram o grupo: manifestações na Espanha atacaram Vini Jr por dançar e uma banana foi atirada em campo durante a comemoração do gol de Richarlison na vitória do Brasil sobre a Tunísia, em Paris.

"Vinicius Jr, que você siga levando seu talento e sua arte para aqueles que amam o futebol. Drible, dance, brilhe. E siga sendo você em sua essência. Sempre", leu Tite, em uma mensagem escrita anteriormente, em uma coletiva quando a seleção estava reunida em Le Havre, na França, em setembro. Foi o exemplo de como o ambiente da seleção reagiu.

A defesa em massa fez ecoar o recado "Baila, Vini Jr", como postado por Neymar. Alguns adotaram um tom mais duro do que a nota da comissão técnica formulou. "Esse babaca precisa sair daí já preso! Não tem desculpa! Se o cara fala isso numa TV que está ao vivo, imagina o que não fala quando não está. Incompreensível se esse cidadão não for preso", disparou Bruno Guimarães no Twitter.

A referência do volante foi a fala racista do empresário Pedro Bravo, em um programa de TV da Espanha, dizendo que Vini teria "que deixar de fazer macaquice".

Com a banana atirada em direção a Richarlison, a resposta no vestiário da seleção foi de mais condenação ao racismo e abraços no camisa 9.

Marvin Ibo Guengoer - GES Sportfoto/Getty Images Marvin Ibo Guengoer - GES Sportfoto/Getty Images

Lesões criam o desejo de recompensar quem ficou pelo caminho

Em quatro jogos na Copa, o Brasil lidou com problemas físicos de Alex Sandro, Danilo e Neymar, desfalques por mais de um jogo, e principalmente com os cortes de Alex Telles e Gabriel Jesus. A dupla se machucou na partida contra Camarões, quando o Brasil já estava classificado.

A manhã seguinte das lesões, quando os exames médicos mostraram que as lesões eram sérias, foram os momentos de maior tensão e medo no elenco até aqui. Dois passos foram dados neste momento que impediram a ampliação do problema.

O primeiro foi confortar os cortados. Líderes do elenco, Thiago Silva, Marquinhos e Neymar conversaram pessoalmente com Alex Telles e Gabriel Jesus no hotel da seleção para passar força. Tite também mandou o auxiliar César Sampaio para um papo com a dupla, porque o ex-volante da seleção sofreu risco de corte na Copa de 1998. "Não conseguimos tirar a dor humana, mas para que eles pudessem de alguma forma se fortalecer", disse Tite.

O segundo momento foi entre os 24 que permaneceram. A conversa foi para evitar que o grupo perdesse o foco do objetivo final. Ajudou o fato de que Danilo e Neymar já voltariam de lesão no jogo seguinte e renovaram as energias.

Gabriel Jesus precisou viajar para Londres imediatamente porque havia risco de cirurgia no joelho direito, como foi realmente necessário. Alex Telles ainda ficou para o jogo contra a Coreia do Sul, quando foi abraçado na arquibancada por Neymar logo depois do gol de pênalti. A cena surpreendeu todo mundo dentro da seleção, porque eles nunca foram tão próximos no elenco, frequentavam grupos diferentes. O gesto foi visto como mais um símbolo de união, assim como os momentos em que Weverton e Daniel Alves carregaram Danilo e Neymar nas costas para comemorar perto da torcida.

Todo mundo sente a conexão, um ajudando o outro. Teve o Weverton carregando o Danilo e nada disso é pensado. Consigo perceber que todos têm o mesmo sonho, o mesmo objetivo. Atletas que já participaram de Copa ou estão pela primeira vez. O dia a dia faz com que a gente perceba que o grupo está fechado, muito unido, e isso transfere para dentro de campo."

Alex Telles, lateral-esquerdo cortado da Copa

Reprodução/Instagram @neymarjr

Como balada, churrasco e parque de diversões uniram o elenco

Segundo apurou o UOL, existe um clima de intimidade no elenco como um todo na Copa do Mundo. Isso começa no mundo virtual, porque em toda convocação a CBF monta um grupo de WhatsApp para enviar informações sobre horários, vestimenta, anúncio de folgas e logística em geral. Os grupos de convocações anteriores não são excluídos, então ainda há interação com jogadores que nem sequer foram convocados para a Copa, como Roberto Firmino, Gabriel Magalhães e Emerson Royal.

Fora das telas, essas relações foram construídas com uma dose de convívio maior do que o normal e bem própria dos nossos tempos. As Eliminatórias da Copa do Mundo começaram em outubro de 2020, poucos meses após o início da pandemia.

Desde então, a CBF criou um sistema de bolha para evitar que os jogadores tivessem contato com pessoas externas, mesmo familiares. Por mais de um ano, o sistema foi muito fechado e os atletas conviveram só entre si nessa janela entre uma e duas semanas de duração. Assim os laços foram nascendo e aumentando. O hábito de os jogadores conversarem entre si depois das refeições, sem celular a todo momento, nasceu daí.

Quando a situação da pandemia amenizou, a CBF promoveu churrascos para integrar o elenco e a comissão técnica em cidades como Manaus e Belo Horizonte. Em amistosos recentes fora do país, os jogadores saíram juntos para passear. Na Coreia do Sul, teve balada e parque de diversões nas horas de folga, com o grupo sempre guiado por Neymar.

Manan Vatsyayana/AFP

O papel de Neymar na união da seleção

Neymar é o elo entre os mais experientes e os mais jovens da seleção. Ele repete o que Thiago Silva e Daniel Alves fizeram quando ele chegou: recebe e integra os novatos.

Na verdade, o camisa 10 é ídolo de infância de toda a geração jovem que tomou conta do ataque do Brasil, Richarlison, Raphinha, Vini Jr, Antony, Gabriel Martinelli e Pedro. A ponto de Tite definir Neymar como "liderança técnica" da seleção. O termo resume a ideia de que ele não é um dos capitães, alguém com voz ativa no vestiário, mas tem importância no dia a dia.

O referencial técnico é o jogador que mobiliza pela qualidade, pelas ideias dentro do jogo. "A equipe procura ele", diz Tite. Com Neymar em campo, as virtudes dos outros atacantes da seleção são potencializadas porque existe um grau de confiança do elenco em dar a bola na estrela e saber que vão receber de volta com qualidade ou que ele vai solucionar a jogada com um toque diferente.

Tite tenta usar essa influência de Neymar com os jovens de um jeito positivo, orientando para que ele faça cobranças quando as coisas não estão funcionando ou quando a zoeira passa do ponto e para que dê conselhos quando lhe pedem. Um exemplo: quando Raphinha recebeu uma proposta do Chelsea maior que a do Barcelona, ligou para Neymar e só então tomou a decisão de jogar na Espanha.

Dentro do grupo, o respeito por Neymar é tão grande que rola um incômodo pelo fato de o camisa 10 sofrer muitas faltas em campo e não ser mais defendido na mídia e entre torcedores. O próprio Raphinha compartilhou um texto polêmico depois de o companheiro sair machucado da partida contra a Sérvia. "O maior erro da carreira de Neymar é nascer brasileiro, esse país não merece seu talento e seu futebol", dizia a publicação.

Reprodução/Instagram

Bonde da confusão

O grupo que comanda a bagunça nos bastidores e inferniza a ala mais velha do grupo é formado por Militão, Vini Jr, Paquetá e Rodrygo. "Eles cantam o tempo todo", conta o preparador físico Fábio Mahseredjian. O lateral Danilo já brincou: "Às vezes eu falo: ri mais baixo aí". É que as provocações mais comuns têm a ver com idade.

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Reprodução/Instagram

A turma do pagode

O samba no vestiário também é regra no dia a dia da seleção. Paquetá é o dançarino principal do grupo, formado por Dani Alves no tantã, Raphinha e Thiago Silva no pandeiro e Rodrygo no banjo. O pessoal diz que tem outro jogador com funções indefinidas: "O Pombo atrapalha, pegando cada hora um instrumento", brinca Rodrygo.

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Divulgação/Fernanda Bachi

Famílias próximas

Diferentemente do que aconteceu em 2018 na Rússia, desta vez as famílias dos jogadores e comissão técnica têm menos espaço no cotidiano da seleção. Alguns treinos podem ser vistos por convidados e existe um espaço para interação no CT antes da volta do elenco ao hotel. Folgas só depois de jogos, por poucas horas.

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Polêmicas aproximam jogadores contra as críticas

Reprodução/Instagram

Bife de ouro

A ida a um restaurante para comer "bife de ouro" causou polêmica no Brasil. A revolta de parte da imprensa e torcida, no entanto, virou mais um motivo de união do grupo e até alvo de piada de Daniel Alves.

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Reprodução/Instagram

O filho do Paquetá

Paquetá foi consolar o filho que estava chorando antes de o treino começar. O episódio é corriqueiro em treinos da seleção, mas virou alvo de críticas por suposta falta de foco. Toda a seleção saiu em defesa do meia.

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Alex Pantling/Getty Images

"É hora de elogiar um pouco"

As reações sobre uma decisão de Tite no terceiro jogo da fase de grupos da Copa mostrou que esse sentimento de união não fica restrito ao elenco e transborda para a comissão técnica.

O treinador decidiu poupar todos os titulares contra Camarões depois de a seleção se classificar vencendo Sérvia e Suíça nos dois primeiros jogos. De olho na questão física e no começo do mata-mata em três dias, Tite mexeu no time inteiro e perdeu o jogo. O Brasil podia ter perdido até a liderança do Grupo G se a Suíça tivesse vencido a Sérvia com vantagem maior e isso gerou uma enxurrada de críticas, inclusive de colunistas aqui do UOL.

Com o time descansado, a seleção goleou a Coreia do Sul nas oitavas de final e o elenco saiu totalmente em defesa de Tite.

Muita gente criticou o professor por poupar, mas muitos não entendem. É uma competição pesada e a gente mostrou essa intensidade alta de novo porque a gente foi poupado. Muitos criticam ele, agora é hora de elogiar um pouco."
Richarlison

Muita gente não viu, mas graças à equipe que jogou contra Camarões que hoje se viu uma intensidade, pelo tempo de recuperação dos jogadores. Tudo isso faz parte de um processo, nós que estamos aqui dentro sabemos."
Daniel Alves

As declarações mostram que este sentimento de união chega também à comissão técnica da seleção, e que a lei é de autodefesa nos bastidores por causa de uma relação construída ao longo dos últimos anos.

Robert Cianflone/Getty Images

Dos seis anos ao sorriso de Weverton

A experiência de seis anos de duração do trabalho que culmina na Copa do Mundo do Qatar ajuda a tornar a seleção um ambiente mais confortável com os jogadores. Uma das razões é a mistura de juventude e experiência priorizada pela comissão técnica.

Ao entrarem em campo, os mais velhos como Daniel Alves, Thiago Silva, Casemiro e Danilo reconhecem nos mais novos uma geração capaz de levar o Brasil longe, com talento o suficiente para ser campeão do mundo novamente depois de 20 anos. Isso ajuda a abraçar os mais novos não só dentro de campo, mas também na hora de passar a experiência para as decisões fora dele.

Do outro lado, Antony, Vini Jr, Rodrygo e Militão gostam de se autodenominar a turma da bagunça e sempre tentam incluir "até os mais sérios, que normalmente são os mais velhos", como já definiu o zagueiro. Brincadeiras à parte, a principal inspiração vem da observação do comportamento desses veteranos.

Tite e a comissão técnica conseguiram desenvolver um nível de intimidade que é familiar a quem está desde o ciclo passado e ao mesmo tempo consegue absorver os mais novos.

A estratégia de dividir as tarefas de observações e visitas presenciais faz com que alguns auxiliares do técnico tenham um canal mais próximo com os convocados a eles atribuídos. Há também o componente de gerações: a ala mais jovem da comissão técnica, composta por Matheus Bachi e o analista de desempenho Thomaz Araújo, tem uma linguagem que rompe algumas barreiras.

Quando o papo é mais tático, com a ala mais questionadora formada por Thiago Silva e Danilo, por exemplo, Cleber Xavier consegue também ser um aliado para dialogar com os jogadores, descentralizando as missões de Tite.

Titulares e reservas se sentem acolhidos, no geral. Tanto é que o Brasil foi a única seleção que usou os 26 convocados no Mundial. Até figuras que seriam coadjuvantes inquestionáveis, como o terceiro goleiro Weverton, se sentem prestigiados. O sorriso largo ao entrar na parte final do jogo contra a Coreia do Sul, nas oitavas de final da Copa, é prova disso.

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