Bota PAN pra mim!

Dezoito anos após estreia, "finado" Debate Bola criou um estilo repetido até hoje na TV esportiva

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Acervo pessoal

O cardápio de programas esportivos na hora do almoço é variado. Na TV aberta, a Band tem "Jogo Aberto" e "Os Donos da Bola" e a Globo apresenta seu "Globo Esporte", além de programações locais. Enquanto isso, "BB Debate" (ESPN Brasil), "Acabou a Brincadeira" (SporTV), "Bandsports News" (Bandsports) e "Fox Sports Rádio" (Fox Sports) agitam o público dos canais fechados.

Além do horário, tem mais uma coisa que aproxima todos eles: são leves, têm uma pegada bem-humorada e com uma ou outra exceção carregam discussões acaloradas ao longo de horas e horas. Muitas vezes com viés clubista e exagerado.

Essa explicação podia ser a sinopse de um programa que a Record levou ao ar na década passada e moldou um estilo repetido até hoje. "Se quer avacalhar o programa, vamos avacalhar" era a lei do "Debate Bola", que estreou há exatos 18 anos, em 3 de dezembro de 2001. O programa durou até 2008, quando Milton Neves trocou a Record pela Band, mas deixou herdeiros e legado.

A formação clássica do programa contava, entre outros, com Paulo Roberto Martins, o Morsa. O comentarista morreu hoje (20), aos 78 anos, por causa de problemas cardíacos.

Como dizia Milton Neves antes de a direção colocar aquela vinheta para elevar o tom e criar polêmica, "bota PAN pra mim": a hora do almoço nunca mais foi igual sem o "Debate Bola".

Acervo pessoal

As marcas do Debate Bola

Reprodução

Enterro

A traumática eliminação do Corinthians na Libertadores de 2003 deu origem a uma das maiores marcas do Debate Bola: caixões no estúdio para "enterrar" derrotados, com marcha fúnebre e velório ao símbolo de algum dos quatro grandes clubes paulistas. A ideia foi do diretor do programa, Mário Quaranta, que assistiu a um quadro do programa "É show, com Adriane Galisteu" em que as pessoas caçavam prêmios com a mão dentro de um caixão repleto de bichos nojentos. Ele pediu o caixão emprestado e usou no ar. Virou hit.

Reprodução

Apito amigo

A criação do famoso "apito amigo" tem a ver com a Guerra do Iraque, segundo Milton Neves. O apresentador sempre brincou no ar dizendo que os árbitros eram os maiores craques da história do Corinthians, até que teve a ideia de "personalizar" a crítica e pediu para a produção montar com material escolar um apito gigante que era caracterizado com as cores de cada clube beneficiado pela arbitragem no dia anterior. O nome vem da conhecida expressão "fogo amigo", que o apresentador trouxe do noticiário internacional.

Acervo pessoal

Barraco Futebol Clube

Um grande número de jornalistas passou pelo Debate Bola entre 2001 e 2008. O programa originalmente conduzido por Milton Neves também teve Luciano Faccioli à frente por um período. A apresentação era sempre dividida com uma mulher, como Débora Vilalba e Daniela Freitas. Foi a primeira experiência de Renata Fan na TV, por exemplo. Os comentaristas se revezavam, sendo os mais frequentes Osmar de Oliveira, Cacá Rosset, Paulo Roberto Martins, Ricardo Capriotti, Eduardo Savóia e Mauro Beting.

Mas também tinha Paulo Calçade, Oscar Roberto Godói, Fernando Fernandes, Nivaldo Prieto, Juarez Soares, Benjamin Back, Wanderley Nogueira, Oliveira Andrade, Neto, Dirceu Maravilha...

A pauta do debate era incitar discussão sobre assuntos polêmicos. E tudo ganhava um ar teatral com a presença de Cacá Rosset, ator e diretor profissional, não um jornalista. Ele produzia lágrimas cenográficas com cristal japonês para chorar no ar as derrotas do Corinthians, usava fantasias e criticava os colegas que torciam para outros clubes (especialmente Paulo Roberto Martins, o Morsa, santista).

As discussões acaloradas com Morsa rendiam capítulos à parte. Cacá pedia a internação do colega e o chamou de "abutre da crônica esportiva" na comemoração do título da Copa do Brasil de 2002: "O senhor é um ressentido. Morra de inveja. Engula essa." Isso além de ironias sobre a vida financeira de Morsa que, segundo ele, vivia em um "palacete acarpetado". Eram os picos de audiência do programa, que sempre se baseou no bom humor para tratar de futebol.

O Debate Bola começou na Band, como 'Esporte Total Debate'. Eu havia sido contratado em 1999 para fazer o 'SuperTécnico', deu certo. Me pediram para fazer o 'Gol: o grande momento do futebol'. Deu certo, tanto é que faço até hoje. Aí pediram algo no horário do almoço, que estava sem audiência, só passava desenho nessa época. Veio o programa e nada de Ibope. Dava 0,4, 0,5 e eu não entendia nada

Milton Neves, Sobre as origens do Debate Bola

Um dia meu filho Rafael falou: 'Na hora do almoço, quem está vendo é molecada que está indo ou voltando da escola, tem que ser descontraído'. Eu era pilhado, só porrada. Aí comecei a chamar o Capriotti de girafa, o Benevides de coruja, inventaram o Cacá Rosset. E começou a dar 1 ponto, 2, 2,5. Aí a Record veio atrás. Eu achava que era pelo SuperTécnico, mas eles gostavam mesmo é do Debate Bola

E a mudança para a Band

Acervo pessoal

"Nunca deixar de trabalhar com alegria": a lição de Renata Fan

Primeira mulher à frente de um programa de futebol na TV brasileira e há 12 anos no ar ininterruptamente com o "Jogo Aberto" da Band, Renata Fan foi lançada no Debate Bola ao lado de Milton Neves. "Minha entrada no programa aconteceu por meio de um convite do Eduardo Zebini, diretor de esportes da Record na época. Em uma visita minha à emissora com uma amiga ele descobriu que eu era apaixonada por futebol e esportes e me convidou para trabalhar nas vagas abertas do Debate Bola e do Terceiro Tempo", conta.

Renata Fan só deixou a emissora em 2006, para assumir o comando do Jogo Aberto - que segue um estilo semelhante mesmo tantos anos depois.

Virou uma proposta profissional ser espontânea, tentar não ser absolutamente formal e nunca deixar de trabalhar com alegria. Faço isso até hoje e mantenho essa meta por causa do ambiente do Debate Bola.

"Eu ficava impressionada com a naturalidade das pessoas. Discutiam pesado, brincavam e transitavam por assuntos além do futebol com tanta facilidade que isso me marcou. Cada um com características próprias, estilos distintos e que juntos deixaram o futebol mais próximo do torcedor. Pessoas sem medo de ousar, criar ou debater. O Jogo Aberto da Band tem conexões com o Debate Bola, sim. Com a proposta leve na hora do almoço, o bom humor, o tirar sarro do colega de trabalho e mesclar informação e opinião o tempo todo", conta a jornalista.

Além de Renata Fan, Paulo Roberto Martins, Osmar de Oliveira, Oscar Roberto Godói e Cacá Rosset também participaram do programa da Band. O Morsa continua ainda hoje, no programa que se divide em meia hora de noticiário e meia hora de debate, entre 12h e 13h, com Denilson, Ronaldo, Chico Garcia e Ulisses Costa.

Foto: Divulgação/Band

"Firme e coerente"

A pauta de ocupação de espaços da mulher no jornalismo esportivo, que gerou até mesmo a criação de uma campanha contra o assédio na profissão, está em alta. Renata Fan foi pioneira deste movimento antes mesmo de ele se constituir. Ela sempre respondia aos outros participantes do Debate Bola quando falavam sobre supostos namoros da apresentadora.

Também criticou no ar o técnico Emerson Leão, então no Corinthians, quando ele ignorou a pergunta de uma repórter no Ceará e respondeu a mesma pergunta quando foi feita por um homem. Isso foi em 2006 e há vídeos disponíveis na internet.

"Sempre fui firme e coerente com o que acredito e defendo. No Debate Bola conquistei a liberdade de expressão, o direito de opinar, apresentar, contestar e retrucar. Ganhei experiência e aprendi muito. Comecei de maneira tão figurativa e fui adquirindo espaço, posicionamento, importância e me tornei titular. Tenho que agradecer a todos eles que aceitaram a participação de uma mulher fanática por futebol, compulsiva por assistir aos jogos de futebol, dona de ideias e protetora das mesmas."

Acervo pessoal

"Já, já o senhor fala, Dr. Osmar"

Um dos bordões preferidos de Milton Neves era sobre Osmar de Oliveira e começou como piada: "O povo pedia consulta em pé nos corredores da Record e ele parava. Sempre chegava uns 20 minutos atrasado. Para não dizer que ele não estava no estúdio eu criei essa frase, como se ele estivesse ali e eu não deixasse falar."

Acervo pessoal

Cacá Rosset na cadeia

Marcos Marinho, coronel então responsável pelo policiamento dos estádios, foi convidado do programa. Ele apareceu com outros três policiais que no fim receberam um desafio: "Pedi que levassem o Morsa e o Cacá Rosset à delegacia. Ele fez igual bandido no Datena, tampou a cabeça com a jaqueta. Nunca ri tanto", relembra Milton.

Sergio Alberti/Folha Imagem

Furo na Playboy: "Um pau na mão"

A auxiliar de arbitragem Ana Paula Oliveira posou para a "Playboy" em julho de 2007. A negociação durou meses e o furo do "sim" da bandeirinha foi de Milton no Debate Bola. Sem querer, ele deu gafe: "Falei no ar: 'Ana Paula aceitou sair na Playboy. Um pau na mão'". A piada infantil fez o estúdio ir abaixo: "O Morsa quase infartou."

Acervo pessoal

Passaporte rival: Bilhete de metrô

Marco Aurélio Cunha, diretor do São Paulo na época, era participante frequente. Um dia interrompeu o bloco do Corinthians para dizer que mostraria o passaporte do torcedor rival no ar. Era um bilhete de metrô. "Doutor Osmar ficou bravo, foi muito bom. Um dia eu fui de bermuda porque o São Paulo foi campeão antecipado."

O Debate Bola é bom e eterno como foram Chaves, Os Trapalhões... Se você pegar para ver os Trapalhões encontra piada racista, homofóbica. Mas não tinha conotação negativa, era saudável. Se você faz humor, uma coisa pura, não acontece essa interpretação. Hoje tem muito mimimi, é difícil fazer brincadeira. O torcedor do Corinthians era extremamente receptivo comigo, diziam que iam se vingar. Eram outros tempos, não tinha essa turma da patrulha

Marco Aurélio Cunha, Coordenador de seleções femininas da CBF

Reprodução

O lado sério

Os comentaristas Ricardo Capriotti e Paulo Calçade eram redutos de seriedade em meio ao humor escrachado do programa. A direção tentava quebrar o comedimento das declarações do primeiro quando dividia a tela entre ele e uma girafa. "Para mim era um pouco difícil, porque não sou muito do humor, tenho a visão mais séria, ficava deslocado e não conseguia interagir com aquilo. Mas esse equilíbrio era interessante, de ter a análise e a brincadeira." Capriotti chegou a dividir suas participações no Debate Bola com a rotina de apresentador do policial Cidade Alerta.

Reprodução

O substituto

Luciano Faccioli foi apresentador do Debate Bola em 2003, quando Milton Neves pediu afastamento porque também apresentava Cidade Alerta, Terceiro Tempo e Roleta Russa. "Queriam alguém nem tão conhecido de TV em São Paulo. Eu sou de Santos. Fui chamado numa terça, subi a serra na quarta, gravei um piloto na quinta, assinei contrato sexta e estreei na segunda." Milton Neves voltou para o programa em 2004, e Faccioli foi para o jornalismo, ficou até 2010 na Record. Chegou a rejeitar uma proposta da Band em 2006 e só trocou de emissora após quatro anos.

O Debate Bola foi legal pra caramba. Fazem falta na TV aberta mais programas como aquele, que mostram que para ter credibilidade você não precisa estar de terno e gravata com a cara carrancuda. Sempre enxerguei futebol como entretenimento e lazer, porque é possível dar uma opinião séria e cinco minutos depois falar algo engraçado. Por que sou obrigado a estar de cara fechada se eu estou dando uma informação certa?

Benjamin Back, ex-Debate Bola, apresentador do Fox Sports Rádio e blogueiro do UOL

Acervo pessoal

Em fevereiro de 2008 os rivais do Corinthians pararam de "tremeeeeeeeer" como dizia Cacá Rosset balançando as mãos. A bomba do Savóia parou de estourar. Milton Neves parou de se fazer de desentendido com o irônico "Eeeeeeeeeeu?". As rápidas pinceladas também acabaram. As piadas sobre a suposta peruca de Mauro Beting saíram de cena. O Morsa parou de ficar irritado por ser chamado de Morsa. E o apresentador não tinha mais conflito para fingir que ia interromper: "Eu não gosto de briga. Agora dá um tapa nele, Renata."

O Debate Bola saiu do ar quando a Record perdeu os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro que sublicenciava da Globo - a emissora de São Paulo queria exibir um jogo com exclusividade às quintas-feiras, mas o canal do Rio de Janeiro não aceitou a oferta e nem os clubes quiseram movimentar o mercado, como aconteceria na TV fechada a partir de 2019 com o fim da exclusividade global. O futebol foi para a Band e Milton Neves foi junto com seu "Terceiro Tempo". À tarde já era exibido o "Jogo Aberto" de Renata Fan, como continua até hoje, mesmo que a Band não transmita mais o Brasileirão. Foi o fim do Debate Bola.

Hoje seria muito mais fácil fazer um programa como o Debate Bola. Essa moça, a Tatá Werneck, acho ela ótima. Ela fala em porra, merda, bosta, puta que o pariu e é tranquilo. O programa ainda é gravado. É uma moça espontânea, maravilhosa. Então hoje [o Debate Bola] seria muito mais escrachado. Mas o programa foi tão bom, marcante e histórico que no YouTube tem tantos vídeos e você está fazendo uma matéria. Globo Esporte dessa época tem o quê? Apresentador lendo teleprompter

Milton Neves, Sobre como seria o Debate Bola hoje

Quem inventou o programa esportivo humorístico foi Estevam Sangirardi. Mas nós marcamos. Médicos, advogados, empresários me procuram para dizer que matavam a última aula para assistir. Isso é emocionante. Segundo consta, o Tiago Leifert teria se baseado no Debate Bola para formatar o Globo Esporte, que até então ganhava de pouco ou empatava com a gente na audiência. Íamos tão bem que eu odiava o Chris de "Todo Mundo Odeia o Chris". Dávamos uma audiência danada e tinha que acabar

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