Que seleção é essa?

Tite mistura gerações, e convocação doméstica generosa mostra Brasil desfigurado nas Eliminatórias

Gabriel Carneiro e Igor Siqueira Do UOL, em São Paulo e Rio de Janeiro Miguel Schincariol/Getty Images

A seleção brasileira joga hoje (2) contra o Chile recolhendo os cacos.

Esqueça a base do time que empilhou seis vitórias nas seis primeiras rodadas das Eliminatórias da Copa do Mundo do Qatar. Também deixe de lado a campanha cheia de testes vice-campeã da Copa América em julho. O time que entra em campo às 22h (de Brasília), no Estádio Monumental de Santiago, será o resultado de uma mistura inédita em cinco anos de trabalho com Tite.

O técnico convocou 25 jogadores no dia 13 de agosto. Na última sexta-feira (27), precisou cortar nove nomes da lista porque os clubes da Inglaterra se uniram para proibir que os convocados da América do Sul viajassem por motivos sanitários. Tite, então, chamou outros nove jogadores. Mas dois deles viraram desfalques — oficialmente — pelas mesmas razões. E mais um da lista original também foi obrigado a voltar para a Rússia. Resultado: 12 cortes dentro de um grupo de 34 convocados. Hoje, contra o Chile, serão só 22 jogadores disponíveis.

Na composição deste grupo desfigurado existe uma mistura de gerações com cinco campeões olímpicos de Tóquio-2020 ao lado de três veteranos acima de 35 anos. E mais: são dez jogadores que atuam no futebol brasileiro, um recorde sob o comando de Tite, e quatro nomes que nunca tinham sido convocados antes. Um quebra-cabeça que o técnico terá a missão de montar para tornar o Brasil competitivo hoje e em mais dois jogos, contra Argentina e Peru.

Miguel Schincariol/Getty Images
Lucas Figueiredo/CBF

CBF quer marcar posição

Atrasos significativos em entrevistas coletivas da seleção brasileira são indicativos de que algo fora da rotina aconteceu.

Antes da Copa América, uma reunião tensa entre o então presidente da CBF, Rogério Caboclo, Tite e líderes do elenco insatisfeitos com a forma com a qual a competição veio parar no Brasil. Ontem (1), mais de uma hora e meia de atraso por um pedido indigesto do Zenit para que Claudinho e Malcom voltassem à Rússia para cumprir quarentena a tempo de não perderem jogos após a data Fifa — especialmente contra o Chelsea, pela Liga dos Campeões, no dia 14. O caso se junta à não-liberação dos outros nove jogadores da Premier League.

A CBF tem um abacaxi na mão que não foi "descascado" a tempo dos jogos contra Chile, Argentina e Peru. Mas quer marcar posição. Está em jogo o futuro próximo — tem rodada tripla das Eliminatórias em outubro — e uma disputa macro sobre o domínio de poder político e econômico do futebol mundial. O cenário aponta uma ameaça dos clubes das grandes ligas ao futebol de seleções.

Sobre o clube russo, a CBF avisou que encaminhou uma reclamação formal à Fifa e apelará para que "todas as punições cabíveis ao Zenit sejam cumpridas". O regulamento da Fifa prevê que os jogadores fiquem indisponíveis para serem escalados durante a data Fifa e por cinco dias depois. A ideia é fazer a mesma demanda para os clubes ingleses. Cartolas da CBF já falaram informalmente com gente do alto escalão da entidade.

Jose Manuel Alvarez/Quality Sport Images/Getty Images

Um caso português

Entre os 12 cortados está o meio-campista Matheus Nunes, do Sporting.

A versão de Tite e da CBF é que a exigência de quarentena impediu a liberação. Mas a história pode não ser tão simples: a seleção de Portugal tem interesse e pressionou o jogador de 23 anos, que tem dupla cidadania. Carioca, ele foi morar em Portugal quando tinha 14 anos.

"Antes da convocação, Juninho [Paulista, coordenador da seleção] conversou com ele. Eu estava ao lado. Conversei com o Matheus, parabenizamos inclusive porque era aniversário dele. Estou afirmando algo que vivenciamos e quanto orgulho ele tinha de vir para a seleção. Conversamos mais uma vez e ele colocou a questão da vacinação", justificou o técnico.

A convocação de Matheus Nunes tinha motivos técnicos, mas era também uma tentativa de evitar a repetição de histórias como as de Jorginho, Diego Costa e Thiago Alcântara. Na era Tite, a convocação de Andreas Pereira — filho de brasileiro, nascido na Bélgica e promessa do Manchester United — evitou uma nova perda.

Lucas Figueiredo/CBF

Seleção bem brasileira

O contexto complicado na política externa fez Tite se voltar como há muito tempo não acontecia para o mercado nacional. Tirando o amistoso feito contra a Colômbia em 2017 para ajudar as famílias das vítimas do voo da Chapecoense, o técnico jamais chamou tantos jogadores de clubes brasileiros como agora. Por necessidade, claro.

No planejamento inicial eram cinco: Gabigol e Everton Ribeiro (Flamengo), Weverton (Palmeiras), Daniel Alves (São Paulo) e Guilherme Arana (Atlético-MG). Os remendos na lista deram chance a Edenilson (Internacional), Santos (Athletico), Éverson e Hulk (Atlético-MG) e Miranda (São Paulo).

Há uma faca de dois gumes nisso. Com mais gente atuando em solo nacional, possibilidade de mais interesse do torcedor e a chance de estreitar laços. Por outro lado, atrapalhar a vida dos clubes no Brasileirão é medida mais do que impopular da CBF. A entidade, para amenizar os efeitos, adiou os jogos dos times que cederam convocados — o que bagunçou a tabela da Série A, deixando jogos "perdidos" à espera de datas.

Contar com tantos jogadores do futebol brasileiro de uma vez só remete a momentos de reconstrução e renovação da seleção. Mano Menezes, na primeira lista que fez, em 2010, trouxe 12 jogadores de times brasileiros — entre eles os aclamados Neymar e Ganso, preteridos por Dunga no Mundial da África do Sul.

Na segunda passagem, Dunga estreou nas Eliminatórias contra o mesmo Chile de hoje com oito jogadores de clubes brasileiros. Perdeu por 2 a 0.

Por conhecer o professor Tite, de ter trabalhado com ele, eu acredito que ele sempre olhou para o futebol brasileiro. Lógico que a gente também entende que quem está na Europa está um passo à frente da gente, então dou importância à essa convocação por estar junto com esses grandes nomes. Isso valoriza muito nosso campeonato."

Edenilson, volante da seleção

O futebol brasileiro está ganhando cada vez mais qualidade. Todos os jogadores que estão aqui [na seleção] merecem, estão jogando muito em seus clubes. Acho muito válida essa oportunidade e fico feliz de estar aqui junto com outros nove que jogam no Brasil. Espero que todos que tenham oportunidade deem conta do recado e possam voltar."

Guilherme Arana, lateral da seleção

Lucas Figueiredo/CBF

Jardine: "É uma realização ver tanto jogador da olímpica na principal"

A seleção principal para enfrentar Chile, Argentina e Peru reúne cinco campeões olímpicos de Tóquio-2020: Santos, Daniel Alves, Guilherme Arana, Bruno Guimarães e Matheus Cunha — isso além de outros convocados que precisaram ser cortados, como Claudinho e Malcom, ou quem deveria ter estado nas Olimpíadas e foi impedido pelo clube, que é o caso de Gérson.

Para resumir: é uma seleção renovada por ter decidido aproveitar parte do que deu certo no Japão. Tite já disse que esse aproveitamento nada tem a ver com a cor da medalha: "O que diferencia a avaliação dos profissionais é o desempenho técnico e tático e o meu contato com a comissão técnica [da seleção olímpica]", disse, dia 13.

As comissões técnicas de Tite e André Jardine mantêm contato frequente. Inclusive, segundo ouviu o UOL, algumas das convocações para as Olimpíadas serviram para o comandante da equipe principal confirmar o potencial de jogadores em um torneio de elevada competitividade. Claudinho era um caso, antes de ser cortado. O treinador do time olímpico é só felicidade com a escalada dos pupilos.

Ver tanto jogador da seleção olímpica na principal é uma realização. Era uma das nossas ambições e objetivos junto com a medalha. É uma felicidade muito grande ver esses jogadores ascenderem e irem aos poucos conquistando seus objetivos. Fico feliz por eles e por essa integração e crença da seleção principal no nosso trabalho."

Os estreantes da seleção

  • Éverson

    O goleiro recebeu a primeira convocação aos 31 anos. Mudou de patamar na carreira com Jorge Sampaoli no Santos, em 2019, e hoje é eficiente em defesas e jogo com os pés no Atlético-MG.

    Imagem: Lucas Figueiredo/CBF
  • Edenilson

    Volante do Internacional tem a mesma idade de Éverson, mas está na elite desde o Corinthians, em 2011. Já atuou sob o comando de Tite, esteve no futebol europeu e na pré-lista da Copa América.

    Imagem: Lucas Figueiredo/CBF
  • Gérson

    Badalado desde o Flamengo, enfim ganha a primeira chance na seleção como jogador do Olympique de Marselha. Longo histórico de recusas em defender a seleção na base atrasou plano.

    Imagem: Lucas Figueiredo/CBF
  • Extra: Lucas Veríssimo

    Zagueiro do Benfica observado desde a passagem pelo Santos já tinha sido convocado em junho, mas sofreu uma lesão e nem sequer se apresentou. Vive a 1ª experiência real de seleção.

    Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Éverson chora em entrevista: "Gandula virou goleiro da seleção"

Lucas Figueiredo/CBF

Brasil sub-40?

Daniel Alves tinha perdido a Copa América por uma lesão, mas embarcou no projeto olímpico em seguida. Acostumado a exercer liderança por onde passa, o lateral de 38 anos não abdicou da função em Tóquio. O episódio mais marcante para o técnico André Jardine foi na disputa de pênaltis contra o México, na semifinal: Dani pediu para bater o primeiro.

Os atributos psicológicos e técnicos de Daniel Alves ainda servem para os planos de Tite na seleção principal. Por isso, ele foi chamado ao lado de Danilo para a lateral-direita nos próximos jogos. Conta também a falta de alternativas mais consistentes.

Como a seleção precisa atingir suas metas de imediato e aconteceu o veto dos clubes ingleses, outras figuras tarimbadas se juntaram ao grupo: Miranda, de 36 anos, do São Paulo, e Hulk, de 35, do Atlético-MG.

O sistema defensivo do Brasil é o setor no qual Tite tem mais confiança. Com Thiago Silva, veterano que não veio dessa vez, Marquinhos, no auge, e o crescente Éder Militão, a distribuição de vagas está mais restrita pensando na Copa. Miranda foi titular em 2018, conhece o ambiente da seleção e, sobretudo, Tite. Mas não vinha sendo chamado.

Hulk teve hiato ainda maior — foram cinco anos longe até aparecer em uma lista de Tite pela primeira vez. O técnico não pôde fechar os olhos diante das atuações no Atlético-MG. Ele já vinha sendo observado e com a facilidade de ter liberação para as Eliminatórias, a convocação apareceu.

Ninguém tem uma trajetória tão vitoriosa como o Dani. Ele tem capacidade de despertar engajamento e empatia nos outros atletas. O exemplo ele dá diariamente. Mas destaco a vontade dele de bater o primeiro pênalti. Mostrou o quanto ele estava pronto para ser o líder. Ele passou a confiança e tranquilidade para todo o grupo, assumiu a responsabilidade. Aí a gente percebe os líderes. Partiu dele querer bater primeiro, mas não nos surpreendeu."

André Jardine, sobre o espírito de liderança de Daniel Alves

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

A seleção brasileira terá novos convocados do mercado interno depois da viagem de volta do Chile — um meia e um atacante —, o que aumentará o número de estreantes e soluções caseiras de Tite na tentativa de arrumar a casa nos jogos seguintes.

Se conseguir vencer os três desafios de setembro, o Brasil encaminha sua classificação para a Copa do Mundo do Qatar. A conta é simples: baseado na pontuação média para estar na Copa do Mundo via Eliminatórias no atual formato com 18 jogos (ou seja, sem considerar o ano de 2014, quando o Brasil não jogou por ser sede), são necessários 28,25 pontos para conseguir uma das quatro vagas.

Com seis rodadas disputadas, o Brasil tem hoje 63,7% do necessário em apenas um terço (33%) dos jogos. Caso some mais nove pontos seriam 27, praticamente a soma total exigida. Isso tranquilizaria o ambiente hoje caótico.

Para outubro há mais três jogos agendados e o único como mandante será em Manaus. A polêmica das liberações deve ressurgir, mas até lá o Brasil deseja estar mergulhado em águas mais calmas.

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