Diante do bloqueio: Ohara

A história de sete mulheres trans que se encontraram no vôlei e lutam por um lugar em uma sociedade hostil

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL Esporte Marcus Steinmeyer/UOL

O que é "Diante do bloqueio"?

Hoje (29), no Dia da Visibilidade Trans, o UOL Esporte publica uma reportagem especial em sete capítulos para jogar luz sobre as histórias de mulheres trans que querem existir. Na sociedade e no esporte que melhor as acolhe: o vôlei. Cada uma das reportagens abaixo conta a vida de uma jogadora de vôlei do Angels, um projeto desenvolvido pelo ativista e jogador amador Willy Montmann. Começou com a reunião de homens gays e bissexuais para treinarem e jogarem campeonatos amadores e se ampliou com a criação de um grupo de treinamento formado majoritariamente por mulheres trans.

Estivemos com elas, na beira da quadra, em três noites de outono. Os relatos de Duda, Ohara, Diana, Carol, Rafaela, May e Bianca são independentes. Se você ler na sequência sugerida (essa aí em cima, que começa com Duda e termina com Bianca), vai ver como as histórias são parecidas e as dificuldades se sobrepõem. E entenderá como essas mulheres enfrentam o bloqueio que a sociedade impõe em seu caminho.

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Ohara

A possibilidade de uma mulher trans disputar competições femininas é fenômeno recente, decorrente de duas medidas independentes e paralelas.

Em 1º de março de 2018 o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 e entendeu que a cirurgia de redesignação sexual não é obrigatória para a alteração de nome e gênero no assento de registro civil — em outras palavras, no caso de uma mulher trans, não é preciso modificar o órgão genital para ter o gênero feminino no documento de identidade. Se antes era necessário um processo judiciário longo, custoso e humilhante, que no fim dependia do julgamento subjetivo, e muitas vezes preconceituoso, de um juiz, agora isso pode ser feito em qualquer cartório.

Antes, no início de 2016, o Comitê Olímpico Internacional (COI) divulgou as diretrizes para participação de atletas transgênero em competições esportivas, que passou a valer como regra para a Olimpíada e como recomendação para outros eventos, abrindo mão de qualquer exigência de cirurgia. A mulher trans precisa declarar identidade de gênero feminina e, durante 12 meses, apresentar exames com proporção de testosterona no sangue abaixo de 10 nmol/L, mantendo esse nível ao longo de sua carreira esportiva a partir dali.

Quando Tiffany Abreu, a única mulher trans atuando em uma liga feminina profissional no esporte brasileiro, foi contratada pelo Vôlei Bauru, há três anos, a ex-jogadora Ana Paula Henkel enviou carta ao COI fazendo lobby contra a autorização. Escreveu que "treinadores no Brasil e na Itália já relatam que agentes estão oferecendo atletas trans que já podem competir no vôlei feminino". No começo de 2019, espalhou boato que existiam, naquele momento, nove pedidos à Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) para mulheres trans jogarem a Superliga.

É verdade que a sociedade relega, há anos, as pessoas transexuais à invisibilidade. Mas, na restrita comunidade de mulheres trans que sacam, cortam, levantam e defendem, nunca se soube de nenhuma outra atleta que tenha sido ao menos convidada a se profissionalizar. A CBV também sempre negou que tenha recebido qualquer pedido de registro.

Como fazer exames todo mês?

Ohara foi quem, até hoje, mais perto chegou do vôlei feminino de alto rendimento. Viajou até Marília, cidade próxima a Bauru, onde disputaria a segunda divisão da edição 2019 dos Jogos Abertos do Interior de São Paulo pela equipe da Prefeitura de Ferraz de Vasconcelos, mas foi barrada. Mesmo tendo registro civil como mulher e exames comprovando que, naquele momento e, há um ano, o hormônio no seu corpo não ultrapassava o limite sugerido pelo COI.

"Eles exigiram que eu apresentasse exame de todos os meses nos 12 meses anteriores. Mas eu faço exame pelo SUS e leva quase um mês entre marcar consulta, conseguir o pedido, fazer o exame e receber o resultado. Como vai fazer exame todo mês assim?", questiona a jogadora, que tem como principal fonte de renda os trabalhos como maquiadora e cabeleireira, insuficientes para bancar exames mensais na rede privada.

O tratamento hormonal contínuo, durante quase metade dos seus 37 anos, tem efeitos visíveis. Ohara tem cintura fina, o rosto delicado e o mínimo possível de gordura no corpo. Também perdeu a força e a explosão dos tempos anteriores ao tratamento. "Depois que você começa a tomar hormônio, você passa a não ter a mesma força. Eu era atacante, mas perdi o alcance. Para poder continuar jogando, tive que virar líbero. Era onde eu conseguia me encaixar".

Se nas quadras ela era uma mulher que, na falta de respaldo legal, treinava e competia entre os homens, representando o time da pacata Santa Isabel (SP), nos palcos do centro de São Paulo se transvestia em Ohara Top, na sua versão drag queen vencedora do Drag Danger, principal concurso de drag queens do país.

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Seios

Ohara já se identificava como mulher havia dez anos, mas ainda ainda nao tinha dado início a uma série de procedimentos que a fariam se sentir plena. Começou pintando as unhas. Deixou o cabelo crescer. Chegou um momento em que queria colocar seios. Ser enxergada pela sociedade como a mulher que é.

Na ânsia de atender esse padrão, muitas recorrem à solução mais barata, os silicones industriais, usados para vedação na indústria automobilística. Com o tempo, eles viram problema. Grudam na pele, de forma que não podem mais ser removidos. A massa se move pelo corpo (dos seios para a barriga) e transforma-se em pedra, comprimindo órgãos, veias e artérias. Muitas morrem por causa dos implantes -- Duda, personagem do primeiro capítulo, ficou meses internada, entre a vida e a morte.

Ohara juntou dinheiro para implantar próteses de mama, mas esbarrava no esporte, que impunha um limite para sua representação visual como mulher. "Fiquei retardando de colocar as próteses de silicone porque quando eu colocasse eu ia ter que parar de jogar vôlei. Achava que os meninos não iam mais me aceitar, que ia ficar uma coisa estranha. Fui empurrando até os 29 anos", conta.

Se colocasse silicone e viesse a ser finalmente reconhecida pelos colegas como mulher, temia ser, por isso, excluída do time. Sem silicone, sentia necessidade de usar de outros artifícios para se representar como mulher. "Eu sempre dava um jeito de ficar com a camisa do tamanho menor", conta. Ohara jogava no masculino, mas com unhas pintadas e uma camiseta mais justa.

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Reconhecida como mulher

Na mesma época, também decidiu aposentar a drag Ohara Top e se assumir como a gogo dancer feminina Ohara, que até hoje frequenta algumas das principais baladas LGBTQIA+ de São Paulo.

Foram quatro meses de recuperação da cirurgia estética, o maior tempo que Ohara ficou sem jogar vôlei. Quando voltou, a líbero foi acolhida pelos velhos companheiros de time pelo qual jogou 10 edições dos Jogos Regionais (fase regionalizada dos Jogos Abertos). Venceu três antes de, em 2018, a decisão do STF permitir que ela requisitasse o registro civil no gênero feminino.

"Desde o dia em que mudei minha certidão de nascimento, não joguei mais campeonato nenhum no masculino. Nem treino mais, e olha que sempre me chamam. Eu mudei a chavinha."

Enfim reconhecida pelo Estado brasileiro como uma mulher, Ohara inscreveu-se para jogar os Regionais de 2019 por Ferraz. Capitã do time, levantou a taça em Ilhabela, não sem antes ser barrada da estreia. Comprovou cumprir todos os requisitos e foi liberada.

"Foi uma realização para mim. Achei que nunca ia alcançar isso depois de velha. Foi um sonho", lembra. A empolgação durou pouco, até ser barrada nos Jogos Abertos, com a mesma documentação. "Mas eu não vou desistir. Em 2021 estou lá de novo", promete.

Diante do bloqueio: 7 histórias

  • Duda

    Ela sonhava em se sustentar no vôlei, mas acabou na prostituição. Quase morreu quando motoqueiros resolveram bater em uma travesti. Hoje, conseguiu um emprego longe das ruas graças a um projeto que prepara mulheres trans para ingressar no mercado de trabalho.

    Imagem: UOL
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  • Ohara

    Era capitã de um time feminino, foi campeã dos Jogos Regionais, mas vetada nos Jogos Abertos. Mesmo cumprindo todas as exigências para a inscrição: "Desde o dia em que mudei minha certidão de nascimento, não joguei mais campeonato nenhum no masculino".

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  • Diana

    Saiu de casa após se assumir mulher trans. Hoje, o pai a aceita de uma forma diferente: "A família toda me chama de Diana. Ele, pelo nome de homem. Mas eu respeito. Tudo que acontece dentro de casa ele pede minha opinião, me trata como um filho normal".

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  • Carol

    É fisioterapeuta com pós-graduação. Mas só conseguiu um emprego em sua área 10 anos após se formar: "Na entrevista, perguntaram se eu queria me apresentar como mulher trans. Eu disse que queria que eles falassem, sim. Quero ter essa representatividade".

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  • Rafa

    Foi miss trans e sua beleza a permitiu escapar do caminho que outras tomaram, o trabalho na rua: "Se tem uma coisa com que as pessoas não têm preconceito é com beleza. Se eu conseguir uma aparência feminina, as coisas vão ficar mais fáceis para mim".

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  • May

    Cabeleireira, ela iniciou a transição após ser rejeitada no vôlei masculino. "O técnico era hétero e deixava as bichas de lado, era visível. Eu não era convocada para os jogos. Isso foi me deixando desgostosa de jogar, de buscar meu sonho no vôlei profissional"

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  • Bianca

    Ainda trabalhando como garota de programa, ela luta contra o preconceito na faculdade de psicologia: "O primeiro dia foi um baque. As pessoas me olhavam dos pés à cabeça. Ainda no primeiro ano passei para ser monitora. Foi duro para as pessoas, elas tiveram que me engolir"..

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