Diante do bloqueio: Rafa

As histórias de sete mulheres trans que se encontraram no vôlei e lutam por um lugar em uma sociedade hostil

Demétrio Vecchioli Colunista do UOL Esporte Marcus Steinmeyer/UOL

O que é "Diante do bloqueio"?

Hoje (29), no Dia da Visibilidade Trans, o UOL Esporte publica uma reportagem especial em sete capítulos para jogar luz sobre as histórias de mulheres trans que querem existir. Na sociedade e no esporte que melhor as acolhe: o vôlei. Cada uma das reportagens abaixo conta a vida de uma jogadora de vôlei do Angels, um projeto desenvolvido pelo ativista e jogador amador Willy Montmann. Começou com a reunião de homens gays e bissexuais para treinarem e jogarem campeonatos amadores e se ampliou com a criação de um grupo de treinamento formado majoritariamente por mulheres trans.

Estivemos com elas, na beira da quadra, em três noites de outono. Os relatos de Duda, Ohara, Diana, Carol, Rafaela, May e Bianca são independentes. Se você ler na sequência sugerida (essa aí em cima, que começa com Duda e termina com Bianca), vai ver como as histórias são parecidas e as dificuldades se sobrepõem. E entenderá como essas mulheres enfrentam o bloqueio que a sociedade impõe em seu caminho.

Marcus Steinmeyer/UOL
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Rafa

O ativo mercado de prostituição de mulheres trans é reflexo do grande número de interessados em fazer sexo com elas. Elas são, afinal, objetificadas. Vistas como corpos disponíveis para satisfazer vontades, não pessoas dignas de afeto. Por isso, elas se queixam que faltam homens dispostos a entrar em relacionamentos sérios, andar de mãos dadas, apresentar aos amigos e à família. Por isso, a história de Rafaela Manfrini parece mais um conto de fadas.

Rafaela tem uma característica que a permite navegar o mundo quase despercebida: passabilidade. O termo não está presente nos principais dicionários da língua portuguesa, mas pode ser explicado neste contexto como a capacidade de ser socialmente lida pelo gênero com o qual se identifica, não por aquele que lhe foi atribuído ao nascimento. Em bom português, não é todo mundo que nota de cara que Rafaela é uma mulher trans.

"Se tem uma coisa que as pessoas não têm preconceito é com beleza. Se eu conseguir ficar com uma aparência feminina, as coisas vão ficar mais fáceis para mim. Deu tudo certo e foi pelo fato de eu ser bonita. É o que as pessoas primeiro notam", diz Rafaela, sendo realista, não prepotente.

Miss Universo trans

Sua primeira "saída do armário" para a família foi aos 19 anos, como um homem homossexual. Aos 23, assumiu-se mulher trans e decidiu iniciar a transição de gênero. Trabalhava em uma loja, tinha juntado dinheiro, e pôde pagar pelas próteses de silicone no seio. "Eu sempre tive um rosto bem feminino, e os gays não queriam ficar comigo. Diziam que eu tinha cara de sapatona. Me transformei do dia para a noite. A partir daquele dia, passei a ser a Rafaela". Ao namorado de então, restou aceitar que, a partir daquele momento, ele tinha uma namorada, não um namorado.

Essa é uma questão complexa para muita gente que desconhece vivências diversas. Identidade de gênero, que é o gênero com o qual uma pessoa se identifica, não tem qualquer relação com orientação sexual, que diz respeito a por quem determinada pessoa sente atração. Ou seja, a relação sexual entre um homem cis e uma mulher trans é uma relação heterossexual, afinal, envolve um homem e uma mulher, mesmo que ela tenha um pênis. No caso do ex de Rafaela, ele era bissexual e se relacionava tanto com homens quanto com mulheres, mas o namoro não foi para frente.

Uma semana depois de terminar, Rafaela conheceu um novo "boy", com quem passou a se relacionar. O rapaz até contou sobre Rafaela à mãe, omitindo que a namorada era trans. Curiosa, a futura sogra viu o nome dela no celular do filho, procurou no Google, e encontrou uma reportagem sobre uma concorrente ao Miss Universo trans.

"A primeira vez que participei não tinha plástica, só silicone. Não era por pretensão, era por diversão. Eu sempre gostei desse mundo, mas como gay não tinha oportunidade. Logo na primeira vez, na Tailândia, fiquei em terceiro", lembra. Foram cinco anos participando de eventos do tipo, até ser coroada Miss Trans Star em 2016, vencendo concorrentes de cerca de 30 países.

"Nós transexuais temos muito a aprender com a sociedade, mas também temos muito a ensinar. Ninguém corre mais atrás dos sonhos. Passamos a vida toda em busca do simples prazer de se olhar no espelho e nos reconhecer como mulher", disse ela, no discurso ensaiado, conquistando os juízes.

Marcus Steinmeyer/UOL Marcus Steinmeyer/UOL

"As pessoas têm a mania de me elogiar discriminando outras"

Da família do namorado, só a sogra sabia do namoro, tudo para não atrapalhar os negócios. O sogro só descobriu quando a festa de casamento já estava sendo paga. E, para surpresa geral, houve aceitação irrestrita na família, que compareceu em peso ao casório de luxo, realizado há dois anos. Rafaela entrou para a alta sociedade paulistana, ampliando seu campo de militância.

"As pessoas têm a mania de me elogiar discriminando outras. Isso me incomoda porque me sinto no lugar delas. Eu tenho muito orgulho disso, de ser trans, de sempre mostrar outra faceta que as pessoas não conheciam. Meu lema é que as pessoas tirem o preconceito. Militância você faz sozinha. Se você é uma trans bem aceita no condomínio, você faz com que aceitem também as outras. As pessoas vão criar a imagem das outras meninas de acordo com a imagem que elas têm de você", diz Rafaela.

Ela é das poucas mulheres entrevistadas para essa reportagem que fala abertamente sobre a postura majoritária entre elas: não terem interesse na cirurgia de redesignação. "Tem meninas que operam, que querem apagar a identidade trans, não querem ser reconhecidas como trans. Querem fingir que cresceram e nasceram mulher [cis]. Eu sou uma mulher trans, é essa a minha identidade".

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Diante do bloqueio: 7 histórias

  • Duda

    Ela sonhava em se sustentar no vôlei, mas acabou na prostituição. Quase morreu quando motoqueiros resolveram bater em uma travesti. Hoje, conseguiu um emprego longe das ruas graças a um projeto que prepara mulheres trans para ingressar no mercado de trabalho.

    Imagem: UOL
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  • Ohara

    Era capitã de um time feminino, foi campeã dos Jogos Regionais, mas vetada nos Jogos Abertos. Mesmo cumprindo todas as exigências para a inscrição: "Desde o dia em que mudei minha certidão de nascimento, não joguei mais campeonato nenhum no masculino".

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  • Diana

    Saiu de casa após se assumir mulher trans. Hoje, o pai a aceita de uma forma diferente: "A família toda me chama de Diana. Ele, pelo nome de homem. Mas eu respeito. Tudo que acontece dentro de casa ele pede minha opinião, me trata como um filho normal".

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  • Carol

    É fisioterapeuta com pós-graduação. Mas só conseguiu um emprego em sua área 10 anos após se formar: "Na entrevista, perguntaram se eu queria me apresentar como mulher trans. Eu disse que queria que eles falassem, sim. Quero ter essa representatividade".

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  • Rafa

    Foi miss trans e sua beleza a permitiu escapar do caminho que outras tomaram, o trabalho na rua: "Se tem uma coisa com que as pessoas não têm preconceito é com beleza. Se eu conseguir uma aparência feminina, as coisas vão ficar mais fáceis para mim".

    Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL
  • May

    Cabeleireira, ela iniciou a transição após ser rejeitada no vôlei masculino. "O técnico era hétero e deixava as bichas de lado, era visível. Eu não era convocada para os jogos. Isso foi me deixando desgostosa de jogar, de buscar meu sonho no vôlei profissional"

    Imagem: Marcus Steinmeyer/UOL
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  • Bianca

    Ainda trabalhando como garota de programa, ela luta contra o preconceito na faculdade de psicologia: "O primeiro dia foi um baque. As pessoas me olhavam dos pés à cabeça. Ainda no primeiro ano passei para ser monitora. Foi duro para as pessoas, elas tiveram que me engolir"..

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