Da lavoura à Europa

Zagueiro Diego Carlos relembra infância de trabalho rural antes de êxito no Sevilla e sonho real de ir à Copa

Diego Carlos, em relato a Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Quality Sport Images/Getty Images

Não podia ser verdade. Não de novo, não comigo... Olhei para o cronômetro, nem três minutos de jogo. Ali, no centro da área, Lukaku bateu o pênalti e converteu. Eu assumo meus erros, não adianta arrumar desculpa: fiz a penalidade que fez a Inter de Milão abrir o placar na final da Liga Europa 2019/20.

Poucas horas antes, ainda no ônibus, meus companheiros brincaram comigo: "vê se não vai fazer outro pênalti". Isso é coisa para se falar numa hora como aquela? Eu tinha cometido a infração nas quartas e nas semifinais. Era o terceiro consecutivo, logo em uma competição tão importante e em meu primeiro ano de Sevilla.

Quando falaram aquilo, eu respondi: "se eu não fizer, nós não ganhamos". Faltava agora fazer a segunda parte valer. Lembrei do meu pai, que falava que tudo era culpa do zagueiro, mas lembrei também do hino do Sevilla: "nunca se renda".

Viramos o jogo, mas o Godín empatou e o movimento que ele fez naquela jogada me chamou atenção. Resolvi repetir. Quando a falta foi cobrada, ameacei entrar para cabecear e voltei. A zaga cortou mal, a bola sobrou no alto e eu virei. Virei uma bicicleta com toda a minha força, com tudo que tinha dentro de mim, toda a luta e as dificuldades para poder estar ali na final daquele torneio.

Quem estava ali no meio da área para acidentalmente desviar a bola para dentro do gol? Ele: Lukaku. Deram o gol para ele, mas foi meu. Dessa vez, o zagueiro levou a culpa. Mas a culpa pela taça de campeão da Liga Europa.

Friedemann Vogel/Pool via Getty Images

Cana, café e laranja

4h da manhã. A noite ainda reinava absoluta quando meus pais acordavam para preparar o almoço. A marmita era o alimento do dia de trabalho na lavoura. Eu e meu irmão éramos pequenos, mas já íamos com eles de perua para ajudar em casa. Colhíamos café ou laranja para o patrão que nos contratasse. Meus pais até cortavam cana para uma indústria da cidade de Dois Córregos, no interior de São Paulo, onde nasci.

Na lavoura, o encarregado nos passava qual seria nossa rua e nós trabalhávamos para valer. Quanto mais duro trabalhássemos, mais ganharíamos. Íamos jogando pro chão, outro já vinha rastelando, minha mãe peneirando e colocando no saco.

Quando era laranja, meus pais subiam nas árvores para derrubar e eu ficava no chão pegando e enchendo o saco. Quanto mais sacos, mais ganhávamos. Meu pai ainda ajudava nos caminhões para fazer um extra. Assim ia até escurecer.

As lembranças são boas, sabe? Era muito ralado, mas muito divertido, brincava bastante. Tenho boas recordações dos almoços à sombra de uma árvore, sem direito a digestão porque tínhamos que voltar logo. Minha família nunca teve muito, mas mesmo com todas as dificuldades, nunca faltou nada em casa.

Eu sempre observei isso, desde pequeno. Hoje, olhando pra trás, não tenho coisas ruins para recordar. Não foi fácil, mas meus pais sempre souberam lidar com a situação e me ensinaram muito. Eu fui um menino abençoado e tive uma infância de verdade graças a eles.

Meu irmão é quatro anos mais velho e vendia sorvete. Sempre pedi pra minha mãe para participar, mas ela cobrava que ele cuidasse de mim, e ele não queria essa responsabilidade. Fui crescendo até que um dia pude vender também. Fui com ele para aprender e vi os pontos onde ele entregava o sorvete. No dia seguinte, saí mais cedo, peguei meu próprio carrinho e vendi em todos os pontos dele. Ele ficou maluco, queria me matar quando chegou em casa

Diego Carlos, zagueiro do Sevilla

Fran Santiago/Getty Images Fran Santiago/Getty Images

Infância raíz

Mas você pode estar se perguntando: e o futebol? Ah, isso sempre esteve comigo. Na rua ou no terreno, com tijolo ou chinelo - até gol de bambu nós fazíamos. Aos domingos, nossos campinhos nos terrenos baldios viravam campeonato.

Nossos pais ajudavam a cortar o bambu, amarrar, fazer o buraco e levantar a trave. Depois, os adultos invadiam o campo para jogar também. Hoje esse espaço é tomado por fábricas, e as crianças preferem o celular a essas brincadeiras, infelizmente. Não tem mais pega-pega, esconde-esconde...

À noite, jogávamos na rua mesmo para aproveitar a iluminação dos postes. Uma vez eu pintei meu próprio campinho na rua inteira. Eu fiz um verdadeiro campo, mas o vizinho ficou maluco porque chutávamos a bola no portão dele e mandou a prefeitura ir lá e pintar a rua de preto de novo.

Mas o nosso campinho nos terrenos era sucesso. Chegamos a fazer torneios com vários bairros, e o campeão levava um refrigerante ou um churrasco. Foi lá que conheci um vizinho que se tornou muito amigo e me levou para a escolinha dele.

"Vou sem chuteira mesmo"

Como você já deve ter percebido, eu não teria condições de frequentar uma escolinha. Quando meu vizinho me chamou, falei que iria, mas descalço. Eu não tinha chuteira. Ele me alertou que seria necessário, mas eu disse que iria assim mesmo. Chegando lá, o professor tirou a chuteira do pé dele e me deu para que eu pudesse jogar. Falei que não precisava, que iria descalço, mas não teve jeito.

Ele gostou de mim, mas para continuar eu teria que pagar uma mensalidade, e minha família não tinha condições daquilo, claro. Era R$ 10. Conversei com ele e expliquei que não voltaria, pois não tinha condições. Ele me disse que não, que falaria com os garotos e que se eles aceitassem, eu ficaria para ajudar o time. E assim foi.

Nessa época, eu trabalhava no período da manhã até de tarde, depois saía correndo de bicicleta até a escolinha e depois ia para a escola. Em dado momento, o América de São José do Rio Preto estava fazendo uma peneira com uns 100 meninos, eu participei e fui um dos quatro bem avaliados. E não foi nem pelo treinador, foi pelo preparador físico.

A avaliação era de uma semana e eu fiquei 15 dias. Eu atuava como extremo, então a concorrência era grande. Eu era muito fã do Kaká, daquelas arrancadas e cortes de letra que ele dava. Quem diria que, um dia, eu iria parar exatamente no São Paulo.

DAX Images/NurPhoto via Getty Images DAX Images/NurPhoto via Getty Images

De zagueiro, não!

Mas o caminho até o São Paulo foi longo e mudou para sempre minha carreira. O Pita, ex-meia que fez história no Santos e no São Paulo, trabalhava como olheiro do Desportivo Brasil e foi fazer uma avaliação com os jogadores do América. Só que nessa época, tinha chegado no clube o Zeca, que hoje é lateral, mas na época era meia ofensivo.

O Zeca era rápido e tinha muita qualidade. O time precisava dele, e o técnico conversou comigo para que eu jogasse por trás dele, como segundo volante, mas sempre saindo. Eu gostava mesmo era de atacar, trocava sempre com o Zeca e subia. Nesse dia, o Pita me viu como volante, chamou o treinador e fez um pedido.

Ele parou a avaliação, entrou no campo e me chamou: "Diego, preciso que você jogue de zagueiro". Minha resposta foi imediata: "Não, de zagueiro eu não vou, não. Me coloca pra frente aqui, por que vai me colocar de zagueiro?". Pô, eu era extremo e já estava recuado demais para meu gosto. Agora, ir para a zaga? Era demais.

"Não, o homem quer te ver como zagueiro, vai ser bom pra você", disse o treinador. Pensei e resolvi ir, mas toda bola que eu roubava já saia jogando e conduzia pro ataque. No fim, o Pita gostou e falou "nós vamos ficar com o zagueiro, o Diego". Zagueiro! Nem volante ele falou!

Acabou a avaliação, eu liguei pro meu pai e contei que estavam querendo me levar pro Desportivo Brasil como zagueiro. 'Não, de zagueiro você não vai, tá maluco? Filho, a culpa é sempre do zagueiro! Você não vai'. Respondi sim pra ele, desliguei o telefone, virei para o Pita e falei: 'Beleza, eu vou de zagueiro'.

Diego Carlos, em lembrança da origem como homem de defesa

Arquivo pessoal

"Rodrigo Caio evitou minha estreia"

Aí nasceu o zagueiro Diego Carlos. Depois de um tempo no Desportivo Brasil, chamei atenção do São Paulo e fui contratado pelo Baresi, técnico do sub-20 na época. Joguei alguns jogos no Paulista, e a competição a seguir era a Copa São Paulo de Futebol Jr. Naquele ano, o time desceu vários jogadores para o torneio: Rodrigo Caio, João Schmidt, Lucas Farias.

Só que um dos zagueiros que desceu acabou lesionando, e o posto de titular na Copinha caiu no meu colo. Fiz três jogos, marquei dois gols e acabei machucando também. Quando voltamos pra Cotia, eu tinha uns seis meses de São Paulo, recebo a notícia de que iria subir para o profissional.

Só que quando eu chego lá, o elenco tem muitos zagueiros: Tolói, Lúcio, Paulo Miranda, Edson Silva, Rhodolfo, Rodrigo Caio... E foi inclusive o Rodrigo que evitou minha estreia. Todos os zagueiro estavam machucados, só tinha sobrado o Tolói, então iria jogar eu ou o Lucão. Mas, na época, o Milton Cruz, auxiliar, avisou ao Paulo Autuori, técnico do time, que o Rodrigo, que vinha jogando como lateral-direito, poderia atuar na zaga, como jogava na base.

A gente tinha uma amizade grande, e ele me contou no vestiário que iriam colocá-lo como zagueiro. Eu fiquei bolado, mas falei "vai e destrói". E não que ele fez isso mesmo? Nunca mais saiu da posição. E eu... bem, eu decidi sair do São Paulo para poder jogar.

São Paulo, Portugal e França

Arquivo pessoal

O São Paulo me chamou pra renovar, mas eu não quis porque tinham muitos zagueiros. Disseram que eu era uma aposta, mas eu queria jogar, queria evoluir. Não estava abrindo mão do Tricolor, entende? Eu queria mais do que sentar no banco e participar. Meus agentes me acharam doido, mas entenderam. Fiquei um tempo parado até as portas do Estoril se abrirem para mim.

La Liga

O Estoril me queria em forma e pediu para que ficasse treinando dois meses até abrir a janela. Foi aí que passei pelo Madureira e pelo Paulista de Jundiaí. Vi muita realidade. Sair do São Paulo para clubes como esses e ver a diferença de estrutura me fez entender porque muitos desistem. Meus pais se preocupavam, mas eu dizia que estava tudo bem.

Arquivo pessoal

Passei muita dificuldade, de não ter dinheiro para comprar um suco. Muitos garotos vão para lugares com a expectativa de que é aquilo que eles veem na TV, mas não é. Você tem que ser muito casca grossa, porque se não vai bater e voltar. Para chegar lá, você tem que passar por muita coisa. Eu dei alguns passos para trás para depois poder dar um passo maior ainda.

Arquivo pessoal

Quando chego no Estoril, o técnico diz que não vai contar comigo. Explica que não pode me inscrever na Liga Europa porque não tenho experiência. A última coisa que queria era ficar de novo sem jogar. Ele disse que via potencial em mim e iria me emprestar ao Porto B para a 2ª divisão. Me destaco, volto ao Estoril, faço um bom ano e surge interesse do Nantes, time da França.

O Nantes me chamou e disse que tinha interesse do Sevilla. Eles não queriam que eu fosse, mas eu já tinha dito que queria algo mais na minha carreira. Eles disseram, então, que o Monchi (diretor do Sevilla) iria me ligar. Ele ligou no mesmo dia para perguntar o que eu achava de jogar no Sevilla, e eu respondi que já estava demorando muito a negociação (risos). Eu tava maluco para ir

Diego Carlos, sobre a grande chance da carreira

Friedemann Vogel/Pool via Getty Images

Emoção nas cores verde e amarelo

Eu sempre digo que tudo que aconteceu na minha vida foi fruto de dedicação, esforço e muito trabalho. Eu estava no Sevilla há algum tempo já quando o Monchi me liga. Eu estranhei o contato, por que ele estaria me ligando uma hora dessas? "Diego, tenho uma notícia para te dar. Me ligaram da seleção. Você quer ir? Quer jogar pelo Brasil?"

Eu pirei. "Tu tá maluco, cara, claro que eu quero ir, tá louco, tá falando sério? Você tá me zuando, né?". Falei assim. Com o Monchi, cara. Ele disse que era verdade e eu fiquei sem palavras. Agradeci demais a ele e ao Sevilla.

Liguei para a minha esposa, não queria falar muito porque ela estava grávida na época e não queria deixar ela tão emocionada. Conversei com meus agentes e deixei para falar pros meus pais por último. Sabia que ia ter festa, explosão, que todo mundo ia ficar sabendo. Depois me liga o Juninho, o professor Tite, me parabenizaram. Fiquei muito feliz pelo contato direto deles, isso motiva muito o jogador, sabe?

Naquele dia eu não consegui nem dormir. Fiquei deitado, parado na cama, olhando pro teto. Foi um momento muito mágico, marcante demais na minha vida. A Copa de 2022 está chegando. Ainda falta muito, mas vou trabalhar demais para estar lá.

Jose Breton/Pics Action/NurPhoto via Getty Images Jose Breton/Pics Action/NurPhoto via Getty Images

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