Do Qatar para o mundo

Copa mostra ameaça ao tiki-taka, chuva de gols e campeão que não foi refém de estilo de jogo

Do UOL, em Doha (Qatar) CARL RECINE/REUTERS

A Argentina sofreu oito gols em sete jogos na Copa do Mundo do Qatar, sinal de que não tem exatamente uma defesa histórica e insuperável. Mas esta edição do torneio não foi sobre isso. Tricampeã mundial, a equipe de Lionel Scaloni foi premiada pela eficiência, por não ser refém de um único estilo de jogo e por vencer com um ajuste tático individualizado para cada jogo.

A Copa do Qatar não apresentou grandes tendências ou inovações táticas, daquelas que vão virar referência no futebol de clubes e seleções pelos próximos anos. Também não mudou o eixo do futebol mundial, pois a Argentina já pisou no país como uma das favoritas.

Ainda assim, mostrou ao mundo novas estrelas, novas formas de defender e anular forças dos adversários e também formas de ver o jogo nas transmissões da TV que podem ser revolucionárias. Além disso, colocou mais uma vez em xeque o tiki-taka quando Argentina e até a zebra Marrocos botaram para fora da Copa o toque de bola de pé em pé de Croácia e Espanha a partir de estratégias muito diferentes.

Curiosamente, a Copa do Mundo que consagrou a campeã eficiente, que se moldava de acordo com o adversário e foi elogiada por anular pelo maior tempo possível craques como Lewandowski, Modric e Mbappé foi a Copa da maior média de gols desde 1994: 2,69 por jogo. A Argentina fez 15 dos 172 gols. Sete de Messi, o símbolo de quando a tática favorece o talento.

KAI PFAFFENBACH/REUTERS KAI PFAFFENBACH/REUTERS

Argentina não tem time titular, nem esquema tático

Quem quiser escalar time e formação-base para os livros de história do futuro vai sofrer, porque Lionel Scaloni não repetiu escalação ao longo dos sete jogos e até o esquema tático se moldou de acordo com a proposta de jogo do adversário. Ainda que seja dominante e tenha mais posse de bola que a maioria dos adversários, também sabe sofrer.

A Argentina começou no 4-4-2, mas variou de formação ao longo do torneio. Chegou a ser escalada num 3-5-2 que mal tinha sido testado em jogos antes da Copa, mas que fazia sentido no jogo contra a Austrália das oitavas de final e foi mantido para enfrentar a Holanda nas quartas. Já na semi contra a Croácia e na final contra a França, 4-4-2 de novo, mas com ajustes de marcação e de jogadores para anular Modric e Mbappé.

Nos 3 a 0 contra a Croácia, o segredo foi tirar o controle do adversário no meio-campo, aquele toque de bola que atrapalhou o Brasil na fase anterior. Paredes entrou para reforçar a marcação no setor. Julián Álvarez, o centroavante do time, jogou um pouco mais recuado para tirar o ritmo do tiki-taka, enquanto Enzo Fernández colou em Modric. Para atacar, só bola longa. A Croácia teve mais de 60% de posse de bola e perdeu por 3 a 0.

Na louca final contra a França, o segredo foi segurar Mbappé o maior tempo possível. Di Maria substituiu Paredes na escalação inicial e jogou como um meia aberto pela esquerda. De Paul foi deslocado para ajudar Molina na marcação de Mbappé na direita e evitar as subidas ao ataque de Theo Hernández. MacAllister jogou um passinho à frente do normal para prender a defesa da França. Isso travou o time e seu craque e deu liberdade para Messi.

A França reagiu e buscou duas vezes o placar nesse jogo, com Mbappé em noite de gala. O que prova que toda estratégia tem seus problemas e pontos fracos, ainda mais quando desafia o talento. No fim das contas, a Argentina venceu porque soube ser várias. Ruim para as teses que empacotam assuntos para fechar discussões. Bom para o futebol.

Números da Argentina jogo a jogo

REUTERS/Marko Djurica

Argentina 1 x 2 Arábia Saudita


Posse de bola - 69%

Finalizações - 15 (3 do adversário)

KIRILL KUDRYAVTSEV/AFP

Argentina 2 x 0 México


Posse de bola - 59%

Finalizações - 5 (4 do adversário)

Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images

Polônia 0 x 2 Argentina


Posse de bola - 73%

Finalizações - 23 (4 do adversário)

Bernadett Szabo/Reuters

Argentina 2 x 1 Austrália


Posse de bola - 61%

Finalizações - 14 (5 do adversário)

Paul Childs/Reuters

Holanda 2 x 2 Argentina


Posse de bola - 48%

Finalizações - 14 (6 do adversário)

Divulgação/Copa do Mundo da Fifa

Argentina 3 x 0 Croácia


Posse de bola - 39%

Finalizações - 9 (12 do adversário)

Divulgação/Fifa

Argentina 3 x 3 França


Posse de bola - 54%

Finalizações - 20 (10 do adversário)

ADRIAN DENNIS/AFP ADRIAN DENNIS/AFP
DYLAN MARTINEZ/REUTERS DYLAN MARTINEZ/REUTERS

Mais tempo de jogo, prorrogação e artilheiros, chuva de gols

A Copa do Mundo do Qatar foi a mais artilheira do século 21. Foram 172 gols marcados em 64 jogos disputados, uma média de 2,69 por partida. É a maior média de gols desde 1994, quando ela foi só um pouquinho superior - 2,71.

O grande ponto aqui é que a Copa tinha outro formato em 94. Eram 24 seleções em seis grupos, classificando-se os líderes e alguns dos melhores terceiros para o mata-mata. E mais: a próxima Copa, em 2026, vai reunir 48 seleções e não mais 32.

Logo, a conclusão é simples: o Mundial de 2022 é o mais goleador entre todos de sua geração, de 1998 em diante. Uma despedida digna para o formato. Na França (1998) e no Brasil (2014) foram 171 gols.

Uma das razões é o poder de fogo dos atacantes. Mbappé foi o artilheiro com oito gols e Messi marcou sete. Giroud e Julián Álvarez terminaram com quatro cada um. Com três gols tem vários, inclusive o brasileiro Richarlison.

Também contam a favor o maior tempo de bola rolando, com mais de 15 minutos de acréscimo em média a cada jogo por orientação da Fifa, e os cinco jogos que foram para a prorrogação.

A Copa teve sete placares 0 a 0. Para compensar, pelo menos três goleadas marcantes.

As maiores goleadas da Copa do Mundo

Visionhaus/Getty

Espanha 7 x 0 Costa Rica

Na primeira rodada do Grupo E, o resultado mais elástico da Copa foi feito pela seleção que prometia ir além das oitavas de final pela qualidade de futebol. Diante da frágil Costa Rica, gols de Ferrán Torres (duas vezes), Dani Olmo, Asensio, Gavi, Soler e Morata.

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Soccrates Images/Getty Images

Portugal 6 x 1 Suíça

Foi o jogo mais desequilibrado das oitavas de final, mais até do que Brasil 4 x 1 Coreia do Sul. Com Cristiano Ronaldo na reserva, Portugal viu o reserva Gonçalo Ramos brilhar com três gols. Pepe, Raphael Guerreiro e Rafael Leão marcaram os outros e Akanji diminuiu para a Suíça, que foi de ferrolho na primeira fase a saco de pancadas no mata-mata.

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Jewel SAMAD / AFP

Inglaterra 6 x 2 Irã

Foi o cartão de visitas da Inglaterra logo na primeira rodada do Grupo B. Os três primeiros gols foram marcados num intervalo de dez minutos no primeiro tempo, por Bellingham, Saka e Sterling. Saka, mais uma vez, Rashford e Grealish fizeram os outros, enquanto Taremi descontou para o Irã. A Inglaterra parou nas quartas de final.

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ANDRÉ RICARDO/ESTADÃO CONTEÚDO

Marrocos e a "retranca bonita"

Quarto colocado do Mundial, Marrocos foi a grande surpresa desta Copa do Mundo. Não só pelo fator histórico de uma seleção africana ou árabe jamais ter alcançado as semifinais antes, mas principalmente porque propôs um estilo de jogo bem diferente do clichê das seleções do continente, de ofensividade, velocidade e falta de responsabilidade.

O jogo de Marrocos no Qatar foi defensivo, mas não aquela retranca atochada na área tradicional. A base do time era uma linha de quatro defensores, mas também houve variação para cinco, como na semifinal contra a França. A segunda linha de quatro jogadores se colocava bem próxima da defensiva para tirar espaços do adversário, a tradução das "linhas compactas".

A posse de bola era quase sempre maior do adversário. A única exceção foi justamente contra a França, quando a proposta mudou pela necessidade de atacar. Em todos os outros jogos, a bola era do outro time. Diante de Portugal, por exemplo, vitória por 1 a 0 com 27% de posse. Da Espanha, 0 a 0, decisão nos pênaltis e 23%.

Uma das estratégias de Marrocos para vencer jogos (ou segurar os adversários o máximo de tempo) foi o jogo apoiado, principalmente contra Espanha e França. Essa expressão define quando os jogadores se aproximam uns dos outros para oferecer opção de passe.

No caso de Marrocos, eram frequentes as aproximações entre o lateral-direito Hakimi, o meio-campista Ounahi e o meia-atacante Ziyech com o objetivo de atrair a marcação e trocar passes curtos. O pulo do gato da estratégia era a tabelinha pela direita, atração de marcação e inversão rápida para o outro lado. Quando acontecia, a retranca se transformava em jogo bonito.

No Brasil, o técnico do Fluminense Fernando Diniz é um dos que mais curte essa estratégia.

Hector Vivas - FIFA/FIFA via Getty Images Hector Vivas - FIFA/FIFA via Getty Images

'Um minuto de silêncio para o tiki-taka, que está morto'

Estilo eternizado por Pep Guardiola e que fez da Espanha campeã mundial em 2010, o tiki-taka não teve vida longa no Qatar. O amplo domínio da posse de bola com passes curtos e ocupação de várias áreas do campo deu as caras com a experiente seleção da Croácia e a juventude da Espanha, mas não chegou às finais.

No jogo em que foi eliminada contra Marrocos, a Espanha trocou 1.063 passes totais, 988 deles certos, e teve 63% de posse de bola, com 29 tentativas de cruzamentos e apenas dois chutes certos para o gol. A seleção africana recuou e diminuiu espaços ao longo da partida. Aos poucos, a Espanha perdeu a intensidade e acabou derrotada nos pênaltis.

No caso da Croácia, foram 628 passes trocados na semifinal contra a Argentina, com índice de quase 90% de acertos. Foram 209 passes a mais do que os futuros campeões mundiais, mas com uma diferença básica: faltaram bons atacantes para definir.

Um dos debates que a Copa do Mundo do Qatar deixa é a necessidade de um segundo passo para além do tiki-taka.

REUTERS/Lee Smith REUTERS/Lee Smith

Jogo fica diferente na TV

A geração de imagens oficiais da Fifa para a Copa do Mundo ajudou os espectadores a enxergarem o jogo de forma diferente no Qatar.

Uma das estatísticas adicionadas nas transmissões foi da posse de bola em disputa. Agora, além do índice de posse de bola das duas equipes, há o número referente ao tempo de jogo em que ninguém controla a ação. Um bate-rebate ou uma sequência de erros de passe, por exemplo.

Na final, a Argentina teve 45,6% de posse de bola contra 40,6% da França. Também foram 12,9% de posse em disputa, o que significa que foi um jogo de equipes a todo tempo buscando a posse de bola para criar, um jogo brigado. Nenhum dos cinco jogos do Brasil, por exemplo, teve um índice tão alto de posse em disputa.

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