Sai Gabigol, vem Oswaldinato

Documentos indicam que federação brasileira recebeu verba pelo uso de imagens de jogadores em PES e Fifa

Thiago Braga Colaboração para o UOL, em São Paulo Fifa 21/Reprodução

Sabe por que o nome do camisa 9 do Flamengo que aparece aí em cima é Oswaldinato e não Gabigol? Porque os jogadores que atuam no Brasil nunca receberam pagamento em troca da autorização pelo uso de suas imagens e iniciaram uma guerra judicial contra as empresas que fazem os maiores simuladores de futebol (Fifa, da EA Sports, e PES, da Konami). Mas novos documentos recebidos pelo UOL mostram que a história não é tão simples assim.

Comprovantes de depósitos obtidos nas últimas semanas indicam que a Fifpro (entidade internacional que une os sindicatos nacionais de atletas) repassou pelo menos U$S 2,471 milhões para a Fenapaf (Federação Nacional dos Atletas de Futebol) pelo que entendia ser a cessão dos direitos de imagem dos jogadores que atuam no Brasil para a utilização em Fifa e Pro Evolution Soccer (PES).

A Fenapaf, porém, não tem direito sobre a imagem dos atletas e não pode negociá-lo. A legislação brasileira diz que só o atleta poderia licenciar seu direito de imagem, a menos que fosse firmado um acordo coletivo com sindicatos, o que não aconteceu. A Fenapaf diz que não cedeu esses direitos e que a verba recebida vem de um mecanismo de solidariedade. Mas uma troca de emails entre o então presidente da entidade e membros da Fifpro indicam que a entidade brasileira já falou que podia autorizar a cessão.

As fontes ouvidas pela reportagem, ligadas à Fifpro e que participaram da negociação com a EA Sports (que produz a franquia Fifa), dizem que os pagamentos tinham como objetivo o licenciamento da imagem dos jogadores. Os comprovantes bancários também foram registrados como pagamento de royalties.

Desde 2015, jogadores brasileiros processam as duas produtoras alegando uso ilegal de suas imagens —todos dizem que nunca receberam repasses pela participação nos games. Atletas como Paulo Baier, um dos maiores artilheiros do Brasileirão dos pontos corridos, e Alan Ruschel e Neto, ex-Chapecoense, já venceram na Justiça. É por causa dessas ações que as duas produtoras mudaram seu modus operandi para o Brasil e desistiram de usar nomes e imagem dos atletas brasileiros —atualmente, os atletas que atuam no Brasil aparecem com nomes e avatares genéricos, como no caso de Oswaldinato, da foto acima, que ocupa o lugar de Gabigol como centroavante do Flamengo no Fifa 21.

Fifa 21/Reprodução

As transferências bancárias

A reportagem teve acesso a nove comprovantes de transferências bancárias feitas pela Fifpro para a Fenapaf. Neles, é possível ver a identificação de pagamento de royalties (ROYALT PAYMENT). Royalties são uma autorização para uso de uma propriedade, mediante o pagamento de uma quantia para alguém pelo direito de uso, exploração e comercialização de um ativo ou de uma licença, como no caso das autorizações para uso dos direitos de imagem pelos games.

Segundo fontes ouvidas pela reportagem que participaram das negociações na Fifpro e na EA, a soma descrita tinha como objetivo o pagamento dos royalties pela imagem dos atletas. A verba total encaminhada pela Fifpro para a Fenapaf é ainda maior do que os US$ 2,4 milhões, já que os repasses ainda englobariam o período de 2002 a 2011.

Os comprovantes seguiam sempre o mesmo padrão: um em abril, outro em novembro - com a soma dos dois sempre superando os US$ 500 mil de repasses anuais.

Veja os valores:

  • 2011: U$S 276 mil e U$S 290 mil
  • 2012: U$S 290 mil e U$S 268 mil
  • 2013: U$S 268 mil e U$S 353 mil
  • 2014: U$S 349 mil e U$S 190 mil

O último pagamento antes do início da guerra pelos direitos nos games (mais abaixo) foi em abril de 2015, de U$S 184 mil. O total é de U$S 2,471 milhões por quatro anos de direitos de uso das imagens, biotipo, biografia, estatísticas e tudo mais dos jogadores que atuavam na época no Brasil.

A reportagem também recebeu um décimo comprovante no valor de US$ 35 mil, de março de 2014, nomeado como "Pay out of Extra Solidariety" (pagamento extra fora de solidariedade). A fonte que enviou os documentos explicou que esses pagamentos eram feitos sempre que um atleta que não é filiado aos sindicatos aparece nos games ou quando sobrava algum valor entre o que a Fifpro recebia e rapassava aos seus associados.

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A guerra dos games

O ano de 2015 marcou a ruptura definitiva entre Fifpro e o Brasil. O marco foram as primeiras ações coletivas de jogadores que atuaram no Brasil entre 2004 e 2014 contra as produtoras de games de futebol.

As ações coletivas foram ajuizadas pelos sindicatos de São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais. A EA foi condenada nas ações dos sindicatos mineiro e catarinense a pagar R$ 7 milhões e R$ 6,5 milhões respectivamente, mas recorre das duas condenações. Para a Justiça, a EA Sports informou que a empresa comprou os direitos pela utilização dos jogadores da Fifpro, que repassaria a verba para os sindicatos nacionais.

A reportagem teve acesso a prints de uma troca de emails de 2008 (abaixo) entre Rinaldo Martorelli, então presidente da Fenapaf, e Theo van Segellen, secretário-geral da Fifpro entre 1992 e 2020, e Kris Vis van Heemst, diretora de relações institucionais da Fifpro. Nela, Martorelli afirma que "não temos problemas com os direitos de imagem em nosso país —não duvidem que pagamos os jogadores todos os anos —duas vezes ao ano— seus direitos de televisão e isso significa temos a possibilidade de representá-los oficialmente" e "temos os direitos que interessam à Fifpro".

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O que diz a Fenapaf

A entidade enviou uma nota de esclarecimento dizendo que a "FENAPAF esclarece que as movimentações citadas ocorreram na gestão do seu então presidente Rinaldo Martorelli, também presidente do Sindicato de Atletas de São Paulo desde 1993. A FENAPAF nunca reuniu condições jurídicas de receber valores de direito de imagem da FIFPro em nome dos atletas."

A reportagem, então, tentou contato com Rinaldo Martorelli, mas ele se negou a dar entrevista sobre o caso remotamente -durante a fase vermelha, o UOL evita entrevistas presenciais pelo alto risco de contágio do novo coronavírus.

Em uma nota publicada no site do sindicato de atletas de São Paulo, presidido por ele, Martorelli diz primeiramente que os valores repassados pela Fifpro eram contrapartida por uso de algumas propriedades: "A FIFPro obtém receitas negociando com as empresas de jogos eletrônicos e repassa aos sindicatos nacionais que compõem sua base. De fato, uma das exigências desse repasse é que os sindicatos entreguem o uso das imagens dos jogadores, mas não é única rubrica considerada. O uso do nome e logotipo do sindicato, a colocação da seleção nacional do ranking da FIFA."

Em seguida, diz que eram doações: "Outro fato que corrobora que os valores jamais foram recebidos pela imagem dos jogadores é a forma como eles eram recebidos pelo Banco Central: 'doação'".

Um documento de maio de 2014, assinado pelo secretário-geral da Fifpro, Theo van Seggelen diz concordar com "o documento de data de 13 de maio de 2014 de referência Posição sobre Direitos de Imagem e que estamos de acordo com seus termos". A reportagem não teve acesso ao teor completo desse documento.

Na mesma nota, Martorelli diz que "não havia responsabilidade de repasse aos jogadores porque nunca foi outorgada essa licença pela Fenapaf."

O que diz a Fifpro

As fontes ouvidas pela reportagem dentro da Fifpro se recusaram a dar entrevistas, mas afirmaram que os pagamentos direcionados para a Fenapaf entre 2011 e 2015 tinham como objetivo o pagamento dos direitos de imagem. E alegam que os valores, significativamente vultosos e efetuados para a entidade brasileira duas vezes por ano, excluiriam a possibilidade de terem sido feitos para pagamento de solidariedade.

Em nota enviada para a reportagem, a Fifpro limitou-se a dizer que "é uma organização sem fins lucrativos que adquire direitos de imagem de sindicatos de jogadores filiados e negocia a venda desses direitos com empresas de videogame. A Fifpro redistribui a receita gerada com a venda para os sindicatos cujos jogadores filiados decidem dividi-la ou usá-la para fornecer serviços aos jogadores, como assistência jurídica, aconselhamento de segunda carreira e assistência médica".

Alexandre Schneider/Getty Images

Bola dividida no Brasil

Para entender a raiz do problema é preciso recorrer à legislação brasileira. A Lei Pelé diz que "o direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo".

Já a Constituição Federal assegura que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas."

Por fim, o Código Civil diz que "com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária" e que "salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais".

Com base nas regulamentações constitucionais, da Lei Pelé e do Código Civil, os tribunais passaram a condenar as produtoras entendendo que só o atleta, e ninguém mais, poderia licenciar o direito de imagem, a menos que fosse firmado um acordo coletivo com sindicatos, o que não aconteceu.

Fifa 21/Reprodução

Como Gabigol virou Oswaldinato

Por conta da "Guerra dos games", as edições do Fifa não contam com jogadores reais dos times brasileiros desde 2015. O rival PES conseguiu negociar diretamente as licenças dos clubes brasileiros e de seus jogadores, mas já voltou a ter problemas, como mostrou o UOL recentemente, com ameaça de litígio do Palmeiras para a Konami.

Assim, a estratégia das empresas é mudar radicalmente as características dos jogadores em seus simuladores. O homem-gol do Flamengo no Fifa 21 não é Gabigol, mas Oswaldinato, com cabelos claros e longos no melhor estilo argentino dos anos 90. A escalação ainda tem Prazeracinho, Paiva e Inálcio no quarteto ofensivo, que fazem as vezes de Arrascaeta, Everton Ribeiro e Bruno Henrique (escalação abaixo). Isso se repete em todos os times brasileiros na franquia.

Fifa 21/Reprodução Fifa 21/Reprodução

Qual o futuro?

A Fifpro, segundo apurou a reportagem, ainda tem esperança de que as condenações aos seus parceiros comerciais, EA Sports e Konami, sejam revertidas no Brasil. O sindicato global dos atletas já perdeu aproximadamente U$S 20 milhões por conta da confusão brasileira e os custos podem subir exponencialmente se as condenações forem mantidas.

Embora a Fifpro não seja parte direta nos processos, o sindicato terá de arcar com eventuais prejuízos causados às produtoras ou enfrentar processos exigindo o direito de regresso, que é o direito de ser ressarcido de um prejuízo causado por terceiro em juízo. A Fifpro vendeu para EA Sports e Konami um ativo que ela não detinha na realidade. Da mesma forma, a Fifpro pode buscar reparação financeira usando o mesmo direito de regresso, contra a Fenapaf.

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