Oswaldo Jurno/Estadão Conteúdo/Arte UOL

Eder Jofre se acomodou por mais um dia na mesma poltrona em que costumava se sentar quando visitava seu neurologista. A seriedade da ocasião só era interrompida pelas piadinhas típicas do maior pugilista brasileiro da história.

Entre as perguntas sobre como se sentia, detalhes da rotina e a quantas andavam os resultados do tratamento iniciado cinco anos antes, o médico Renato Anghinah iniciou um diálogo despretensioso.

"É uma pena que muitos lutadores não queiram doar o cérebro para estudos. Muhammed Ali [que tinha Parkinson] não aceitou, por exemplo", disse.

"Ah, eu não me importo em doar o meu", avisou Eder Jofre.

Um silêncio denso pairou sobre o consultório, na avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. A filha, Andrea Jofre, surpreendeu-se com a fala do pai. O genro, Antonio Oliveira, deu um sorriso. Até o sério doutor Renato se rendeu.

O clima, então, foi abruptamente quebrado.

"Só espera eu morrer antes, por favor."

Eder Jofre morreu aos 86 anos, em outubro de 2022, de sepse urinária e insuficiência renal aguda. Começou, então, uma corrida contra o tempo para realizar o desejo da doação de seu cérebro.

O procedimento precisa ser imediato, no máximo 12 h após a constatação do óbito, e os filhos do ex-pugilista se movimentaram junto do médico para que fosse possível.

Uma vez dissecado, o órgão foi submetido a análises microscópicas para detectar os danos dos anos de Jofre nos ringues.

O laudo anatomopatológico, concluído em março deste ano, confirmou o que o neurologista suspeitava: encefalopatia traumática crônica (ETC), uma doença degenerativa progressiva causada por traumas repetitivos na cabeça.

Após um impacto violento, o cérebro chacoalha dentro do crânio e bate contra as paredes duras de osso, a chamada concussão. A frequência desse tipo de lesão cerebral pode causar a morte de neurônios ao longo da vida.

Um soco de um lutador da categoria peso-pesado pode ter um impacto de 450 quilos. Para lutadores mais leves, como era o caso de Jofre, a estimativa é de 200 quilos, de acordo com o neurologista Renato Anghinah.

Tricampeão mundial de boxe, considerado o melhor peso-galo da história, Jofre começou a treinar para lutas aos 14 anos e viveu seu auge nos anos 60. Ele se aposentou aos 40, em 1976, totalizando 26 anos no ringue, 19 como profissional.

Os exames realizados pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo apontaram a ETC em grau 4, o máximo que a doença pode atingir.

Por ser comum em lutadores de boxe —Maguila também tem—, a ETC já foi chamada de "demência pugilística", termo que Anghinah rechaça, já que a doença pode afetar atletas de outros esportes e qualquer pessoa que sofra traumas repetidos na cabeça.

Os sintomas iniciais são irritabilidade, impulsividade, agressividade, depressão, perda de memória de curto prazo e tendências suicidas. Eles avançam lentamente por anos até incluir déficits cognitivos e demência.

Muitas pessoas não recebem o tratamento adequado por confundirem os sinais com os do Alzheimer.

Foi assim com Jofre, que por oito meses foi tratado para Alzheimer após um diagnóstico baseado em sintomas como falta de memória, confusões mentais e mudanças bruscas de humor, acompanhadas de agressividade repentina.

Quando Renato Anghinah o conheceu, em 2013, o pugilista aposentado estava definhando: pesava apenas 45 quilos e vivia à base de 14 remédios.

O médico, o maior especialista em ETC no país, assumiu o caso após a família de Jofre ter ouvido sobre ele em uma reportagem e pedido uma segunda opinião.

Àquela altura, o Galo de Ouro —que ganhou esse apelido de Benedito Ruy Barbosa em referência aos seus 53 quilos e à categoria em que lutava— se recusava a comer e ficava cada dia mais magro.

Na semana em que Anghinah mudou o tratamento e retirou alguns medicamentos, Jofre estava prestes a colocar uma sonda alimentar.

Estávamos com ele no hospital aguardando o procedimento. Até que passou uma enfermeira com um carrinho de comida, para os pacientes, e ele sentiu o cheiro. Disse que estava com fome. Ligamos para o doutor Renato, que pediu que suspendessem a colocação da sonda. Meu pai raspou o prato. Comeu tudo, até carne, mesmo sendo vegetariano Andrea Jofre, filha de Eder

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A reação de Eder Jofre ao cheiro da comida fez com que o médico suspeitasse com mais firmeza de um quadro de encefalopatia traumática crônica, e não de Alzheimer.

Alguns dos remédios para Alzheimer que Jofre tomava inibiam o apetite e dificultavam a deglutição de tal maneira que o campeão não conseguia mais comer. Foi só cortar as medicações que o apetite voltou.

Sob os cuidados de Anghinah, Jofre passou por alguns exames em vida. Um deles, o PET de glicose marcada, mostra as áreas mais afetadas do cérebro.

O neurologista explica que esse exame, quando feito em um paciente com Alzheimer, aponta ausência de luminosidade na parte traseira da cabeça. Quando o paciente tem encefalopatia, a parte frontal é menos iluminada, como mostraram os de Jofre.

Apesar dos indícios, a confirmação do diagnóstico de ETC só acontece após a dissecção do cérebro, que permite o mapeamento do acúmulo de uma proteína, a tau, em regiões específicas do órgão —principalmente na região frontal, onde os golpes costumam ser desferidos.

E foi sob o microscópio que os pesquisadores encontraram a prova da doença em Jofre: as lâminas confirmam a presença de proteína tau em células do seu cérebro.

A doença pode surgir em qualquer pessoa que sofra repetidos choques na cabeça. É o caso do ex-capitão da seleção brasileira de 1958, Hilderaldo Luís Bellini, que morreu em 2014. Uma análise do cérebro do ex-jogador comprovou a ETC, provavelmente causada pelas cabeçadas que deu ao longo de sua carreira.

Essa descoberta mudou os protocolos do futebol: a International Football Association Board (IFAB), órgão que regula as regras do futebol, proibiu os cabeceios em torneios de base até a categoria sub-12 em 2022.

O único nocaute

Andrea e o marido receberam o UOL na casa onde Jofre viveu desde que começou o tratamento. A filha do lutador relembra os primeiros sintomas do pai, antes de qualquer diagnóstico: eram esquecimentos básicos —se já tinha ido ou não ao mercado, onde havia deixado a chave do carro. Esquecimentos que, diz Andrea, eram comuns até para a família.

Os sintomas se intensificaram quando a esposa de Jofre, com quem foi casado por 52 anos, morreu, em 2013. Antes disso, Eder e Cidinha se completavam: ele era o corpo, atlético e disposto, enquanto ela era a cabeça, já debilitada fisicamente. Eder passava o dia pensando no bem-estar de Cidinha e, quando ela morreu, foi à lona.

"A morte da Cidinha foi o nocaute que o Eder nunca tomou", diz o genro. Jofre nunca foi nocauteado. Foram 75 vitórias em 81 lutas como profissional —50 delas por nocaute. Empatou quatro vezes e perdeu apenas duas vezes.

O pugilista foi considerado pela revista "The Ring" o melhor lutador da década de 1960, à frente de Muhammad Ali, e o maior peso-galo do boxe na era contemporânea.

As consequências da perda de Cidinha foram duras: Eder Jofre não queria mais viver. Passou três dias chorando, tendo como intervalo apenas o momento em que os olhos pesavam e o sono vinha. Precisou ser internado e entrou em um quadro de depressão que acentuou os sintomas da doença.

Os esquecimentos e os episódios de agressividade e impulsividade se intensificaram e, com eles, veio o diagnóstico equivocado de Alzheimer.

Conseguimos reverter o tratamento rapidamente. Eder conseguiu se recuperar e viveu bem até seus 86 anos. Se não tivéssemos corrigido o tratamento, essa sobrevida não existiria.

Renato Anghinah, neurologista de Eder Jofre

A transição de tratamentos foi positiva. Jofre, que praticamente definhava enquanto era tratado como paciente de Alzheimer, passou a recuperar movimentos rotineiros. Voltou a se alimentar normalmente em duas semanas, a caminhar sozinho; a sair sozinho; em dois meses, recuperou o peso que havia perdido e voltou a se exercitar.

O também pugilista Maguila tem uma trajetória semelhante. Seus sintomas começaram antes dos 50 anos, quando foi diagnosticado equivocadamente com Alzheimer. Agora, ele também é paciente de Renato Anghinah e sua condição de saúde melhorou expressivamente desde a mudança do tratamento.

Médico traumatologista e presidente da comissão médica da Confederação de Boxe, Bernardino Santi afirma que as discussões sobre encefalopatia são frequentes entre médicos dentro e fora da categoria.

Houve mudanças no regulamento da modalidade para amenizar os traumas: se um atleta é atingido na cabeça, o árbitro conta até oito e observa o comportamento do lutador. Se houver algum sinal de concussão, os médicos são acionados imediatamente.

Em casos de nocaute, há três tipos de medida: para nocautes que não fazem perder os sentidos, o lutador fica 30 dias afastado e é submetido a exames quando retorna. Se perder os sentidos por até 1 minuto, fica 60 dias afastado, mas se a perda de sentidos durar mais de um minuto, o afastamento chega a 90 dias.

Mas discutir a ETC tem gerado comentários negativos à família de Eder Jofre. Oliveira diz que tem recebido mensagens desgostosas por parte de membros do boxe. "Alegam que a gente quer acabar com o esporte, mas não. Só queremos conscientizar", diz.

Nós queremos que haja uma conscientização para que a doença seja conhecida, para que um tratamento correto seja aplicado e para que seja possível prevenir de alguma forma.

Antonio Oliveira, genro de Eder Jofre sobre a decisão de doar o cérebro do pugilista.

Exame feito quando Jofre estava vivo: se ele tivesse Alzheimer, não haveria luminosidade na parte traseira da cabeça

Exame feito quando Jofre estava vivo: se ele tivesse Alzheimer, não haveria luminosidade na parte traseira da cabeça

Em 2020, dois anos antes de morrer, Eder Jofre treinava na academia três vezes por semana. O treino de um homem de 80 anos era leve para ele.

Quando Oliveira e o sogro saíam para correr, Eder Jofre dizia que encontraria o genro no topo da rua mais íngreme do bairro. A cabeça branquinha subia correndo. Oliveira, caminhando, demorava para alcançá-lo. As corridas aconteciam no bairro do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, onde Andrea e Oliveira moram até hoje.

Na parte de trás da casa, luvas e troféus lutam por um espaço na estante. As paredes, preenchidas por quadros de Eder Jofre, sentem o peso de segurarem o maior campeão brasileiro de boxe da história.

Mas Jofre caminhava tranquilamente pelas ruas sem ser parado ou reconhecido, mesmo sendo o pugilista mais vitorioso do Brasil.

Ao chegar em casa, sentia-se triste, lembra a filha. Gostaria de ser reconhecido. Afinal, levou o Brasil ao mundo nos anos 1950. Quando jovem, treinava em sacos de cimento e fazia treinos de força com o que tinha em casa porque não havia estrutura.

Meu pai foi um herói para o Brasil. É triste ver que o país não reconhece isso. Ele sentia também. Foi um herói dentro e fora do ringue. Um pai amoroso, um marido companheiro, um lutador excepcional, sempre pronto para ajudar quem precisasse. Até depois da morte.

Andrea Jofre

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