Não tente me intimidar

Única mulher a apitar a Série A na década, Edina Alves imposta a voz: "Não sou coitadinha. Sou árbitra. Ponto"

Talyta Vespa do UOL, em São Paulo Julia Rodrigues/UOL

Sob os nichos de parede que carregam sete bolas de partidas oficiais, repousa um quadro de avisos: colados nele, os post-its coloridos verde e rosa neon gritam "Olimpíada" e "Copa do Mundo". No centro do quadro, uma foto desfocada reúne a quarta melhor árbitra do mundo, Edina Alves, e seu dream team, as árbitras-assistentes Neuza Back e Tatiane Sacilotti. "Eu tenho um plano de carreira para a gente", ela disse, há dois anos, quando decidiu sair de Goioerê, no interior do Paraná, para morar em São Paulo.

O quadro fica no apartamento de 87 m² que Edina divide com Neuza, em Jundiaí, no interior de São Paulo. Com únicas quatro folgas por mês, o peito apertado de saudade da mãe e treinos diários de alta intensidade, ela imposta a voz: "Não quero ser a mulher coitadinha. Quero ser árbitra. Ponto. Não é para ter pena de mim. Para isso, não faço chorinho. Mostro resultado com meu trabalho: treino sete dias por semana, faço o teste físico masculino e faço bem feito. Para os homens, o desempenho em campo é mais fácil, é uma questão física. A gente também consegue, só tem que treinar mais. E eu treino".

Aos 39 anos, Edina foi considerada a quarta melhor árbitra do mundo pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS). Entre as vencedoras, a única brasileira. O aplicativo da Fifa, favorito em seu celular, pede que, diariamente, ela complete a sequência de treinos que faz. "Se o calendário fica verdinho, como está agora, significa que treinei corretamente todos os dias."

"Assim que voltei do mundial sub-17, em novembro, pedi ao meu treinador uns dias de folga. Queria descansar, visitar minha família. Sabe o que ele disse? 'Você quer folgar? Folga. Tem um monte de gente que está louco para entrar no seu lugar. A escolha é sua'. Levantei da cama e fui treinar".

Edina é a única árbitra que trabalha na série A do Brasileirão. A última vez que uma mulher atuou em uma partida do campeonato foi em 2003, quando Silvia Regina apitou um Guarani x São Paulo. Mas ela quer mais: quer a Olimpíada de Tóquio e, pelo menos, mais uma Copa do Mundo feminina —como dizem os post-its. "Se fosse chamada para apitar a masculina, então, benza, Deus".

Aos amigos que insistiam em dizer que "sendo mulher e do interior você não vai chegar a lugar algum dentro do futebol", Edina agradece. "Eu sempre disse que, um dia, apitaria a série A. Agora, a cada jogo, esses amigos me procuram, elogiam e analisam a partida. Sempre terminam com um 'é, Edina, você sempre dizia que ia conseguir'. Aos 19 anos, eu prometi. 'Um dia vou ser alguém, mãe'. Agora cumpro".

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Mil saquinhos por R$ 6

Corta para 1999, lá em Goioerê, uma cidadezinha a 560 quilômetros de Curitiba em que vivem 29 mil pessoas. Edina tinha 19 anos e foi convidada pelo pai de uma amiga, que apitava várzea, a ser árbitra-assistente de um campeonato amador. A escolha não foi à toa: desde criança, ela jogava futebol, futsal e basquete.

"Quando acabou a partida, ele disse: 'Você tem que fazer o curso, faça o curso que você vai longe'. Só que o curso de arbitragem custava meio salário mínimo à época. Passei no vestibular e o treinador ficou impressionado com meu preparo físico. Mas eu não tinha como pagar as aulas, nem as viagens de fim de semana para fazer os estágios em jogos em cidades vizinhas", conta.

Para a mãe, ver a filha trabalhar com futebol não dava lá muito gosto. Na primeira conversa com ela sobre a vontade de seguir a carreira, a reação negativa fez com que Edina cogitasse desistir. Não durou muito. "Minha mãe disse que não era coisa de mulher ficar metida com futebol. Ela, logo, me colocou num curso de crochê e bordado. Eu fazia, mas não gostava. Então, para pagar o curso de arbitragem, comecei a trabalhar escondido em um viveiro de mudas enchendo saquinhos de terra. Por cada mil saquinhos, eu ganhava seis reais".

"Minha mãe trabalhava fora, então eu dizia que ia estudar na casa de uma amiga. Como ela voltava às seis, às cinco, quando acabava o expediente, eu voava para casa. Eu trabalhava mais ou menos 12 horas por dia, chegava no viveiro antes de abrir para conseguir encher mais e mais saquinhos. Aos fins de semana, viajava para estagiar. Claro que não consegui esconder dela por muito tempo porque minha roupa ficava cheia de terra", relembra.

Ao perceber o esforço da filha, a mãe de Edina desistiu de demovê-la da ideia de viver de futebol. "Hoje, ela reza antes de todos os meus jogos. E assiste a todos".

Com o dinheiro do viveiro de mudas, a paranaense bancava o curso e dividia as despesas de transporte com outros três colegas com quem estudava. Os quatro conseguiram a ajuda do então prefeito da cidade, que disponibilizou um carro e um motorista para levar o grupo às cidades vizinhas. "A gente fazia vaquinha para pagar o almoço do motorista, porque a prefeitura não tinha como bancar. E, se não fosse esse prefeito, a gente não teria conseguido estudar arbitragem".

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O primeiro jogo numa prancheta

Entre risadas saudosas, a árbitra relembra a primeira vez que bandeirou um jogo. E dedica a persistência e o sucesso ao juiz com quem dividiu esse dia: Celso Oliveira, árbitro federado, quando ela ainda sabia pouco das regras. "Ele pegou uma prancheta e fez desenhos para me ensinar posicionamento. Dizia: 'Se ficar na dúvida, olha para mim que eu aponto'. E eu fiz isso: quando batia a incerteza, olhava para ele e ele sinalizava a direção correta com o olhar", conta.

"Depois de anos, conversei com o Celso a respeito desse dia e perguntei se ele não teve medo de que eu fizesse alguma besteira. Ele disse que não e que fui muito bem. Foi a maior sorte ter trabalhado, nesse começo complicado, com uma pessoa que me incentivou e me deixou à vontade. E o conselho mais importante: 'não volte atrás depois de marcar. Seja firme na decisão senão os jogadores vão te pressionar toda hora", ri. "Eu marcava e fazia cara de brava".

Depois de formada, Edina passou a bandeirar em diversos jogos amadores pelo Estado do Paraná. Pouco depois, se filiou à Federação Paranaense de Futebol e se dividiu entre a bandeira nos jogos masculinos e a arbitragem, nos femininos. "Meu sonho sempre foi ser árbitra, mas quando comecei, não tinha espaço. Enveredei para a bandeira, mas sempre com aquilo na cabeça. E não tirei mais".

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"O que mais quero na vida"

Edina foi árbitra-assistente da base, subiu para sub-17, sub-20, série D do Brasileiro, séries C, B e chegou à série A. Atuou, em um ano, em 25 partidas só pelo Brasileirão, e se tornou uma das melhores bandeirinhas do Brasil. "Mas meu sonho de ser árbitra central estava guardadinho. Quando eu falava sobre isso com colegas, era desencorajada: 'Se você virar árbitra, vai apitar menos, viajar menos e ganhar menos dinheiro. Não faça isso'. Pouco me importava".

A sensação de que faltava oportunidade para uma árbitra mulher em campo, enfim, passou numa rodinha de conversa com o presidente da Conaf (Comissão Nacional de Árbitros de Futebol), Sérgio Corrêa, em 2014. A colega Neuza Back chamou a atenção do presidente sobre a capacidade da amiga com o apito. Ele retrucou: "E por que você não quer apitar, Edina?". Ela desabafou: "É o que eu mais quero na minha vida."

Durante um curso, Edina descobriu que uma árbitra central Fifa queria migrar para a bandeira. "No dia do treino, o Sérgio pediu que a gente trocasse de posição. Eu vestia uma camiseta amarela, como os outros árbitros-assistentes. Ele me deu uma jaqueta preta —cor da camisa dos árbitros— e pediu que eu treinasse com eles. E ali fiquei", diz.

"Ela saiu da Fifa e a vaga ficou aberta, só que eu precisei fazer todo o caminho para preenchê-la: fiz testes físicos, jogos da série D com bons resultados, concorri com outras mulheres e consegui a vaga. Faço os testes físicos masculinos para apitar partidas, também protagonizadas por homens. O teste feminino possibilita que a árbitra apite apenas partidas de base e do futebol feminino. Eu queria apitar todas".

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Dream team

Neuza Back é amiga das antigas, "há mais de dez anos". Além dela, Tatiane Sacilotti completava o time dos sonhos de Edina. Foi na tentativa de aumentar o entrosamento da equipe que ela decidiu se mudar para São Paulo. "A Tati morava aqui, eu, no Paraná e a Neuza, em Santa Catarina. A gente não jogava junto e, para criar uma equipe forte, é preciso entrosamento. Então, Neuza e eu decidimos vir para cá. O melhor futebol está aqui, não tem jeito".

Só que, no último setembro, Tatiane anunciou a precoce aposentadoria depois de bandeirar seu último jogo, na Copa do Mundo feminina. "Quando ela me procurou para dizer que iria parar, que queria ter filho, eu entrei em negação. Não queria falar com ela, não queria ouvir. A gente tinha um time forte, eu não podia acreditar que ela abriria mão disso", conta.

"Até hoje não superei. Na final do Paulista feminino, em novembro, fizemos uma homenagem para ela. Eu disse que não queria ter feito aquilo, mas, sim, que ela ainda estivesse com a gente. Queria mais um Mundial e uma Olimpíada. Só que foi a decisão dela e eu preciso aceitar".

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O tribunal dos torcedores

"É absurdo dizerem que o árbitro rouba, que a CBF quer que esse ou aquele time ganhem o campeonato. É o nosso nome que está lá. Se a gente erra, é a nossa família que sofre, que escuta comentário negativo na padaria. Se o jogador erra, vai para o banco e continua recebendo o salário. Se a gente erra, fica sem trabalhar e sem ganhar dinheiro. Se o erro for grave, o tempo fora de campo aumenta", explica.

Edina relembra o erro em um lance de mão numa partida da série C do Brasileiro. "Eu não vi a mão, não marquei e fui penalizada. Fiquei um tempo sem apitar e, naquele ano, não voltei a trabalhar na série C. Ninguém vai errar de propósito, posso garantir isso".

Da torcida, geralmente, as mensagens são carinhosas. "Cadê a melhor árbitra que não está na rodada?", disse uma delas em uma rede social. Edina sorriu. "Respondi que estava no Mundial sub-17. Daí, começaram a chegar outras mensagens perguntando quando eu estaria de volta. Fico feliz com tanto carinho", diz.

Só que nem sempre foi assim, ela conta. Até poucos anos atrás, a árbitra ainda ouvia mais xingamentos do que elogios ao apitar jogos. E, diz, são as ofensas vindas de mulheres as que mais machucam.

Dói, de verdade, quando eu ouço uma mulher me xingando. Já me xingaram de filha da p*, disseram que lugar de mulher não é no futebol e mandaram lavar louça. Não entendo, isso me chateia demais. Meu sonho é ver uma mulher apitando Copa do Mundo masculina. Por que nem todas sentem isso?

Edina, sobre xingamentos que ouve no trabalho

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"Fica no seu lugar"

"Eu me imponho. O tempo todo", diz. Edina explica que faz parte do jogo a exaltação do jogador em uma marcação, que é normal pedir revisão de lance ou reclamar de um cartão. Mas que, nessas horas, é preciso impor respeito.

"Dia desses, participei de um jogo mais forte. Um jogador se aproximou de mim com os braços abertos, gritando para que eu desse um cartão amarelo em um lance. Quis me intimidar, dei cartão para ele. Quer falar comigo? Mostre respeito. Não vem de braço aberto para tentar intimidar que não cola. Dentro do estádio, deve existir uma troca de respeito mútua. Educação vem de casa. Não tem essa de acabar o jogo e vir pedir desculpa. O respeito é na hora. Tem que ter pulso firme porque, no futebol, todo mundo quer ganhar".

Com colegas, quando necessário, Edina também se impõe. "Tem cara que quer mandar no jogo. Já trabalhei com um assistente que adorava dar ordem, no ponto, a respeito do que eu tinha que fazer. Se eu não marcava falta, ele gritava mil vezes: 'você não vai marcar? Foi falta! Tem que marcar'. Teve um dia que ele falou tanto, tanto, que eu gritei: "Eu não vou dar!". E ponto".

"Em outro lance, começou aquela coisa de estranhamento entre os jogadores, um fingindo que vai empurrar o outro, sabe? Esse mesmo assistente saiu da posição dele e foi até o meio do campo intervir. Quando vi, não acreditei. Disse: 'Fica no seu lugar. Aqui está controlado'".

Richard Callis /Fotoarena/Folhapress Richard Callis /Fotoarena/Folhapress

O "não" à França e a saudade do feijão

Edina apitou quatro partidas na Copa do Mundo feminina, que aconteceu na França, em junho. Enquanto viajava de carro de Paris para Lyon, onde aconteceria seu primeiro jogo em um Mundial, ela relembra ter vivido uma linha do tempo na memória: voltou à infância, ao trabalho enchendo saquinho de terra, à mãe e a todos os treinos suados até se tornar mundialista.

"Mundialista só depois de eu apitar o fim da partida", dizia aos colegas que tiravam barato da fama. E, quando o apito final soou, ela correu para o vestiário e não conseguiu segurar as lágrimas.

O estilo de arbitragem de Edina foi reconhecido e elogiado por um dos diretores de arbitragem do futebol francês. A ela, foi feito o convite: "Se quiser vir para a França, você tem emprego", foi o que ele disse para mim. Mas não, não, eu não troco o meu país por nada. Amo o Brasil. Amo arroz, feijão, bife e salada. Na França, só tem feijão no café da manhã —e raramente", ri.

"Uma das partes que mais gosto é ver meu nome ao lado da bandeirinha do Brasil na televisão antes de apitar um jogo. Agora, espero conseguir ir para a Olimpíada. Estou batalhando para isso. Ah, eu sempre peço que os jornalistas escrevam que eu agradeço muito a todos os brasileiros que torceram por nós no Mundial. Eles nunca escrevem. A gente recebeu muito carinho e vocês não imaginam como isso é importante. Você se importa em escrever?".

Julia Rodrigues/UOL Julia Rodrigues/UOL

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