A força de uma mulher

Edinanci se pergunta: 'Será que eu realmente merecia passar por isso?'

Edinanci Silva, em depoimento a Demétrio Vecchioli Do UOL, em São Paulo Zanone Fraissat

Para poder entrar num ônibus em Campina Grande (PB) com destino a São Paulo, 30 anos atrás, disse à minha mãe que voltaria. Mas a viagem que me permitiria ganhar a vida lutando judô tinha uma via só.

Meses depois, disse uma dura verdade a ela, sobre pensar em tirar a minha vida. A de todos nós já era sofrida demais, dolorida demais, para ser submetida também a todo aquele escrutínio público.

Só eu sei a força que fiz para seguir em pé. Sabe esse "hater" das redes sociais? Eu sofri na rua. Todo dia. Apoio da imprensa? Nenhum.

Depois do que vivi entre 1995 e 1996, me fechei, para proteger a mim e curar as tantas feridas que me causaram. Segui lutando judô, disputei quatro Olimpíadas, ganhei duas medalhas em Mundiais, mas mantive o ranço de jornalista, o medo da exposição.

Agora, aceitei contar a minha história.

Nasci em 1976, em plena Ditadura militar, em uma família muito humilde de Sousa, alto sertão da Paraíba, onde passamos fome e sede. As lembranças me doem tanto que desde meus 20 anos só volto para lá pela Internet, buscando notícias e revendo no Google Maps a nossa casa no bairro André Gadelha.

Até os 11 anos, só tive a oportunidade de estudar por oito meses no total.

Escola, área de lazer, local para praticar esporte, isso aí era tudo fantasia. Na minha periferia não tinha água, alimento, não tinha nem a saída do crime. É diferente das grandes cidades, só quem viveu sabe.

Além disso, eu tinha questões familiares. Meu pai era muito violento, não aceitava a realidade em que vivíamos, e explodia. Sou de uma época em que se você corria risco se tentava se expressar politicamente. Minha mãe ficava em pânico porque eu ficava falando: "Esse Brasil é uma merda".

Em Campina Grande tínhamos uma condição de vida melhor. Morávamos em cinco pessoas, junto com minhas duas irmãs, em um "embrião", uma casa da Caixa Econômica que tinha sala e banheiro. Mesmo assim, bem precária.

Eu ajudava no que eu conseguia, mas chegou um ponto que tive de seguir meu rumo. Já treinava judô e, na época de lutar, não podia comer arroz e feijão, tinha que comer salada, só que salada era luxo. Eu era um peso para minha família.

Nunca tive nenhum tipo de vaidade, de fazer unha, cortar cabelo, se maquiar, sabe? Eu me desenvolvi em um meio muito rústico, onde as crianças andavam descalças. Fui ter bolo de parabéns aos 15 anos pela primeira vez.

Então minha chegada a Guarulhos, em 1994, com 17 anos, foi um choque cultural. O pessoal encanava com meu sotaque, minha forma de se comportar, de me vestir. "Edi, passa um batonzinho". Mas eu não gosto, não é da minha essência. Eu me sentia um peixe fora d'água, só que regredir, voltar para casa, não era uma opção.

Com a intensidade do treinamento, as características masculinas ficaram mais escancaradas, fisicamente falando. Eu tinha aquele jeito de andar meio caranguejo das pessoas musculosas, sabe?

Foi aí que começaram a falar. Até então, isso só havia aparecido por uma amiga do meu treinador na Paraíba, que falou para me levar no médico, investigar. Mas eu, moleca de tudo, nunca dei atenção.

[NOTA DO EDITOR: Edinanci é, desde nascença, uma pessoa intersexo. Ela tinha testículos internos e apresentava quantidade anormal de hormônios masculinos. Em abril de 1996, passou por uma orquiectomia, cirurgia para retirada desses testículos. Sem a operação, Edinanci não seria aprovada no chamado "teste de feminilidade", em que as mulheres ficavam nuas diante de um "comitê", exigência para elas disputarem os Jogos Olímpicos. O teste foi banido em 1998]

Os exames, que só fui fazer quando vim para São Paulo, mostraram que eu até me beneficiava da produção de hormônio masculino, mas dali a 15 ou 20 anos isso iria virar um câncer. Quando me falaram isso, eu falei: "O que? Vamos fazer agora".

O procedimento cirúrgico e o tratamento hormonal não foram para participar dos Jogos, foram pela minha saúde. O esporte estava me dando uma oportunidade de descobrir uma questão, que, se eu estivesse na Paraíba, eu jamais teria descoberto. Usei essa oportunidade para cuidar de mim.

Entre 1995 e 1996, minha vida foi o cão. Não podia sair na rua porque ficavam me atacando. Não fisicamente, mas com palavras. Em Guarulhos, quando as pessoas me reconheciam, diziam: "Isso aí é um homem", usavam palavras chulas para me atacar.

Boa parte desse comportamento foi por causa da imprensa, que expôs a situação de uma forma muito sensacionalista. "É homem ou mulher, o que você acha?" Fizeram tipo um "Você Decide".

Isso mexeu muito comigo. Vinha aquela coisa na cabeça: "Será que é correto eu ser assim, será que eles não têm razão? Tá todo mundo falando isso, repetindo, será que não é verdade?" A ponto de, em uma das ligações que eu fiz para minha família, eu falar para minha mãe: "Vou desistir de tudo".

Pensei em suicídio mesmo. O hater pelas redes sociais machuca essa geração. Mas o hater pessoal é mais duro. Machuca, você não tem ideia.

A gente vai resgatando coisas que viveu, lembrando os momentos que vivenciou, e quando vê está sentindo de novo a dor que sentiu na época. Dói, e é difícil falar sobre isso. Você vai guardando para você, não tem com quem dividir.

Muitas vezes eu usei isso para construir resultado dentro do tatame. Virava o capeta, de tanto ódio, de tanta raiva. Só que isso faz muito mal. Você acaba se tornando uma pessoa que você não é, uma pessoa revoltada, que não confia em ninguém.

Não é que não tenha cicatrizes, sabe? Eu já tentei entender, mas é difícil. Será que é mágoa? Mas também não é mágoa. São coisas que você vai lembrando e você fala assim: "Será que eu realmente merecia passar por isso?"

Meu início no judô foi por sobrevivência, depois que fui diagnosticada com labirintite, já por causa das questões hormonais. Já tinha 1,70m e cheguei a pesar 38 kg, a ponto de não conseguir ficar de pé. Minha musculatura se resumia a tendão; até meus dedos atrofiaram.

Minha família buscou tratamento e acompanhamento psicológico, e minha mãe, que era sócia do SESC, procurou uma modalidade lá. Eu queria praticar caratê, influenciada pelos filmes da época, mas só o judô tinha vaga.

No fundo, o judô foi o único esporte que me abraçou.

Comecei a treinar aos 14 e minha recuperação foi muito rápida. Logo meu professor começou a me colocar em competições e eu passei a ter algo que não tinha: perspectivas de vida.

Acordava 5h da manhã e pulava a cerca do campus da UFPB para correr em uma pista de areia. Meu condicionamento físico era pegar tijolo e levantar com a mão. Academia? Nem em sonho. Para fazer repetição de técnica de judô, eu amarrava uma borracha em um pé de abacate que tinha em frente de casa.

Teve uma vez que fomos competir em Canoas (RS). Precisava perder peso, e não tinha dinheiro para comer. Uni o útil ao agradável e passei os três dias da viagem de ônibus só bebendo água.

Por isso nunca sofri com perda de peso. Cheguei a perder 10 kg em uma semana, dois dias sem comida e sem água. Perguntavam como eu conseguia e eu dizia que, na minha cabeça, era fácil, porque eu sabia como era. Quando eu não quisesse mais tirar peso, podia abrir a geladeira e teria uma Coca, podia comprar uma pizza, comprar uma água.

Na minha infância, a fome e a sede não ofereciam outra opção.

Essa história de me impedir de lutar começou em 1995, quando São Caetano do Sul, que não conseguia vencer a gente, tentou me impedir de disputar os Jogos Abertos por Guarulhos.

Minha equipe falou: "Edi, se você quiser, a gente não entra sem você. A gente não liga de ser desclassificada". Eu não queria prejudicá-las, e só pedi que então elas descessem a porrada.

Guarulhos venceu, a equipe de São Caetano foi reformulada, e no ano seguinte me chamaram para ir para lá. Eu disse que se me quisessem lá, teriam que levar todas nós. Eles toparam e fomos todas.

A partir dali, defendi a equipe de São Caetano do Sul nos Jogos Abertos por quase 25 anos. Me aposentei da seleção em 2008, mas em 2019 eu ainda estava ganhando medalha de ouro pela cidade que tentou me barrar.

Sempre fui realista. Quando tive apoio da confederação, do COB, para lutar as Olimpíadas, não era porque estavam com dó, porque era o certo. Era porque eu era uma possibilidade de medalha.

Ao longo de toda a minha carreira, tive um certo ranço da imprensa brasileira. Toda questão sobre meus testes hormonais foi exposta de uma forma muito sensacionalista.

Pegaram uma questão delicada para fazer números, para prender a atenção do público não pela notícia, mas pela polêmica.

Isso fez eu me afastar. Tudo que eu fiz dentro da modalidade sempre foi longe dos holofotes. Perdi muito patrocínio por causa dessa personalidade que adquiri.

Eu comparo com a situação da Caster [Semenya, corredora sul-africana], em que o país todo ficou do lado dela. O país todo torcendo para ela, e foda-se o mundo. Vai lá e traz essa medalha para a gente.

Isso foi algo que eu não tive aqui. Tive que lutar contra os brasileiros, contra o preconceito, tive que lutar para buscar respostas sobre mim e poder levá-las à imprensa, e tinha que lutar dentro do tatame também.

No fim, venci.

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Na primeira edição sobre Paris-2024, o Minha História trouxe o relato da judoca Natasha Ferreira, que após ver sua irmã se viciar em drogas e ir morar nas ruas, decidiu adotar o filho dela. Agora, o pequeno Enzo serve de inspiração e combustível para ela brilhar nos tatames e sonhar com os Jogos Olímpicos de Paris.

Muita história boa foi contada neste projeto, revelações foram feitas e vem muito mais pela frente. A ideia é unir as experiências das pessoas no esporte com temas de interesse geral da sociedade, abrindo a porta para o debate e para a reflexão. Embarque com a gente nesta viagem para Paris. Au revoir.

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