Professor Blumer

Elano diz que não tem mais vontade de jogar futebol e fala da experiência de se reinventar como técnico

Eder Traskini Do UOL, em Santos (SP) Divulgação/Ferroviária

Em uma sala com duas televisões ligadas, o professor Blumer está sentado com um iPad nas mãos. Nessa terceira tela, ele olha uma série de dados. E também faz algumas anotações. Técnico da Ferroviária, Blumer já foi conhecido apenas pelo primeiro nome. Era Elano, ex-seleção brasileira e Santos, um dos grandes jogadores de sua geração.

Elano foi campeão brasileiro no Santos, jogou Copa do Mundo e passou pelo Manchester City. Hoje em dia, gasta cerca de cinco horas naquela sala. O local é uma central de análise de desempenho que o próprio treinador instalou em sua casa.

Sobretudo durante a pandemia, o técnico Elano Blumer analisava partidas, antigas ou atuais, classificava cada time das várias divisões do Brasil. Era um trabalho antecipado para saber o elenco e possíveis reforços de equipes que poderiam bater a sua porta.

"Eu precisava buscar as informações, ver os jogos, fazer um banco de dados de atletas e também dos times das divisões. Fazer esse mapeamento. Eu não tinha o clube, mas já estava adiantando essa preparação porque isso é um processo que continua, é a vida de treinador. Temos que estar nos preparando sempre", contou em entrevista ao UOL Esporte.

Perto de completar um ano no comando da Ferroviária, Elano está em seu terceiro clube como técnico. O atual é seu trabalho mais sólido. Na Série D do ano passado, passou 19 jogos invicto e perdeu o acesso para Série C apenas na disputa de pênaltis. O desempenho o fez ser procurado por clubes das Séries B e C, mas ele preferiu seguir no time de Araraquara. Ao menos por enquanto...

Divulgação/Ferroviária
Divulgação/Ferroviária S/A

Às vezes, me chamam de professor. Às vezes, de Elano. É legal. Algum tempo atrás, era diferente, estranho, mas já me acostumei. Por isso que o compromisso aumenta também, tem que se preparar cada vez mais. Ser chamado de professor não é simples, envolve muita coisa: postura, comprometimento e boa relação."

Professor Elano Blumer

Ivan Storti/Santos FC/Divulgação

A decisão de seguir no futebol como treinador não se deu do dia para noite. Enquanto jogador, Elano sempre foi um atleta tático, que fazia várias funções em campo, sobretudo no meio. No entanto, a ideia amadureceu de vez nos últimos dois anos de carreira como jogador, no Santos.

"Sempre gostei muito de acompanhar as formações dos times. Nos últimos dois anos, em que eu joguei menos, participei de muita coisa extracampo e identifiquei que seria uma oportunidade de seguir carreira", contou.

Elano pendurou as chuteiras em 2016 no Santos e virou auxiliar na comissão permanente do clube. Seu trabalho principal era fazer a ligação entre as categorias de base e o profissional. Foi no Peixe que ele teve suas primeiras experiências na beira do campo.

Após a demissão de Dorival Jr, em 2017, assumiu por dois jogos e venceu ambos. No mesmo ano, terminou a campanha no Brasileirão após a saída de Levir Culpi: quatro vitórias e três derrotas, entregando o time na terceira colocação do torneio e classificado para a Libertadores. Foi nessa época que lançou atletas como Rodrygo, hoje no Real Madrid, e Yuri Alberto, do Zenit (RUS).

Com a mudança na diretoria santista, entretanto, Elano foi demitido. "Eu não tinha a pretensão de assumir, já tinha deixado isso claro. Eu continuaria por mais uns quatro anos organizando a base, era meu processo. Alguns diretores até queriam (efetivar), mas eu disse que eu tinha que fazer minha preparação para que um dia eu pudesse assumir. Quem sabe um dia esse momento possa chegar", afirmou.

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Falta uma preparação melhor para a transição base-profissional se dar de uma forma organizada e analisada. Você coloca um pouco para treinar, volta para a base para jogar, vem novamente treinar, e vai fazendo isso independentemente de nomes ou da função em que joga. Acho que todo mundo tem que ter o mesmo direito."

Elano Blumer

Por que eu digo isso? Porque na base eu nunca fui um jogador que todo mundo olhava e falava que seria jogador. Mas quando me colocavam com jogadores de qualidade, a minha qualidade técnica crescia. Tem jogador que é diferente, para ele é muito mais fácil, mas tem quem na base é meio retraído, mas quando sobe para treinar em um nível mais alto, ele também cresce. Por isso que eu falo que todos merecem o mesmo cuidado."

Elano Blumer

Para fazer isso, precisa de paciência, cuidado. Precisa acompanhar o dia a dia tanto na base quanto no profissional. E conversar para ensinar os caminhos do que pode vir a acontecer na frente. Tem derrota, tem torcida, tem pressão externa, pressão caseira, pressão de empresário... Quando se constrói isso de uma forma mais preparada para o menino, a tendência é ele chegar ao profissional e dar conta do recado mais rápido."

Elano Blumer

Fernando Moraes/UOL Fernando Moraes/UOL

Carreira até aqui

  • Inter de Limeira

    O primeiro trabalho de Elano como treinador foi na Inter de Limeira, eentre 2019 e 2020. A equipe fez um estadual sólido e chegou até as semifinais do Troféu do Interior. A equipe montada pelo técnico contava com dois jogadores que depois se firmariam em seus clubes: Lucas Braga, do Santos, e João Victor, do Corinthians.

    Imagem: Daniel Vorley/AGIF
  • Figueirense

    Santa Catarina foi o destino de Elano após o Paulistão. Foram três meses de trabalho no Figueirense, com episódios tristes, como a invasão no CT --em que a jogadores foram agredidos. Em 17 jogos, três vitórias, seis empates e oito derrotas.

    Imagem: Divulgação/Figueirense
  • Ferroviária

    No ano seguinte, em 2021, foi para Araraquara e assumiu a Ferroviária, onde está até hoje. Fez uma Série D sólida, mas perdeu o acesso à terceira divisão nos pênaltis.

    Imagem: Jonatan Dutra/Ferroviária SA
Divulgação/Ferroviária S/A

Acesso bateu na trave

Elano é o terceiro técnico mais longevo do Paulistão, atrás apenas de Maurício Barbieri, do Red Bull Bragantino, e Abel Ferreira, do Palmeiras. Em abril, completa um ano no comando da Ferroviária.

O técnico assumiu a Ferrinha nos quatro jogos finais da primeira fase do Paulistão do ano passado, conquistou dez pontos de 12 possíveis e classificou o time para as quartas de final, em que acabou eliminado pelo São Paulo — que seria o campeão da edição.

Aquela derrota seria uma das únicas duas da Ferroviária de Elano no ano. O técnico ajudou na montagem do elenco que disputaria a Série D, estreou com derrota para o Uberlândia e depois passou 19 jogos invicto no torneio.

Durante a sequência, passou 1076 minutos, quase 12 jogos, sem sofrer um gol. Os dois números representaram recordes no clube. O acesso inédito, entretanto, não veio: derrota nos pênaltis para o Atlético Cearense.

Neste ano, as dificuldades no Paulistão apareceram. Com um jogo a menos, a Ferroviária tem dez pontos ganhos e está somente dois à frente da Ponte Preta, primeira equipe dentro da zona do rebaixamento. Graças ao regulamento do torneio, a classificação também se faz possível — a Ferroviária está cinco pontos atrás do São Bernardo —que tem um jogo a mais.

O momento faz com que exista, sim, certa incerteza na Fonte Luminosa. O trabalho como um todo é bem avaliado internamente, bem como o desempenho do time. No entanto, sem conseguir aliar tudo isso com resultados, existe a possibilidade de que treinador e clube sigam caminhos diferentes ao término do torneio. O contrato de Elano com a Ferroviária foi renovado recentemente até maio de 2023.

Reprodução

A benção de Guardiola

Você está no caminho certo. O primeiro ponto é você amar o que você faz. Você tem que traçar um foco e um objetivo na sua carreira e seguir naquilo que você acredita com muito foco e transparência para chegar aos seus objetivos. São passos lentos, mas com foco total no que você quer".

A frase foi dita para Elano em meio a um abraço de Pep Guardiola, treinador do Manchester City. Depois de deixar o posto de auxiliar no Santos, Elano viajou pela Europa e teve contato, entre outras figuras, com o espanhol que dirige um dos clubes em que atuou no Velho Continente.

Durante o período após o Santos e antes de seu primeiro trabalho no comando da Inter de Limeira, o professor Blumer passou dois anos entre estágios e cursos. Obteve as licenças B e A da CBF, passou um longo período no sub-20 do Palmeiras e viajou pela Europa.

"O que Guardiola faz é uma coisa fantástica no futebol. São treinamentos simples, executados de forma sincronizada para cada atleta que ele tem. Tive o aprendizado dentro de campo, mas a conversa fora de campo foi algo muito positivo para mim, para aquilo que eu sentia e queria como treinador."

Para Elano, o período de viagem e estudos teve mais do que um objetivo tático. Na opinião do ex-jogador, as questões extracampo são tão importantes quanto o conhecimento das quatro linhas. "O treinador transita nas relações com os jogadores, mas também com torcida, clube, imprensa, seu estafe... Então, você precisa ter um autocontrole dessas ações, porque todas são importantes para a construção do trabalho."

Reprodução/Twitter
Imagens da invasão ao treino

Aprendizado no Figueirense

Depois da semifinal do Troféu do Interior com a Inter de Limeira no Paulista de 2020, o telefone de Elano tocou. Era o Figueirense, que disputava a Série B do Campeonato Brasileiro, mas estava mergulhado em uma profunda crise político-financeira. Mesmo assim, ele aceitou.

Na primeira semana de trabalho, "torcedores" invadiram o CT e agrediram jogadores do clube. Elano foi poupado e tentou dissuadir a ação, mas não teve sucesso.

"Já tinha visto invasão de campo, mas não agressão. Dessa vez teve com garrafa na mão, foram cenas desesperadoras. Eu fiquei parado, eles entraram e me reconheceram, chegaram pra mim e disseram que o problema não era comigo. Pedi para deixarem isso para lá, mas acabaram agredindo os meninos. Fiquei junto para tentar separar, mas eram 50 pessoas e a briga se espalhou pelo campo e ficou incontrolável", lembrou.

O trabalho durou três meses e Elano não recebeu salário. Ele sabia que seria assim quando aceitou o trabalho, mas se dispôs a passar por isso. Hoje, o técnico diz que aprendeu com o erro. "Eu acho que foi o (episódio) mais importante. Chato, triste, cansativo, muito estressante, mas importante para minha vida de treinador. Aprendi o que não devo fazer como treinador. Aprendi como devo conduzir para pegar um clube, quais são as minhas perguntas e o que tenho que ter de respostas."

Apesar da frustração com a situação vivida, Elano fez questão de falar, durante a entrevista, que tem "muito orgulho de ter trabalhado em um clube de tanta tradição no cenário nacional".

Divulgação/Ferroviária

Novos trilhos

Os caminhos do futebol não são nem de longe tão previsíveis quanto o percurso de uma estrada de ferro. Os trilhos que passam por Araraquara e deram nome à Ferroviária podem levar até Matão ou Rincão, cidades interioranas, mas o futebol... Ah, o futebol levanta voo. E Elano se vê preparado para isso.

"Confesso para você que me sinto preparado para assumir qualquer time. Tenho me preparado para isso. Meu projeto na Ferroviária é muito positivo, estou bem feliz, mas eu me sinto preparado, sim, para assumir outro clube", disse.

Hoje, em seu terceiro clube na carreira e após seis anos da aposentadoria dos campos, Elano acredita que já se desvinculou da imagem do jogador — uma verdadeira cruzada em seu início como técnico.

"Me desvinculei desse lado atleta. Primeiro pela minha postura como treinador, já não falo como jogador. Mas nunca vou deixar de ser um ex-atleta e contar minha história. Meu trabalho é conduzido como treinador, minhas experiências e o que construir como treinador. Meu relacionamento com os atletas é saudável, mas é como treinador. Desde que eu parei, não sinto vontade de jogar bola, sinto vontade de treinar profissionalmente e crescer na carreira. Nem no rachão (risos). Hoje com jogo em cima de jogo fica difícil dar rachão".

O Elano campeão da Copa América, da Copa das Confederações, da Libertadores e bicampeão brasileiro não vai ser esquecido, mas o ex-meia agora é o professor Blumer, que quer escrever sua história como técnico de forma tão vitoriosa quanto foi quando jogador.

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