O homem antes do árbitro

História de Thiago Duarte Peixoto é bem mais incrível do que um erro em Corinthians x Palmeiras pode supor

Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima Do UOL, em São Paulo Paulo Camilo/UOL

"Acabou o jogo, colocamos a cabeça no travesseiro e tentamos dormir. Mas os lances ficam passando. Erros, acertos, como toda pessoa. Aí, quando você acerta mais do que erra, consegue dormir antes. É muito louco estar ali, mesmo que tudo fique passando pela sua cabeça depois. E agora eu estou voltando. Com o tempo necessário para que as pessoas me permitam viver novamente tudo isso.

O público está preparado para ver o Thiago em ação num grande jogo? Espero que sim porque eu estou me preparando para isso. Que aquelas pessoas que tacharam o árbitro como o que errou, o safado, o vagabundo, possam me ver novamente e saber que eu não sou safado, vagabundo, que tenho família. Que não me taxem mais como ladrão."

Thiago Duarte Peixoto, 39 anos, árbitro de futebol.

Paulo Camilo/UOL
Agência Palmeiras

O momento era de ascensão na carreira. Até que aconteceu um erro absurdo. Inesquecível. Histórico. Horrível. Pode usar a palavra que você quiser. Thiago Duarte Peixoto sabe o tamanho da besteira que fez ao expulsar um jogador errado durante o clássico Corinthians x Palmeiras do Campeonato Paulista de 2017. Mas aquele não foi o primeiro jogo importante que o árbitro apitou. Ele já tinha conduzido até outro Dérbi, além de semifinal de Paulista, semifinal de Copa do Brasil no Maracanã... Era uma carreira em alta, que foi travada por aquele erro.

O árbitro paulista até voltou a participar de jogos importantes desde então. Na última rodada do Campeonato Brasileiro, há três dias, foi assistente adicional de Vasco 0 x 0 Ceará, na Arena Castelão. Em 2019, espera dar o próximo passo: apitar de novo na elite.

Seu erro teve consequências, mas também algumas causas, como ele explica nesta longa entrevista ao UOL Esporte. É a primeira vez que Thiago Duarte Peixoto fala, aberta e longamente, sobre o episódio de quase dois anos atrás, que considera um "momento superado". O homem antes do árbitro também conversa sobre a fama de arrogante e performático em campo, o trabalho psicológico pós-Dérbi (que teve até viagem a Machu Picchu) e os sofrimentos da vida pessoal, como a morte da esposa dez dias após dar à luz ao seu primeiro filho, Gael, e também a morte da mãe, que indiretamente gerou uma onda de fake news e acusações contra o próprio Thiago.

Há uma cara por trás do apito. E aqui ela está lavada.

Rubens Cavallari/Folhapress

Não é arrogância, é apenas intensidade

Durou aproximadamente uma hora e meia a entrevista com Thiago Duarte Peixoto, realizada entre o jardim e a academia do prédio em que mora, em São Paulo. Parte deste tempo foi destinada a uma sessão de fotos. Talvez tenha sido este o momento em que o árbitro mais se revelou. Foi pedido para que ele fizesse uma expressão séria para um registro. Thiago, então, cruzou os braços, levantou o queixo e olhou a câmera por cima. Poucos segundos depois, antes que a foto fosse tirada, ele mesmo se corrigiu: "É para ser sério, não marrento."

Thiago está preocupado com sua imagem. Ele nunca esteve tão próximo, desde o erro no Dérbi, de voltar a apitar em alto nível. Pode ser que isso já aconteça no Campeonato Paulista de 2019, segundo a Federação Paulista de Futebol. Então, ele quer mostrar que mudou, que está mais maduro. E mesmo assim, as reações incisivas que tem em campo se repetem de modo natural fora dele. Ele gesticula e é performático até dando entrevista. Justifica a fama de arrogante justamente pela intensidade dos gestos. Ele é assim, por mais que tente disfarçar.

Ele também tirou foto mostrando cartão - um clichê em imagens de árbitros de futebol. Na hora de escolher entre o amarelo e o vermelho que havia levado para a sessão de fotos vieram as lembranças do Dérbi, o vermelho exibido para Gabriel que deveria ter sido só um amarelo para Maycon. Preferiu o amarelo.

"Parece que fui cego": árbitro detalha a polêmica do clássico

Eduardo Knapp/Folhapress

Entrevista pós-Dérbi foi para evitar "um treco", relata o árbitro

Thiago Duarte Peixoto quebrou um protocolo no dia de seu erro em Corinthians x Palmeiras. Após o jogo, já consciente da dimensão de tudo e sob críticas pesadas de jogadores e do presidente do Corinthians, Roberto de Andrade, que disse que ele era um "pavão", "deveria ser banido do futebol" e "só apitar jogo no Acre", o árbitro deu uma entrevista coletiva na Arena Corinthians. A voz embargada e os olhos vermelhos revelaram o choro. O depoimento mostrou fragilidades que raramente um juiz de futebol exibe. "Espero, do fundo do meu coração, que minha carreira continue", disse na ocasião, após comparar seu erro ao de um jogador que perde um gol ou de um jornalista que usa uma palavra errada.

Quase dois anos depois, ele não se arrepende da entrevista em Itaquera. Não que tenha ajudado em alguma coisa, mas foi seu jeito de desabafar. "Naquele momento, tudo que eu queria era falar. Eu ia para casa, o sol ia nascer e ia ser muito difícil para mim. Falando o que aconteceu, eu colocaria para fora. Não foi para me fazer de vítima, mas para explicar o que aconteceu às pessoas que amam futebol, que pagam o pay-per-view, que escutam na rádio", diz o árbitro, que se lembra de ter sido questionado pelo departamento de comunicação da FPF se gostaria de falar.

"Aquela emoção que rolou não foi de caso pensado. Ninguém fala: 'agora eu vou lacrimejar'. Só ator consegue. Foi um desabafo. Eu precisava colocar para fora ou ia me dar um treco."

Paulo Camilo/UOL

Chateação, reflexão, viagem e amigos: como superar a cagada

A primeira pessoa com quem Thiago conversou depois do erro, sem ser assistente, assessor ou jornalista, foi o pai, Onílson. Geralmente crítico, ele percebeu a gravidade da situação e mudou o comportamento: "Não veio cobrança, nada. Só o afago de pai", relembra o árbitro. Recluso nos dias seguintes, ele foi julgado e afastado do futebol por 60 dias. Foi difícil tirá-lo do chão, inclusive para seguir o trabalho como personal trainer enquanto o futebol estivesse estancado: "No primeiro momento, você fica chateado. Depois começa a refletir".

O árbitro fez uma viagem para desanuviar. Foi para o Peru em uma trilha de cinco dias ao lado de um aluno da academia e uma amiga: "Tem uma coisa mística lá". Depois, iniciou trabalho psicológico em sessões às terças-feiras com uma profissional da FPF: "A entidade e a comissão de arbitragem me deram todo o respaldo possível no momento, me senti até lisonjeado. A confiança não pode se esgotar em um lance, e eles se preocuparam com o ser humano. Sou grato. A vida é um aprendizado, estou aqui para aprender eternamente. Quem sabe, dentro de campo, eu possa dar a resposta de que isso tudo foi benéfico."

Amigos da arbitragem também foram importantes no processo de superação. Flávio Rodrigues de Souza, que Thiago define como alguém "que tem uma energia muito boa", é dos mais próximos. Raphael Claus é outro: "Estou fazendo jogos de árbitro adicional no Brasileiro e tenho acompanhado muito o dia a dia dele. Tem feito muito por mim no nível de confiança. Gostaria de agradecer."

Depois da cagada no Dérbi de 22 de fevereiro de 2017, Thiago Duarte Peixoto só voltou ao trabalho em 29 de abril: Monte Azul 1 x 0 Taboão da Serra, pela Série A3 do Paulista.

Tive o trabalho psicológico e depois comecei a fazer alguns jogos, aos poucos. O primeiro foi muito difícil. Eu estava inseguro, mas precisava passar por aquilo. Depois você adquire confiança novamente. E hoje essa insegurança já passou

Thiago Duarte Peixoto, que trabalhou em 71 jogos desde o Dérbi

Desde 22/2/2017

  • Paulista Série A1

    Três partidas como árbitro principal

  • Paulista Série A2

    Onze partidas como árbitro principal

  • Paulista Série A3

    Quatro partidas como árbitro principal

  • Paulista Série B

    Três partidas como árbitro principal

  • Brasileiro Série A

    Uma partida como árbitro principal e 25 como árbitro assistente adicional

  • Brasileiro Série B

    Catorze partidas como árbitro principal e uma como quarto árbitro

  • Copa do Brasil

    Duas partidas como árbitro principal e uma como quarto árbitro

  • Outros

    Uma partida pela Copa São Paulo, quatro pela Copa Paulista e uma pelo Campeonato Paulista Feminino

H1N1 vitimou esposa de Thiago menos de um ano antes do Dérbi

Paulo Camilo/UOL

Filho e árbitro

Thiago é filho de jogador de futebol. Carlos Beronha jogou por 17 anos no interior de São Paulo, por clubes como Guarani, Ferroviária, Barretos e Marília, como zagueiro, lateral e volante. Era cigano e curinga. E levava o filho nascido em Araraquara como mascotinho para os jogos. Thiago tem fresco na memória o dia em que ele, a mãe e a irmã Thalita viajaram do interior a Santos de carro para ver o pai da família jogar na Vila Belmiro. "A vida no esporte me fez ser quem eu sou", resume o filho.

Ele bem que tentou jogar futebol, mas não era dos melhores. Preferia jogar vôlei, basquete e tudo o mais que aparecesse. Como era inserido no meio do esporte acabou se envolvendo em arbitragem, primeiro nos torneios escolares. Começou a fazer faculdade de Educação Física e manteve a arbitragem para fazer uma graninha extra. Aí Thalita entrou no curso de Odontologia e as contas da família apertaram. Foi quando Thiago decidiu intensificar a rotina como árbitro para pagar a faculdade.

"Eu fui na Liga Barretense de Futebol e comecei a apitar. Me colocaram num jogo amador e eu só corria. Onde a bola estava, eu estava. Os caras gostaram disso e me colocaram em mais jogos. No primeiro ano, eu fui revelação da várzea. Depois, fui o melhor árbitro. Aí pensei que poderia seguir o caminho. Peguei informações e me inscrevi em curso de árbitros. Quem vê a gente nos grandes jogos não sabe o que passamos na várzea", relembra Thiago Duarte Peixoto. Ele chegou a apitar um jogo do pai.

No final da carreira, ele (o pai) foi jogar na várzea em Barretos. Eu já estava no começo da carreira de árbitro e fui apitar um jogo dele. Estávamos na mesma casa antes do jogo e ele não abriu a boca. No jogo, não fez nenhuma falta. Acho que aí veio a coisa de ser pai e ele me ajudou. Ele não deixava ninguém reclamar, não me comprometeu (risos)

Thiago Duarte Peixoto, árbitro de futebol

Paulo Camilo/UOL

Mãe invadiu estádio de vestido e chinelo e quis parar um jogo

Carlos Beronha não foi o único incentivador de Thiago no futebol. O tio, Osmir Duarte Peixoto, conhecido como Titão, foi árbitro da várzea no interior de São Paulo, até organizou campeonatos na cidade de Barretos e deu de presente para Thiago um apito usado até hoje no futebol. Já a mãe, Neide Maria Chabaribery Peixoto, era quem levava o filho para testes no futebol e se preocupava com a carreira na arbitragem.

"Eu estava apitando um jogo na várzea e naquela época alguns jogos mais importantes tinham transmissão no rádio. Minha mãe ouviu o repórter da rádio dizendo que havia um torcedor com uma faca no estádio. Ela ficou apavorada e foi correndo para lá. De vestido e chinelo, dona Neide entrou no vestiário da arbitragem e tentou me proibir de voltar, acredita? Sorte que meu tio impediu", diverte-se o árbitro. 

A mãe superprotetora de Thiago e Thalita morreu em 2011, de câncer. "Minha mãe era uma mulher de muita luta e vontade de viver. Eu e minha irmã viemos tentar a vida na cidade grande e meus pais ficaram. Acho que isso pegou um pouco para ela, que ficou entristecida. Mas é meu exemplo de perseverança."

Heuler Andrey/Getty Images

"Não é desculpa, é minha história"

"Em tudo que temos dificuldade nós focamos no lado profissional."

Nas duas grandes perdas de sua vida, Thiago acreditou que, se voltasse a trabalhar rápido e ocupasse a mente, seria mais fácil superar. No ano seguinte à morte da mãe, se tornou árbitro credenciado pela CBF e passou a trabalhar em torneios nacionais. Tentou repetir a estratégia após a morte da esposa Gabriela, em 2016, mas não conseguiu.

"Foram os piores momentos da minha vida: o falecimento da minha mãe e da Gabriela. E ainda com a luta diária pela vida do Gael, que teve parada respiratória e precisou de várias transfusões de sangue. Depois, eu quis trabalhar, enfrentar. Fiz uma semifinal de Paulista. Mas a conta veio. Cadê minha casa? Cadê a mulher que estava ao meu lado? A ficha caiu, foi um momento bem difícil. Você está vivendo um sonho: casamento, bebê... E de repente vira uma tragédia. Aí a gente vê que o homem vem antes do árbitro. E o homem estava machucado. Eu precisava de um tempo maior para mim e não dei. Em 2017, me perdi: eu, em casa, duas babás, uma criança, um pai sem mãe. É a história da minha vida. Não é uma desculpa pelo que aconteceu na minha carreira, de erros de acertos. É só a história da minha vida".

Doação de camisa do Corinthians para hospital foi alvo de fake news

Montagem sobre Reprodução Montagem sobre Reprodução

Thiago Duarte Peixoto tenta reconstruir a carreira a partir de 2019. Ele é dono de um estilo de arbitragem que impõe autoridade, mas gosta do jogo corrido: "Tem uma frase que eu uso muito: 'não tenha medo do jogo'. Se você tem medo do jogo, fica apitando faltinhas. Eu não faço isso, e posso até ter cometido alguns excessos. Queremos na vida nos impor de determinada forma, mas hoje consigo manter esse controle. Tenho uma autoridade, mas coloco um sarrafo mais baixo, um diálogo melhor com o jogador. Você fica mais tranquilo, amadurece. Acho que é nesse patamar que eu estou."

Além do estilo de arbitragem, também existem manias específicas do trabalho diário em jogos: Thiago leva no bolso da camisa pelo menos o dobro de todos os itens que precisa para trabalhar, tipo cartões amarelo e vermelho, apito e lápis. Pura extravagância.

Paulo Camilo/UOL
Paulo Camilo/UOL

Vida nova (também no trabalho)

O processo de amadurecimento de Thiago Duarte Peixoto ocorre na profissão e também na vida normal. Além de Gael, que está perto de completar 3 anos de idade, o árbitro será pai de Antonella em breve. Ele se casou de novo, com Suelen, que conheceu na academia onde dá aula. "Hoje, ela cuida de mim e do Gael, temos uma reciprocidade de valores e família. Deus me deu a segunda chance de continuar. Tem uma música do Luan Santana que fala 'eu, você, dois filhos e um cachorro'. É meu sonho de vida. Vou ter dois filhos, só falta o cachorro."

"Costumo dizer que o Gael tem duas mães, uma no céu e a mãe de coração. Eu tinha medo disso não acontecer, a constituição familiar. Às vezes podemos nos perder, eu poderia ir para um lado não tão legal, me revoltar. Mas aconteceu o que tinha que acontecer, a Gabriela teve o tempo dela, tivemos nosso tempo. Nos comunicamos por meio de orações e a Suelen respeita muito isso", diz Thiago Peixoto, que hoje vê "o ser humano pleno, legal, apto a voltar a ter uma vida normal, inclusive no trabalho".

Thiago Duarte Peixoto, o árbitro que sonha retomar a carreira depois de errar em Corinthians x Palmeiras, não é quem "apita" em casa. É Suelen.

"Ela só não pode errar o cartão (risos)".

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